St. Vincent dá descanso aos alteregos em “All Born Screaming”, mais um disco autobiográfico, pessoal e vulnerável

texto e faixa a faixa por Fernando Yokota

Depois das madeixas platinadas de seu álbum autointitulado de 2014, do látex envelopante de “Masseduction” (2017) e o ar novaiorquino emperucado de “Daddy’s Home” (2021), St. Vincent dá descanso aos alteregos e retorna com “All Born Screaming” (2024) em sua versão mais Annie Clark em mais de dez anos.

Justiça seja feita: com exceção do lançamento de 2021 — um mergulho deliberado na Nova York de 1971 a 1976 –, a personagem sempre habitou muito mais o visual e a imaginação dos ouvinte do que as letras e as músicas. Os supostos alteregos nunca foram impedimento para que Clark falasse sobre a vida, de como Nova York não é a mesma sem a companhia de um velho amigo ou sobre assinar autógrafos na prisão enquanto visitava o pai, que cumpria pena por crimes financeiros até 2019. A persona de St. Vincent, no entanto, criava uma espécie de terceira pessoa através da qual ela soava uma ventríloqua de si própria.

Nesse ponto, “All Born Screaming” é tão autobiográfico, pessoal e vulnerável quanto seus outros trabalhos, e a ausência de uma suposta persona traz o ouvinte mais próximo à artista. A percepção de um tom mais confessional se dá não por uma mudança lírica ou musical, mas pela simples retirada da figura interlocutora da personagem. A ansiedade (“So Many Planets”), a sofrência (“Reckless”) e o cotidiano (“The Power’s Out”) continuam todos presentes, porém narrados numa primeira pessoa não intermediada.

Na fartura de estilos de “All Born Screaming”, Clark se deixa ser Bowie e Byrne, vai de Tool a Madonna passando por Prince e Survive, mas não o faz como mera bricolagem: diferente da cacofonia sensorial de um buffet de churrascaria — que vai do acarajé ao sushi porque “por que não?” –, o mosaico musical se justifica em cada uma de suas partes na constituição de uma dinâmica das diferentes cenas que dão movimento ao álbum.

A variedade é, portanto, reflexo da escolha deliberada para cada arranjo e não um simples esporro estilístico. Após uma fase de transição em “Daddy’s Home”, sua crisálida criativa desabrocha no decorrer das dez faixas do álbum. Contrariando os que alegam que sua discografia se perdeu após seu disco homônimo, em “All Born Screaming” Annie Clark ostenta o fio de Ariadne e mostra que nunca se perdeu em seu labirinto criativo.

A seguir, uma breve visita guiada pelo disco:

01) Hell Is Near – A voz praticamente solo dá o tom dramático da faixa com a banda entrando ao estilo de “Breathe” em “Dark Side of the Moon”. Destaca-se o baixo sinistro — segundo Clark, uma homenagem ao Tool, uma de suas bandas favoritas — e o violão de 12 cordas que, sozinho, lembraria um Rush moderno, mas, quando a voz surge em uníssono, magicamente se transforma no System of a Down de “Aerials”. O outro, ornado com sintetizadores formando um polirritmo entre si, entregam o ouvinte à próxima faixa como numa troca de cenários numa peça.

02) Reckless – Assim como em “Hell Is Near”, a voz de Clark (em sua performance vocal mais notável do disco) carrega a melodia praticamente sozinha em seus dois primeiros terços. O arranjo segue em crescendo até a parte final, uma explosão de timbres e coros digna de uma missa conduzida por Giorgio Moroder em clima que se equilibra entre distopia (o arranjo de última cena de ficção científica dos anos 1980) e esperança (o “calling for me” repetido várias vezes).

03) Broken Man – O primeiro single, “Broken Man” tem jump scares como num filme de terror. Os stabs de sintetizador (ou seriam guitarras?) e a bateria distorcida de Dave Grohl entrando atravessada assaltam o ouvido do ouvinte que é inicialmente servido com a frigidez da constância do loop de sintetizador. “Broken Man” é como se Madonna tivesse gravado “Supermassive Black Hole” do Muse com o Queens of the Stone Age como banda de apoio. O final, com versos intercalados e sobrepostos, soa como a “vergonha alheia de si mesmo” de quem acorda de ressaca — física e moral — lembrando da noite passada.

04) Flea – A faixa, que começa remetendo a “Sometimes”, do Garbage, também conta com Grohl na bateria, com o groove tão familiar a quem escutou “In Bloom” pelo menos uma vez na vida. A bateria, atrás da cabeça dos compassos e saturada, marca o contraponto ao instrumental quase prog que soa como se Josh Homme resolvesse montar uma banda cover de Yes ou Rush.

05) Big Time Nothing – O riff, na forma de sintetizador modular, é a peça mais musicalmente grudenta do álbum e se une a uma guitarra que parece ter vindo diretamente de Paisley Park. Somando-se à performance vocal reminiscente da discografia noventista de Madonna, “Big Time Nothing” vai ser o momento dos shows com direito a mãos para o ar e passinhos desenvoltos na pista. Strike a pose!

06) Violent Times – Os stabs de metal que remetem a Portishead ornam o que será o tema perfeito para quando Barbara Broccoli descobrir que Rebecca Ferguson é a 007 perfeita em 2024. Ao ouvinte, instiga a imaginação sugerindo o que aconteceria se Clark estivesse um dia andando por Camden e encontrasse Amy Winehouse para um dirty martini.

07) Power’s Out – “Power’s Out” tem o ritmo, a melodia e a narrativa de algo que poderia estar em “Daddy’s Home”. O tom de crônica, ainda que pessoal, arma o clima que permeia o trabalho anterior de Clark. O som do fuzz integrado a timbres sintetizados formam o que poderia ser descrito como uma sinfonia de elefantes no momento de destaque da canção. Ainda assim, funciona mais como um interlúdio para a parte final do álbum.

08) Sweetest Fruit – O loop, deliberadamente desafinado, carrega a faixa e é uma humanização que choca com o aspecto mecânico do sintetizador. A linha vocal de Clarke, navegando pelos registros mais altos de sua tessitura, também se posta em contraponto ao loop principal, e junto com a guitarra tirada do livro de truques sujos de The Edge, formam algo que seria facilmente a trilha sonora de uma animação da Pixar.

09) So Many Planets – Com bateria com trejeitos de reggae, linha vocal que lembra exercícios de solfejo do Bona (quem estudou música sabe) e o solo de guitarra mais memorável do disco (que lembra que nem todo mundo que estudou em Berklee acabou numa banda de metal progressivo), “So Many Planets” talvez seja o único momento em que o ouvinte se perca em meio a tanta coisa. O reverb, generoso na mix, ajuda a causar um sentimento de confusão e necessita de mais de uma audição.

10) All Born Screaming – Com a guitarra que lembra The Police (ou Paralamas do Sucesso), a bateria sincopada de Stella Mozgawa (Warpaint, Courtney Barnett) e o baixo gravado pela não menos brilhante Cate Le Bon (que assina a coautoria da faixa), a faixa-título é o bom exemplo de que, assim como BB King, Clark é guitar hero não só pelas notas que executa como aquelas que deixa de tocar: o silêncio é ouro. A síncope gera brechas nos compassos que são preenchidas por fragmentos de guitarras — ora limpas, ora cheias de fuzz — tendo como elemento de linearidade o discreto sintetizador que corre ao fundo.

Ao final, a coda é uma mistura de mantra com grito primal com o “all born screaming” sendo repetido ad infinitum em clima de missa sendo rezada pelo Asian Dub Foundation, o único fim possível para o álbum.

– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/

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