Faixa a faixa: “Solar: Sun Ra in Brasil”, disco que reúne Metá Metá, Edgar, Xênia França, Jazzmeia Horn, Hamilton de Holanda e mais

texto e faixa a faixa por Xuxa Levy

Quando Béco Dranoff, A&R (Diretor Artístico) da produtora musical norte-americana Red Hot Organization (que já produziu diversos discos icônicos como “Red-Hot + Blue”, 1990; “No Alternative”, 1992 e “Red-Hot + Rio”, 1996, com participações de artistas galácticos do calibre de Madonna, U2, Nirvana, Seal, entre outros) me chamou para produzir a etapa brasileira de uma série internacional de álbuns que estão sendo realizados em homenagem ao maestro norte-americano Sun Ra, confesso que me deu um arrepio na alma, pois sabia o tamanho da profundidade do mergulho que teria que ser dado:

Além de compositor, maestro, tecladista e poeta, Sun Ra é “apenas” o Pai do Afrofuturismo: movimento cultural, estético e político que surgiu nos anos 50 utilizando, a partir da perspectiva do povo negro, elementos de ficção científica para criar narrativas de protagonismo e celebração de identidade. Uma contundente ferramenta de luta social contra o racismo e a opressão, que nos anos 70 dialogou fortemente com outros movimentos como os Black Panthers etc.., quanto com uma sonoridade muito peculiar na história da música mundial.

A The Sun Ra Arkestra (Arca+Orquestra) propunha, como forma de linguagem, um tipo de caos extremamente organizado, conectado com os movimentos da natureza e aos planetas, onde os músicos, que viviam em comunidade, tocavam de forma livre e reagindo, de forma única a estímulos comandados pelo maestro, e faziam de suas apresentações verdadeiras experiências sensoriais. Além disso, outra característica era o uso pioneiro de sintetizadores no jazz e na música independente, possuíam o seu próprio selo, faziam as suas próprias artes de capas, figurinos, maquiagem, etc.).

Uma coisa desde o dia 1 estava muito clara para mim: Esse trabalho NÃO poderia ser uma mera execução “Brazillian jazz” de sua obra. Isso seria muito pouco para reagir a um convite desses, principalmente no recorte da história do Brasil em que vivíamos: Uma pandemia, o país governado sob ideologias neofascistas e negacionistas (milhões de pessoas mortas por Covid, sem vacinas) e racistas (uma pessoa negra sendo morta pela polícia a cada 4 horas no país) segundo a CNN.

A arte de Sun Ra tinha uma grande possibilidade de ecoar de forma crítica e subversiva na mente dos jovens em todo o mundo que lutam contra a opressão. O mais importante naquele momento, deveria ser o discurso literário e, musicalmente, fugir do clichê que se espera de um projeto como esse (sintetizadores, músicos de free jazz improvisando e MCs de rap) e partir para uma linguagem exclusiva, contemporânea, e Afrofuturista Brasileira, que bebe na ancestralidade e espiritualidade dos tambores e cânticos de matrizes africanas, como também à linguagem eletrônica da música pop, passando pelo jazz e apontando para novas rotas de linguagens. E assim foi.

Conheça, abaixo, faixa a faixa, “Solar: Sun Ra in Brasil”

A primeira fagulha sonora que abre o disco Solar são atabaques da Nação Ketu do Candomblé pedindo licença, enquanto Sun Ra se apresenta àqueles que o desconhecem (Mr. Mystery). Assim se dá início à combinação que irá permear todo o disco: a conexão entre o futuro e a ancestralidade do povo negro.

