Cara de Espelho: a primeira entrevista do supergrupo português ao Brasil!

entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa

“A música está em primeiro lugar. Já temos muita tarimba e andamos nisto há algum tempo para perceber que se as canções não estivessem à frente não iria resultar. A nossa bandeira é a música. Estamos todos unidos para levar as canções ao lugar onde podemos leva-las e vamos atrás delas”, diz-me Pedro da Silva Martins (o autor das palavras e das composições do supergrupo português Cara de Espelho e que anteriormente foi o criativo do Deolinda) quando o questiono sobre a conciliação das diversas personalidades que compõem o grupo durante uma animada conversa que mantemos no Teatro Maria Matos, em Lisboa, e que incluirá mais dois integrantes da banda, os músicos Sérgio Nascimento (Deolinda, David Fonseca, Humanos) e Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa, Zeca Afonso, Fausto).

A história dos Cara de Espelho começou precisamente com um encontro entre Sérgio e Carlos durante a pandemia, no qual recordaram uma bem sucedida apresentação no Cinema São Jorge, em 2013, do Deolinda e dos Gaiteiros de Lisboa, onde os dois grupos interpretaram músicas de ambos. O desejo de retomar o processo levou-os a convidarem Pedro da Silva Martins. “Ele escreveu um disco inteiro e começou a mandar músicas para o Carlos Guerreiro e gerou um corropio de ideias”, recorda o baterista Sérgio. A entrada do guitarrista Luís J. Martins (irmão de Pedro e ex-integrante do Deolinda) decorreu naturalmente e a vontade de encontrar uma voz para o projeto resultou num convite a Maria Antónia Mendes, a Mitó (A Naifa, Señoritas), pelo fato do seu estilo interpretativo se enquadrar com as letras e as canções de Pedro. O elenco ficou completo com a entrada do baixista Nuno Prata (Ornatos Violeta).

Com o lançamento, em outubro de 2023, do duplo single “Corridinho Português” e “Político Antropófago”, os Cara de Espelho mostraram ao que vinham, apostando e explorando as diversas soluções que constituem a música tradicional e popular portuguesa, que marcou os percursos dos seus integrantes, com o foco temático na liberdade e na condição humana, desmistificando diversos preconceitos e abusos de poder com o humor e o sentido crítico das letras de Pedro da Silva Martins.

O álbum homónimo de estreia, editado três meses depois, retomou as coordenadas anteriores, lançando um olhar pertinente sobre o momento atual de Portugal abordando questões como a multiculturalidade lisboeta (tão bem retratada em “Fadistão”) e faixas plenas de contundência política como “Dr.Coisinho” ou “Varejeiras”. O mérito do disco reside igualmente no fato da banda arriscar em territórios como o rock e a música africana ou sonoridades árabes, mantendo a coerência e a integridade da sua mensagem. Para o sucesso do trabalho, naturalmente, concorre também a enorme qualidade musical dos seus intérpretes. Desde a sólida seção rítmica composta por Sérgio Nascimento e Nuno Prata, passando pela envolvência vocal de Mitó e a associação das composições geniais de Pedro da Silva Martins à construção instrumental de Carlos Guerreiro.

Um dos maiores nomes da música portuguesa, Sérgio Godinho, elogiou o grupo destacando o fato dos Cara de Espelho partilharem “entre si e entre nós o entusiasmo da música e a sua inventividade” e cumprirem a missão de “ver a nossa cara particular no espelho”. Carlos Guerreiro, que tocou com Godinho durante cinco anos, reconhece a sua influência e a de outros grandes nomes no trabalho da banda: “Há muita coisa nos primeiros arranjos que fiz para os Cara de Espelho que têm as referências de mestres como o Sérgio Godinho e consigo ainda identificar o que fui buscar a eles e não tenho qualquer problema em assumir isso” e prossegue: “Tivemos a sorte de ter o Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fausto e Zeca Afonso ao mesmo tempo e os brasileiros também tiveram o Caetano Veloso, Chico Buarque e o Gilberto Gil. Se em Portugal não tivéssemos tido esses gênios não aprenderíamos a olhar a música da mesma forma”.

