Crítica: “Folhas de Outono” é uma comédia romântica possível num mundo “de verdade”

texto de Leandro Luz

“Eu nasci na tristeza e me vesti de decepção”. A frase é entoada em finlandês por vozes agudas sob uma firme levada de bateria eletrônica e sintetizadores pop. A atmosfera é de pura melancolia. Dois homens bebem calados, um ao lado do outro, enquanto assistem a um duo feminino que se apresenta no bar. A expressão do ator principal, registrada em close, somada ao semblante dos figurantes é devastadora. Por alguma razão, ainda que quase afogados em tamanho abatimento, há um espaço reservado aos personagens para a fuga. Há saída diante da devastação. Neste exato instante na trama de “Folhas de Outono”, longa-metragem vencedor do Grande Prêmio do Júri de Cannes em 2023, estamos cientes de que acompanhamos a história de um romance frustrado de um casal que parece condenado à dura realidade de suas vidas. No entanto, logo na cena seguinte, um dos protagonistas, o mesmo homem do bar, alcoólatra que perdera dois empregos justamente por isso, decide sozinho parar de beber. Esta é uma síntese possível para o cinema do prolífico e mordaz Aki Kaurismäki ou, pelo menos, para este seu último trabalho: desafiar ou negar a dualidade otimismo x pessimismo talvez seja a única escapatória.

São muitos os momentos em que Kaurismäki nos põe diante de conflitos existenciais capazes de se relacionarem diretamente com os nossos maiores desejos e as nossas mais traumáticas aflições. A habilidade reside, portanto, na riqueza de emoções orquestradas pelo diretor no decorrer dos curtos 81 minutos de duração do longa. Raiva, resignação, ternura e excitação são apenas algumas das complexas e por vezes simultâneas sensações que o filme nos leva a experimentar.

“Folhas de Outono” acompanha, em constante paralelo, a vida de Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), que trocam olhares pela primeira vez em um karaokê e, posteriormente, precisam superar determinados obstáculos até que possam cogitar alguma coexistência. Uma comédia romântica possível em um mundo “de verdade”. Sintomaticamente, “Folhas de Outono” e a sua maneira inventiva e brilhante de lidar com um gênero tão desgastado, ainda que (e por isso mesmo) pouco explorado nos últimos anos, remete a um dos melhores filmes brasileiros de 2023, “O Dia Que Te Conheci”, de André Novais Oliveira (“Temporada”, “Ela Volta na Quinta”, “Fantasmas”), também uma espécie estranha e rara de comédia romântica protagonizada pelo proletariado. Enquanto no filme de Kaurismäki torcemos para uma estoquista de supermercado e um trabalhador da construção civil assolados pelas notícias da guerra provocada pela Rússia contra a Ucrânia, no de Oliveira nos apaixonamos por um bibliotecário (Renato Novais) e uma secretária (Grace Passô) que trabalham em uma escola pública e trocam impressões acerca de sua mútua dependência de medicamentos psiquiátricos. Em ambas as obras, a atmosfera melancólica (demissões, dinheiro escasso, desencontros) é constantemente acompanhada pelo tom farsesco e ao mesmo tempo afetuoso (comer um pastel na praça, cantar no karaokê, adotar um cachorro), de mise-en-scène metodicamente calculada, apesar de aparentar espontaneidade.

Na primeira cena de “Folhas de Outono”, a cor vermelha marca os uniformes dos funcionários do supermercado em que Ansa trabalha (até ser demitida por surrupiar produtos alimentícios fora da validade). Os armários do cômodo em que os funcionários se trocam quando pegam e largam o batente também são vermelhos, assim como o banco do ônibus que leva Ansa para casa, a qual também é invadida (parede, cortina, sofá, puxadores de gavetas) pela mesma cor. Seria a casa da personagem a extensão do seu trabalho? Sim e não. Há uma tentativa, por demais vacilante, de responder a esta pergunta durante todo o filme. Tal hesitação é o seu trunfo, uma vez que corresponde à ideia de combate diante da suposta dicotomia entre o otimismo e o pessimismo. Ansa se sente oprimida mesmo quando chega em seu lar depois de um longo dia de trabalho. Liga o rádio e é tomada por notícias da guerra. Ainda assim, obstinada a viver para além dessa realidade asfixiante, ela decide trocar de estação, gesto que exprime algo que vai muito além da busca por uma transmissão musical.

“Guerra estúpida!”, Ansa irá desabafar bem mais a frente na trama, quando recebe Holappa em casa para um desastroso jantar. O “desastre”, aliás, não localiza-se nos clichês de cenas desse tipo, e sim em outros elementos: um gole abrupto e abundante em um copo de espumante, seguido de uma constatação relativamente amistosa sobre bebidas acarretará em um rompimento amargo. Algo igualmente interessante acontece nessa cena do jantar. Quando Holappa bebe o copo de espumante de uma só vez, pede por mais e Ansa diz que era apenas um aperitivo. A marcação da diferença entre os dois é salientada. Se até então o diretor, ao lado de seu montador, Samu Heikkilä, trabalhava para aproximar Ansa e Holappa por meio da montagem, por mais que a distância entre ambos, ora apenas física, ora física e emocional, seja grande, nesse momento o que importa é marcar a diferença entre eles. Holappa é demitido duas vezes por beber no trabalho. Por isso o comentário de Ansa (“Meu pai morreu de tanto beber. Não gosto que você beba”) o machuca tanto. Por isso ele retruca decepcionado (“Eu também não gosto de receber ordens”) e sai pela porta sem olhar para trás. Conflitos banais, mas inesperados, nunca clichês.