01) ASTROBLACK ORUNMILÁ: Mitologia astro-negra, imortalidade astro-temporal! O símbolo antigo egípcio Ouroboros (a cobra comendo o próprio rabo), presente na tumba de Tutancâmon, é muito presente em muitas culturas mundiais, mas no Brasil se faz presente nos mitos e grafias do Candomblé, e serviu de inspiração para a criação dessa peça. A escolha da Orquestra Afrosinfônica, de Salvador (BA), para ser o fio condutor desse tema não foi à toa. Todos ali, capitaneados pelo maestro Ubiratan Marques levam MUITO a sério seus fundamentos com sua religião, sobre se conectar (religar) com a terra e com o sutil. Quando mostrei a ideia da participação deles ao projeto, me pediram opções de músicas e tempo, pois precisavam absorver a ideia e pedir permissão a seus Babalorixás para executá-las de forma ética e condizente com suas crenças e ideais. “Astro Black” foi a escolhida e arranjada pelo maestro Ubiratan Marques, que me pediu uma condição: que se executasse o canto “Orunmilá” tradicional do povo Ketu, ao mesmo tempo, em sobreposição de vozes (nada é ao acaso… estudiosos do Candomblé e de Sun Ra encontrarão muitas similitudes entre o mito do Orixá e a narrativa em que Sun Ra dizia de si mesmo: o mensageiro que trafega entre o sutil e o terreno, que interpreta o passado, o presente e o futuro para a organização da Terra). A perfeição do arranjo e a execução dos músicos é primorosa, valendo ressaltar o solo inspirado (gravado em apenas um take) pelo jovem saxofonista Nilton Azevedo. “Astro Black” é considerada por muitos como a pedra angular do trabalho de Ra. Sua poesia fala sobre mitologia solar, sobre o som místico, imortal, livre no tempo-espaço, cuja gravação original foi feita pela Sun Ra Arkestra em 1972 (no álbum homônimo lançado pela Impulse) e imortalizada, principalmente, pela inesquecível interpretação da vocalista June Tyson. Nessa nova versão, a voz precisava também de uma interpretação atemporal e eterna. Para tanto, ninguém melhor que a premiadíssima e mais nova sensação do jazz americano Jazzmeia Horn, que arrepia com sua doçura, e seus vocalizes surreais, levando a canção a uma nova esfera sensorial/musical.


02) NATURE’S GOD (SUN RA SAM BA): Grilos, macacos, pássaros e gritos indígenas abrem essa ultra-suingada versão de “This Song is dedicated to Nature’s God” (do álbum “The Antique Blacks”, de 2014), que nasce da inquieta mente do gênio virtuose brasileiro, o multi-instrumentista Munir Hossn (que hoje trabalha com Quincy Jones, entre outros grandes da música mundial). Ao receber a incumbência para essa participação, Munir imaginou Sun Ra celebrando e sendo celebrado, dançando e sambando nas florestas brasileiras, mais precisamente no mais antigo terreiro de candomblé de Salvador, onde Ogãs (percussionistas detentores da sabedoria milenar dos tambores religiosos que possuem o poder de trazer os santos para as cerimônias) acompanham seus violões e guitarras alucinantes. Não à toa, para gravar as percussões, foram chamados Luizinho do Jêje, Kaninan do Jêje e Ícaro Sá, ogãs do Aguidavi do Jêje, uma linhagem de percussionistas que detém esse conhecimento há anos. Para levar a música para a conexão com o resto do mundo e apontar para o futuro, foi chamada a célebre artista e inigualável compositora, poeta, baixista, 10 vezes indicada ao Grammy Meshell Ndegeocello, que gravou baixos groovadíssimos e Mellotrons Strings, vocalizando os versos originais e somando sua poesia à essa Arca Sonora em homenagem aos deuses da Natureza (no Brasil, os Orixás).


03) NINE ROCKET FOR THE PLANET: Essa versão afrocyberpunk acústica da música “Rocket Number Nine” (do disco “Space Is The Place”, de 1998), feita pelo avant-garde trio Metá Metá e o poeta Edgar, seja talvez a obra de “Solar” que mais se assemelha ao estilo livre de caos organizado em que Sun Ra trabalhava com sua Arkestra. Todos ali, reagindo a estímulos que eles mesmos criam… ao vivo, em uma gravação única. Entre samplers, sintetizadores, echoplexes que mudam a rotação da gravação das vozes, se combinam o violão agressivo de Kiko Dinucci, o sax afinado e afiado como uma serra elétrica de Thiago França e a voz original e contundente da cantora Juçara Marçal levando o ouvinte num foguete para fora da estratosfera terrestre em direção ao planeta Vênus. A poesia de Edgar chega como um soco na venta daqueles que acham que o Brasil é uma terra de gente tranquila, alertando para a miséria e o colapso da humanidade no planeta e no Brasil (“Tudo que nos resta é um pedaço de floresta”), que se ausenta quando o assunto é consciência social e ambiental, alertando para os rumos catastróficos que nos encontramos na Terra, e assim, explicando de forma original o porquê do Foguete número 9 e do bordão “Space is the Place”, para “Is a better place to be”, “A Safe Place” já que o futuro do ser humano na Terra está chegando ao fim.