De Lisboa para o Brasil, os Cara de Espelho conversaram com o Scream & Yell. Confira:

Como surgiu o nome da banda e que objetivos tinham em mente para o vosso projeto quando se formaram?
É sempre difícil arranjar um nome para uma banda, mas estávamos muito relaxados quanto a isso. Nós fomos para o estúdio e pensamos que ele surgiria por estarmos juntos. O certo é que de vários nomes em cima da mesa Cara de Espelho parecia ser o mais estranho, mas isso fazia-nos sentido e conciliava um pouco a proposta, as canções e um bocado de tudo o que estava subjacente às próprias músicas. A ideia de refletir e de pôr um espelho em frente a cada assunto ou testa de ferro. Esse espelho foi pensado nesse aspceto. Foi o nome que nos pareceu mais natural e a sua estranheza também é uma coisa gira (legal), que apresentamos. É algo coerente e já não vemos a banda com outro nome. Os objetivos foram um bocado ‘work in progress’. As peças que entraram no jogo puseram tudo numa perspectiva diferente. As canções nasceram com elas e se os elementos fossem distintos seriam outras. De repente, fez-nos sentido, pela própria voz da Mitó, que fossem este tipo de músicas porque ela tem uma carga envolvente e não seria lógico escrever canções de amor, já que a palavra nela tem um peso diferente de outras cantoras. As canções começaram a deslizar e a incidir num determinado sentido e foram aparecendo outras e começámos a perceber onde estávamos. Agora encontramo-nos num ponto onde nos apropriamos das músicas e elas têm um cunho. As faixas mais recentes, posteriores ao álbum, têm outra identidade. Cada canção é um novo passo que a banda dá. Portanto, ainda só demos alguns e até começarmos a andar e a voar vamos ganhando espaço.

A liberdade e a singularidade humanas dominam a temática do disco de estreia dos Cara de Espelho, mas é inegável que existe um vislumbre sobre o que significa ser português nas letras. Qual é o vosso comentário?
De certa maneira é isso que as letras trazem. A liberdade é transversal a todas as músicas e até a faixa “Morte do Artista”, que é uma canção de morte, é de libertação. Mas, não estamos a definir o português. É um exercício de observação e um questionamento a vários níveis sobre um momento que Portugal nunca viveu. Assistimos a uma campanha eleitoral e ao desempenho dos partidos como não víamos há uns anos atrás. Se bem que percebemos que andam todos ao mesmo. Mas, já não é tão fácil enganar tantas pessoas. Tudo o que os partidos dizem agora já se disse imensas vezes. Se calhar aquilo que irá faturar mais é o descontentamento. São muitos os partidos que tiram proveito da insatisfação. Uns de uma forma e outros de outra. Vivemos uma época política particular e está tudo a mudar. A sociedade também mudou e é um fenômeno mundial. Por isso, situamo-nos agora e não só em termos artísticos, mas também individuais. Porque estamos com uma idade em que faz sentido fazer este tipo de música e a urgência de falar de alguns assuntos é maior. O que está mais além é colocarmo-nos, percebermos onde estamos, onde está a sociedade, qual é o nosso posicionamento como artistas e que canção faz sentido hoje.

Na faixa “Corridinho Português” canta-se: “Separando o africano do cigano / Do chinês, do indiano, ucraniano, muçulmano, do romeno ou tirolês / Como vês sobra muito, muito pouco português” e em “Dr. Coisinho”, alude-se a um “Dr coisinho que vem coisificar o medo”. Gostariam que estas músicas fossem um antídoto contra a ameaça do extremismo político, da xenofobia e do racismo?
Não há verdadeiramente um antídoto para isso. Mas, são canções que estão lá e fazem sentido e, infelizmente, nunca irão deixar de fazer. Quem escutar as músicas acende aquela luzinha de despertar para essas questões. É um pouco como as canções que ouvimos do Zeca Afonso ou do José Mário Branco. São músicas que foram feitas naquele contexto social e político, mas hoje ainda têm muita relevância. E são também canções que culturalmente nos põem num sítio. Se elas servirem para isso já é bom e se forem para dançar funcionam na mesma. Não há muito mais além disso. As músicas são um bocado como os filhos, ganham vida própria, e a partir de certa altura não as controlamos. Como não conhecemos os amigos, assim não conhecemos quem gosta das nossas canções. O José Mário Branco também defendia que as músicas são como os filhos e já não as consegues travar. Se calhar, neste momento, elas estão na Austrália ou no Japão. Os Gaiteiros de Lisboa até fizeram parte da playlist de uma rádio australiana. Provavelmente, os aborígenes farão versões delas (risos).

