27ª Mostra de Cinema de Tiradentes: “Not Dead” e o movimento punk nos arredores do Centro Histórico de Salvador

texto de Leandro Luz

Ainda que resista nos dias de hoje (como mostrado aqui no Scream & Yell através da websérie Cena Morta), a cena punk “faça você mesmo” de Salvador teve o seu auge nos anos 1980. Felizmente, “Not Dead” (2024) é um documentário que se interessa pouco por nostalgias fáceis, apostando no “agora”. O título faz referência a uma loja que vendia discos e que teve uma importância muito grande para a cena punk soteropolitana. Músicos, fãs e ativistas costumavam se reunir em torno da Not Dead para escrever manifestos, produzir zines e reverenciar o som rasgado, frontal e politizado típico do gênero.

A sinopse oficial dá o tom: “Na terra da axé music, punks velhos resistem e vivem com autonomia”. Acompanhamos, portanto, algumas das pessoas que participaram do movimento punk nos arredores do Centro Histórico de Salvador: Rai, Piolho, Moska, Neilton, Luciano Robô, Ed, Yzgoto, Tinho, Luciana e Robson Véio são entrevistados pelo diretor Isaac Donato, por sua vez inserido nesta cena desde a adolescência. Donato se interessa muito pelo cotidiano de seus personagens, como vivem, no quê trabalham, e coloca debaixo do braço a pergunta-chave: qual é o espaço do punk na vida dessas pessoas ainda hoje?

Rai atua como marceneiro e aparece dando entrevistas constantemente em sua oficina. Moska possui um empreendimento de produção e comercialização de cerveja artesanal, vendendo as suas garrafas pelos bares da cidade. Ednilson Sacramento realiza consultoria de roteiro para serviços de audiodescrição de obras audiovisuais. Este último ganha um interesse narrativo destacado. Donato e seu montador, Frederico Benevides, recorrem ao ofício de Sacramento para conduzir a montagem, opção que justifica a seleção do filme na Mostra Aurora pela sua inventividade.

Donato não se interessa apenas em ouvir as histórias de seus personagens. Como bom diretor que é, ele sabe que precisa interferir na narrativa e criar um espaço para a invenção. Isto se dá em diversos momentos com a interrupção, pela montagem, do fluxo de determinadas sequências, abrindo uma janela para o comentário metalinguístico que se dá via o trabalho executado por Sacramento, que atua na construção do roteiro para a audiodescrição de “Not Dead”. Em determinado ponto, por exemplo, Sacramento conversa ao telefone com alguém da equipe do filme e tenta entender a melhor maneira de transmitir ao público cego, por meio da audiodescrição, como uma motocicleta aparece e some no quadro. O que significa cruzar a tela? Estaria a moto simplesmente atravessando de um ponto ao outro (da direita para a esquerda ou vice-versa) ou fazendo um zigue-zague? Com um simples comentário como esse, nos damos conta de que há muitas possibilidades e complexidades no ato de se narrar um filme. Essa é a compreensão que faz valer a nossa experiência, algo que nos transforma enquanto espectador.

Com isso, o roteiro do filme em si, assinado por Donato em parceria com Marília Cunha, aposta na metalinguagem, algo que pode afastar algumas pessoas menos dispostas para experimentações e mais ansiosas por um documentário tradicional. Não que haja pouca presença musical em “Not Dead”, mas as cenas escolhidas para dar conta do universo da música são relativamente fracas. Imagens e sons precários que poderiam até se justificar pelo teor artesanal da própria cultura punk, mas que na realidade não conseguem trazer a emoção necessária em alguns pontos-chave dos 71 minutos do documentário. É uma lacuna – talvez por opção mesmo dos realizadores – que incomoda, ainda que a obra se paute mais pelas possibilidades de narração do que por elementos usuais documentais como imagens de arquivo e depoimentos formais.

Um exemplo desse problema é a sequência em que Clemente, fundador da banda Inocentes, entrevista via chamada de vídeo uma banda que ensaia em um estúdio local. Nem a música tocada pela banda consegue se traduzir em um grande momento, nem a participação do Clemente (artista mais conhecido nacionalmente dentre os que aparecem no filme) se configura como algo essencial à obra, deixando transparecer, inclusive, aquele velho hábito, comumente visto em documentários de qualquer espécie, de inserir alguém famoso para ganhar alguma repercussão midiática. Não que a presença do baixista, guitarrista e vocalista seja completamente desnecessária (apesar de ser um punk paulista dentro de um contexto baiano), mas certamente não ostenta matizes o suficiente para se justificar.

Uma das discussões mais interessantes é aberta por um dos personagens que fala sobre uma pressão social que podia ser sentida à época: o que significa(va) ser punk em Salvador (no Brasil)? Seria legítimo se espelhar em garotos brancos ingleses de classe média? O próprio personagem responde que não interessava se todos do Sex Pistols eram brancos rebeldes, mas sim que eles eram “punks” e, por serem seus ídolos, era isso que importava. A fragmentação narrativa de “Not Dead”, em geral, funciona bem, mas em situações como essa percebemos que ela não é suficiente. Seria importante para este tema, ao invés de passar para outro assunto ou mergulhar novamente em algum elemento narrativo, que o filme se detivesse um pouco mais aqui, ouvindo quiçá de outros personagens sobre questão de tamanha importância. Punks baianos, punks negros… muita coisa importante para se refletir acaba sendo deixada de lado.

Há três anos, Donato lançou “Açucena” (2021) também na Mostra Aurora em Tiradentes, outro documentário nada careta que narra a história de uma mulher de 67 anos de idade que, a cada ano, celebra o seu 7º aniversário. Na ocasião, “Açucena” venceu a competição e o prêmio foi concedido pelo júri (representado pela curadora e artista Graciela Guarani) por meio da seguinte justificativa: “[o filme] celebra e movimenta as imagens para dar a ver o que não é da ordem do visível”. É curioso como a mesma justificativa poderia ter sido usada para premiar “Not Dead”. No entanto, o júri deste ano, presidido pelo cineasta Affonso Uchôa (“Arábia”), resolveu agraciar o paranaense “Lista de Desejos para Superagüi”, de Pedro Giongo.

Mais sobre a Mostre de Cinema de Tiradentes

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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