Paraíso do Rock 2023 celebra intercâmbio latino e atesta que Congadar e Maciel Salú merecem circular nos festivais do país

texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas

À primeira vista, o nome Paraíso do Rock pode enganar incautos: é fácil escutá-lo e pensar numa reunião digna de Valhalla roqueira, com motoqueiros barbudos com cara de mau, bandas cover com guitarras de dois braços e certo bafo de Jack Daniel’s. Nada mais distante da realidade do festival realizado na cidade paranaense de Paraíso do Norte, nos últimos dias 29 e 30 de setembro. Em sua 13ª edição (a primeira após a pandemia), o evento trouxe uma proposta ousada: unir os povos da região a partir da música, apresentando os mais variados sons ao público do município, que tem menos de 15 mil habitantes.

Com patrocínio de Itaipu (uma empresa que por si só já é binacional em sua fundação), a curadoria uniu bandas locais, grupos de diferentes Estados do Brasil e até mesmo conjuntos do Uruguai, da Argentina e do Paraguai. O resultado foi um lineup variado não só na geografia, mas também em propostas sonoras que iam do certeiro “rock 1-2-3-4” até explorações mais avançadas, passando por congado, maracatu e boas doses de psicodelia. “Essa é a edição da integração sul-americana do Paraíso do Rock. O futebol nos divide, mas a música nos une”, conclamou a certa altura o organizador do festival, Beto Vizotto, que dividiu neste ano a curadoria com o jornalista Leonardo Vinhas, repórter deste site e veterano de coberturas do evento.

Beto Vizotto

Prefeito da cidade em terceiro mandato pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Vizotto circulou pelo Paraíso do Rock com camisetas da seleção da União Soviética e do grupo paraguaio de ska punk Deficiente, uma das atrações da segunda noite. Não foi só: ele também estava no meio da rodinha de pogo no show de encerramento do festival, conduzido pela veterana banda uruguaia Trotsky Vengarán. Comandando uma pequena cidade onde a soja e a cana-de-açúcar crescem fartas, em meio aos modões sertanejos, “Betão” é uma figura singular e inspiradora – ainda mais ao se considerar sua liderança na região do entorno de Maringá, localizada a 85km de Paraíso do Norte e berço do inventor do neologismo “conje”.

Integração, aliás, não é mera palavra figurativa. Na maioria dos festivais Brasil afora, é bastante comum que as bandas que tocam num mesmo evento, mas em dias diferentes, nem cheguem a se trombar pela cidade. No Paraíso do Rock, porém, se as agendas permitirem, os grupos não só se encontram como também são convidados a participar conjuntamente de um churrasco na tarde do sábado – com direito ao prato típico da região, a leitoa desossada à pururuca, violões plugados para jam sessions e boas cervejas artesanais, cortesia das cervejarias locais Paraíso e Araucária (esta última, de Maringá).

Encontros assim são ocasiões que não só relaxam os espíritos, mas também fazem com que a troca de ideias entre os músicos flua abertamente, algo importante para o intercâmbio musical e cultural. Após passar o dia empolgado com um corte de carneiro particularmente bem temperado, o vocalista do Trotsky Vengarán, Guillermo Peluffo, resumiu bem o espírito da coisa durante o show de sua banda: “nada es más importante que un asado”. Errado ele não está.

43duo
43duo

Na noite da sexta-feira, 29, quem abriu os trabalhos no Centro de Tradições Gaúchas São Jorge (tradicional sede do Paraíso do Rock desde a primeira edição, em 2008) foi o 43duo, do município vizinho de Paranavaí. Formado em meio à pandemia pelo casal Hugo Ubaldo (guitarra e voz) e Luana Santana (bateria, teclado e voz), a dupla subiu ao palco às 22h trazendo o repertório de seu primeiro disco, “As Pessoas & As Cidades”, bastante calcado na neopsicodelia – como não deixam mentir canções de nomes como “Eternidade Contrária”, “Fora do Sonho” ou “Rememorar”.

Em estúdio, o trabalho remete demais ao universo de Kevin Parker e o seu Tame Impala. Já ao vivo as músicas do 43duo ganham certa textura mais rústica, até um pouco punk, graças à mão pesada de Luana. Mão mesmo, no singular: não raro, ela dividia seus membros superiores entre as baquetas e a tecla de um sintetizador Korg, em um esforço de sincronia impressionante. (“Será que ela ganha dois terços do cachê?”, chegou a gracejar alguém na plateia, à boca pequena).