Toda a noção de transformação é muito importante em “Folhas de Outono”. O rádio ligado no noticiário ou tocando Arrabal Amargo, de Carlos Gardel, é capaz tanto de representar a solidão das personagens quanto de as unir, por meio da montagem e dos raccords sonoros. Kaurismaki e seus colaboradores sempre buscam sublinhar como a vida é moldada por essas metamorfoses. Aliás, esta ideia se faz presente desde o título, “Folhas de Outono” (na tradução brasileira) ou “Kuolleet Lehdet” (“Folhas Mortas”, no original finlandês). São diversos os exemplos, dentro do filme, de como essa oscilação entre o ceticismo e a perseverança impulsionam as decisões das personagens. Na sequência que encaminha o filme para o seu ato final, o vizinho do quarto de pensão que Holappa passa suas noites lhe empresta o casaco para que ele possa reencontrar, bem vestido, a sua amada. No entanto, o vizinho, ao saber a razão pela qual Holappa precisa da roupa emprestada, lamenta o fato dele ir encontrar uma mulher (“Que desgraça!”). Seria este um futuro possível para o protagonista, sozinho e amargurado no seu quarto de dormir?

Os eventos a seguir levam Holappa e Ansa a se encontrarem novamente de um jeito esdrúxulo, por uma razão que merece ser preservada aqui para quem ainda não assistiu ao filme. Nesta interação, ela se recusa a narrar para ele uma história real que lê na revista (um médico fora preso por ter comido a própria namorada e colocado seu corpo desmembrado no congelador) e, ao invés disso, inventa uma notícia feliz (a Finlândia chegara favorita à final da Copa do Mundo contra a seleção do Brasil). A notícia mentirosa e escapista é o símbolo da perseverança de Ansa diante de uma dificuldade quase intransponível. É o recado de Kaurismäki para o mundo.

Ainda no início do filme, quando Ansa perde o emprego no supermercado, isto só acontece devido ao segurança que a dedura para o patrão. Ao ser questionado por ela, o brutamontes profere a seguinte frase: “Eu simplesmente segui as instruções”. Seria este um comentário de Kaurismäki a respeito da natureza do “finlandês médio”? Ou do próprio ser humano? É bonito perceber o ponto de vista do cineasta diante de situações diversas e adversas, elaborado em forma de linguagem cinematográfica com uma elegância e um bom humor raros de se ver, como quando as colegas de trabalho de Ansa a apoiam no ato de sua demissão, ou quando ela dá para Holappa o bilhete com o seu número de telefone, apenas para que o papel se perca tragicomicamente na sarjeta, sem que ele perceba.

Outra sequência merece destaque. No primeiro encontro do casal, quando eles de fato se conhecem – após a troca de olhares no karaokê e depois de Ansa encontrar Holappa desacordado em um ponto de ônibus -, ela acabara de perder o segundo emprego (garçonete de um pub decadente, apesar da reluzente jukebox Wurlitzer que toca “Mambo Italiano” na voz de Olavi Virta, considerado o rei do tango finlandês). Eles decidem, juntos, tomar um café em uma cafeteria e depois, a convite dele, seguir para uma sessão de cinema. “Você escolhe”, ela diz. O escolhido é “Os Mortos Não Morrem”, do cineasta independente estadunidense Jim Jarmusch (filme bastante subestimado, aliás). Aqui, a câmera sintetiza toda a abordagem estética empreendida em “Folhas de Outono”: travellings graciosos que simultaneamente valorizam os cenários meticulosamente construídos e conferem movimento ao filme (como já dito anteriormente, a ideia de transformação, de deslocamento é essencial para a construção narrativa geral); a posição dos corpos diante da câmera, valorizando sempre para onde os personagens estão olhando (esta valorização também ocorre quando eles estão sozinhos em cena); a fotografia que busca integrar as personagens em seus respectivos ambientes – neste momento precioso que é o diálogo em frente ao cinema Ritz após a sessão, a integração total se dá 1) pela luminosidade que a fotografia lança tanto nos rostos dos personagens quanto nos cartazes ao fundo e 2) pelos próprios conteúdos dos cartazes, em especial o de “Desencanto”, obra-prima de 1945 do mestre inglês David Lean, talvez a grande referência para o diretor neste filme, aliada à Bresson (cartaz de “O Dinheiro”, 1983) e alguns outros mais ou menos destacados.

“Folhas de Outono” é ao mesmo tempo um sopro de perseverança e um suspiro terno diante de um mundo absolutamente brutal. Se nascemos na tristeza e nos vestimos de decepção em diversos momentos de nossa vida, nos resta roubar de Holappa a piscadela que ele ganha de Ansa e, tal qual o último plano do filme, em que os dois caminham em direção ao horizonte ao lado do cachorrinho Chaplin, apontar incansavelmente para algum futuro possível.

“Folhas de Outono” estará disponível para streaming na Mubi a partir desta sexta-feira, 19/01.

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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