O álbum tem um tom crítico social e político que se expressa em várias faixas, no entanto também há espaço para a diversão que encontramos em canções como “Fadistão”. Este contraste foi uma forma de criar um escape ou resultou do processo normal de composição?
“Fadistão” é a canção mais lisboeta do álbum e chama o fado de uma forma não muito direta, mas está latente e é um exercício de olhar para uma Lisboa que já não é a mesma que os Deolinda cantavam. Com Deolinda, Lisboa era muito diferente e agora passa um bocado por trazer o que a cidade é hoje, para a nossa realidade e para a nossa vida. Tem coisas más e outros aspectos que são bons. Este fato de ser um sítio plural e de existir esta confluência é incrível e inspirador. Existe sempre a possibilidade de viajar no tempo e fazer canções sobre Alfama (bairro lisboeta) de outrora e até existem fados cantados por chineses. A Rua Morais Soares, por exemplo, muda de nacionalidade de dois em dois anos (risos). Para além disso, “Fadistão” parece uma canção na terceira pessoa e é quase um passeio que estamos a dar em que descrevemos o que vemos. Pode ser um turista a olhar para a Lisboa atual, porque há um certo distanciamento. Passámos de uma cidade entaipada, que era a Lisboa dos Deolinda em 2007 e de repente mudou tudo para melhor. De um momento para o outro, a cidade tem outra luz, outra respiração e várias línguas e culturas. Esta necessidade de nos situarmos, quando há tanta coisa no ar, é importante para assentarmos e percebermos onde estamos.

Gostaria de saber se a banda pretende dar continuidade a este trabalho e em que moldes é que vocês gostariam de conduzir os Cara de Espelho no futuro?
Para já, temos vindo a edificar as coisas para chegar ao ponto onde nos encontramos. Tudo o que é a construção de um disco, a edição e colocá-lo cá fora para o apresentar ao vivo num concerto. É uma estrada longa e não é algo que se faz em dois dias. Portanto, estamos a desfrutar deste momento. Mas, naturalmente, foi necessário escrever mais canções para que o show fosse mais extenso do que só com as músicas do álbum. De repente, ficámos com a sensação de que o caminho estilístico e temático já tem mais portas abertas do que tinha no começo. Por isso, avançámos de uma forma célere e com segurança. Pelo fato de possuirmos mais material nas mãos é provável que peguemos nele e cresçamos para algum lado, embora não saibamos bem o que iremos fazer. No entanto, a vida natural implica que essas canções vão parar a outro registo fonográfico. Mas, ainda não temos a certeza quantas músicas incluiremos no disco.

Têm alguma mensagem relacionada com a vossa música ou outra informação que gostariam de partilhar com os leitores do Scream & Yell?
Escutem Cara de Espelho, porque vão reconhecer aqui e ali pitadas do sal das várias bandas por onde passámos. Mas, sobretudo, vão ouvir uma proposta com um som português que é inesperado e, de certa forma, é diferente do que estão habituados a escutar. Pode ser uma porta aberta para descobrir outros lados da música portuguesa como os Gaiteiros de Lisboa, A Naifa ou o Sérgio Godinho que conhecem bem. No fundo, pesquisar outros passos que nós demos. O brasileiro tem uma riqueza musical incrível e tem outra coisa que é gira (legal) que é o fato de não gostar do óbvio. É um público muito diverso e se calhar quando conhecer os Cara de Espelho vai entender que não é uma proposta muito evidente. Como dizia Fernando Pessoa: “Primeiro estranha-se e depois entranha-se”. Temos uma certa curiosidade para perceber os ecos do Brasil sobre este trabalho, porque ainda é algo pequeno entre nós. Somos um país de menor dimensão e o brasileiro terá dificuldade em abarcar o que se está a passar no Brasil quanto mais em Portugal. Mas, existe um elo comum pelo fato de muitos brasileiros terem ascendência portuguesa e de não serem indiferentes ao que fazemos. É o que for (sorrisos).

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Lucas Tavares.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.