Ao vivo: Cara de Espelho apresenta álbum de estreia em Lisboa com brilhantismo e em sintonia com a atualidade portuguesa

texto de Pedro Salgado, especial de Lisboa
fotos de Joana César

Na primeira de duas noites lotadas no Teatro Maria Matos, em Lisboa, e integrada na tour portuguesa de apresentação do álbum homónimo de estreia dos Cara de Espelho, um fundo amarelo inicial, que cobria o palco e mudaria de cor ao longo do show, no intervalo das canções, deixava antever as silhuetas dos músicos e dava o mote para um espetáculo em que o foco estava, decisivamente, colocado nas canções e na sua interpretação.

O show começou solene ao som compassado da bateria e do bumbo tocados por Sérgio Nascimento, músico que já acompanhou Sérgio Godinho, David Fonseca, Humanos e Deolinda. A vocalista Maria Antónia Mendes, a Mitó (A Naifa, Señoritas), no centro do palco agarrada ao microfone, num registo contido, cantou “Morte do Artista”, enquanto os vários músicos edificavam uma marcha lenta, criando um momento de transe e de posterior aplauso generalizado do público.

Com “Cara Que É Tua” a banda aumentou o ritmo, mas a dinâmica do show acelerou decisivamente com “Corridinho Português” e Mitó deixou vincada a sua identidade na forma como acentuou a lírica da canção, com a sua voz envolvente e o coro dos diversos músicos alicerçado numa musicalidade popular portuguesa contagiante, gerando o primeiro grande momento de comunhão da audiência com os artistas.

Depois da cantora saudar os espectadores com um “Boa Noite lisboetas!”, o grupo regressou à toada calma, mantendo o tom crítico, com “Paraíso Fiscal”, ocasião para o baixista Nuno Prata (Ornatos Violeta) e o guitarrista Luís J. Martins (Deolinda) marcarem o tempo. Com “Fadistão” a banda soltou-se mais e a divertida estrofe: “Estou num bailarico no fadistão cerveja e vinho, sardinha no pão”, fez todo o sentido como tradução musical e lírica de uma canção alusiva à multiculturalidade e à marca do turismo e das novas correntes migratórias na cidade de Lisboa.

“É um prazer apresentar o nosso disco ao público português, porque ele é muito genuíno” disse Mitó dando mote para “Genuinamente”, onde a panóplia de instrumentos tocados imprimiu o tom necessário a uma investida num tema aproximado ao fado canção. De seguida, a cantora apresentou, efusivamente, a seção rítmica do grupo composta por Nuno Prata e Sérgio Nascimento e os Cara de Espelho exibiram alguns temas novos. A primeira, “D De Denúncia”, de teor pop e marcado pelos acordes de guitarra de Luís J. Martins, deu lugar a outra inédita, “Roda Do Crédito”, com um doce balanço africano e pródiga em pequenas sutilezas instrumentais que a banda soube explorar bem.

A crítica ao extremismo político veio ao som de “Dr. Coisinho”, num carrossel instrumental magnífico e comprovativo da imensa qualidade dos integrantes do grupo, acentuado por Mitó na contundente estrofe: “Coisifique aqui o dedo”. Foi a vez da vocalista apresentar Gonçalo Marques (flautins) e o muito aplaudido, experiente músico e multi-instrumentista Carlos Guerreiro, “O construtor desta sanfona que tem ao colo”, disse.

A música “Já Vou” (mais uma novidade) mostrou a forma inteligente como os Cara de Espelho souberam abrandar o ritmo musical e desenvolver uma cadência atrativa enquanto, no emblemático single “Político Antropófago”, o conjunto desenvolveu uma dinâmica interessante e Mitó e Sérgio Nascimento foram o reflexo do empolgamento que se apoderou do elenco com um final frenético e roqueiro que acentuou o sarcasmo da canção.

O show manteve a pegada roqueira na nova “O Que Esta Gente Quer?”, com direito a solos desenfreados de guitarra de Pedro da Silva Martins e do seu irmão Luís J. Martins no final. A performance deu o mote para Mitó apresentar os dois músicos e “o autor de todas as canções”, Pedro da Silva Martins (dos Deolinda), que foi aplaudido estrondosamente pelos espectadores.

“Esta música é para as pessoas que lutam por uma sociedade mais justa e não só para alguns”. Foi assim que a cantora apresentou “Livres Criaturas”, na qual empregou um registo vocal mais expressivo, libertou-se da sua posição habitual junto ao microfone e dançou perto dos outros músicos o embalo agridoce do refrão: “Ai é Venha a censura, Aí é Venha a tortura, Aí é Venham ver como uma livre criatura é”, com direito a acompanhamento do público.

“Testa De Ferro” representou mais uma incursão da banda no território roqueiro que comprovou a maneira hábil como os Cara De Espelho reuniram diversas linguagens musicais e integraram-nas no espetáculo sem perder o estilo incisivo da sua mensagem. E durante a interpretação de “Varejeiras”, um tema cáustico e pujante, Mitó chegou-se mais à frente do palco e a seção rítmica do grupo evidenciou-se. Os músicos juntaram-se gradualmente à vocalista e cantaram em coro e ‘ad lib’ a frase: “A varejeira ligeira a voar em qual de vós é que ela vai poisar?”, num momento marcante e carregado de simbolismo.

Após o desempenho, o grupo abandonou o palco debaixo de vários aplausos e regressou pouco depois para o encore. Escutaram-se ainda a emotiva “Tratado De Paz” (marcada pelo som da guitarra acústica de Pedro da Silva Martins e pela intensidade vocal de Mitó), a inédita de cariz popular “Aldeia Fantasma”, reveladora da excelente articulação dos músicos durante o crescendo instrumental e a reprise de “Corridinho Português” encerrou a noite com a audiência de pé e a dançar animadamente a canção e fazendo jus à letra: “Triste é quem fica a ver dançar”. No final, a banda, visivelmente satisfeita, deu um abraço coletivo e fez uma vénia aos espetadores na despedida.

A fina ironia das letras de Pedro da Silva Martins, que dão corpo a histórias e a personagens vívidas, dotadas de humor ou sórdidas e facilmente identificáveis pelo público e um naipe de músicos notáveis que carregam o “bom peso” dos excelentes projetos por onde passaram (Deolinda, Gaiteiros de Lisboa, A Naifa ou Ornatos Violeta) resultaram num brilhante show de 75 minutos, onde o apelo irresistível da música popular portuguesa conviveu com o rock, fado e o pop, traduzindo da melhor forma um momento social e político português único e em transformação.

Ainda é cedo para fazer o balanço desta nova aventura, mas a qualidade do trabalho do grupo e a forma entusiástica com que tem sido recebido faz dos Cara de Espelho, desde já, os herdeiros naturais de nomes históricos da música de intervenção portuguesa como Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fausto e Zeca Afonso. Por essas razões, o papel da banda em acompanhar e retratar a atualidade portuguesa em canções nunca pareceu tão válido e vital como agora.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.

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