04) WHEN THERE IS NO SUN: Tiganá Santana abre esse áudio filme de ficção cientifica com a delicada poesia de Sun Ra “I Wait 4 You” e entrega para a mítica canção que fala sobre o mar eterno de escuridão – que para Sun Ra significava a cultura negra em si. A Ausência de Luz não é algo ruim, mas sim a onipresença (como no espaço) do NEGRO. O arranjo psicodélico inicia com delicados HandPans (instrumentos de metal que parecem discos voadores, cuja sonoridade lembra os SteelDrums caribenhos) em escalas japonesas, interpretada pelo especialista Alexandre Lora e abrindo espaço para a voz mágica de Xênia França em interpretação que te leva, como uma narcose, para o espaço sideral. Um crescente de cordas (executado em vários canais pelo cellista Jonas Moncaio) suspende a canção para uma preparação apoteótica, que explode num free jazz total, onde os músicos Fabio Leando (piano Rhodes), Sidiel Vieira (baixo acústico) e Jotaerre (bateria) se expressam com vigor, no bom estilo do jazz psicodélico dos anos 1970, enquanto Tiganá Santana entoa a poesia afrofuturista de Sun Ra “The Outer Darkness” de 1972 com vocalizes suaves, que lembram as melhores fases de Milton Nascimento. Ao final do arranjo, essa viagem sideral termina com uma entrega ao vazio total, como que flutuássemos pelo espaço.


05) INTERESTELLAR LOW WAYS: Hamilton de Holanda é um dos maiores músicos do mundo na atualidade, e seu estilo único de tocar bandolim transcende gêneros e encanta em todos os lugares por onde toca. Suas extensas excursões mundiais e participações em grupos clássicos como a Lincoln Center Orchestra de Wynton Marsalis, ou as contemporâneas Snarky Puppy e Dave Matthews são a prova. Hamilton foi convidado para interpretar o único tema instrumental do disco. E escolheu esse, gravado por Sun Ra originalmente em 1960. Não sabemos ao certo o motivo por que Hamilton escolheu esse tema para fazer com seu trio dentre todos que o foram enviados, mas acredito que talvez seja não só pela melodia gostosa que o tema traz, e do ritmo que suinga de forma natural para nós brasileiros, mas também pelo nome em si, sabe? Tem tudo a ver com seu instrumento e seu jeito de tocar: O bandolinista usa um instrumento único feito especialmente para ele, que possui duas cordas a mais, no grave (Low Ways), e ele usa e abusa desse recurso para fazer um solo incrível. Apesar de instrumental, esse tema é um dos mais dançantes do disco, embalada pelo groove preciso dos tambores de Thiago Rabello e pelos teclados Interestrelares de Salomão Soares.


06) BRAINVILLE DAZIDÉIA: A intenção nesse arranjo era reproduzir o astral de Sun Ra e sua Arkestra e executar essa versão totalmente ao vivo, com músicos de São Paulo (a maior urbe da América do Sul) que atuam na cena do street jazz, que flertam com o hip-hop brasileiro e com o samba rock, capitaneados pela mente brilhante de Max de Castro, que fundiu ao tema do maestro americano ritmos afro-brasileiros, como fizeram grandes arranjadores brasileiros dos 60/70, como Moacir Santos, Eumir Deodato, Tom Jobim e tantos outros… Enquanto falas originais de Sun Ra apontam sobre a verdadeira missão do músico, ao fundo, podemos destacar os belos solos de Richard Fermino (clarone), Sintia Piccin (sax tenor) e Estefane Santos (trompete) ao longo do tema. Vale ressaltar o talento do jovem guitarrista Mackson Kennedy e a cuíca (instrumento brasileiro que parece uma voz humana) de China Cunha. Com chave de ouro, o consagrado MC carioca BNegão se junta à trupe e nos brinda com versos imortais que solidificam o discurso que esse disco propõe: A construção de uma nova realidade a partir do som, do poder da música, trazendo luz para a humanidade, e principalmente para as comunidades periféricas no Brasil e no mundo. Que essa luz ilumine todo planeta, trazendo mais integração, coletividade, e respeito entre todos que nele habitam.


O álbum também conta com a participação de Fabricio Boliveira (ator) interpretando versões em português de Poesias de Sun Ra, como: Black Prince Charming (com a participação do musico experimental baiano Edbrass Brasil, e seus instrumentos raros e estranhos) e I Am An Instrument, com a magnífica Jazzmeia Horn criando texturas de efeitos vocais ao fundo.

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