Bike

Quem também rezou pela cartilha da psicodelia na primeira noite do Paraíso do Rock foi o grupo paulista Bike, do Vale do Paraíba. Com uma sessão gravada na rádio americana KEXP e o recente lançamento “Arte Bruta” na mala, a banda chegou ao norte do Paraná com torcida local e muita expectativa. Mas a expectativa foi do tamanho da decepção: ao subir ao palco, o quarteto parecia desencontrado e confuso, parecendo incapaz de fazer sua nave-mãe decolar.

Um leve contratempo com a bateria, que a fez tombar do praticável logo no início do espetáculo, atrapalhou ainda mais o ritmo da banda. Outro entrave foi o fato de que a Bike tinha ainda uma comunicação limitada com o público – não raro, era possível flagrar os instrumentistas de costas para o palco, provavelmente tentando se achar. Uma pena e um desperdício, especialmente pela presença de boas canções – como é o caso de “Santa Cabeça”, que atualiza para a era do burnout e outras doenças da mente o mote persecutório da clássica “Cabeça”, de Walter Franco.

Congadar

É preciso dizer, porém, que mesmo em um dia bom, o Bike teria uma missão difícil ao suceder aquele que foi o show mais impactante do festival: o do Congadar. Vindo de Sete Lagoas (MG), o sexteto parte de uma receita que não chega a ser exatamente nova: misturar um ritmo tradicional brasileiro à potência do rock e do blues eletrificado, algo que Chico Science e a Nação Zumbi já provaram que funciona há quase três décadas. No lugar do maracatu, porém, o Congadar tem como base um ritmo menos explorado em fusões: o congado, manifestação cultural afro-brasileira bastante presente em Minas Gerais. Mesclando adaptações do repertório tradicional do folguedo que recria a coroação de um rei do Congo com canções originais, o grupo é dono de uma sonoridade que é, ao mesmo tempo, ancestral e urgente.

À frente, um trio de percussionistas e cantores comandado pelo Mestre Carlos Saúva traz nas vozes e nas caixas uma força incontestável. Na cozinha, a formação clássica de guitarra-baixo-bateria auxilia os homens da dianteira para quaisquer direções que o vento soprar – e isso faz o Congadar alternar entre balanços para chacoalhar corpo e espírito e canções que tocam a alma, em bonitos arranjos de vozes, lembrando a história do povo negro. Mais que isso: ao recordar injustiças de séculos, contando histórias de perseguição, navios negreiros e a busca pela liberdade, o Congadar faz refletir as injustiças que permeiam infelizes estatísticas e manchetes na contemporaneidade. Se precisa desenhar para explicar, vamos lá: “a cada 27 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Essa conta é estranha”, lembrou Mestre Saúva, antes de cantar a belíssima “Chico Rei”, ponto mais alto de um show que merece rodar o Brasil para ser muito escutado, dançado e chorado.

Bestia Bebé

Já o encerramento da sexta, já pela 1h da madrugada, coube aos argentinos do Bestia Bebé, que jogaram bonito e sem retranca nem catimba. Donos de excelentes riffs, na escola Ramones-J&MC-Guided by Voices-Strokes, o quarteto comandado pelo guitarrista Tom Quintans não denunciava o cansaço da viagem para chegar até Paraíso do Norte – o percurso incluiu um voo doméstico na Argentina até a fronteira em Puerto Iguazú e mais cinco horas de van até o Paraná. Com canções estridentes e bonitas, entre rocks acelerados e baladas guitarreiras, o Bestia passeou por um repertório que já conta uma década de maturação, entre standards underground argentinos como “Lo Quiero Mucho a Ese Muchacho” e “Un Documental Sobre Mí” à fresquinha “El Verano”, lançada há poucos dias.

E se aqui vale uma piada de futebol, é preciso dizer que o Bestia jogou bonito fora de casa e aproveitou os minutos finais para ampliar o placar. O relógio já passava das 2h da manhã, mas os argentinos adentraram os acréscimos marcando dois tentos: primeiro, com a vinheta nostálgica do clássico game noventeiro “International Superstar Soccer” (na introdução da ótima “Omar”) e depois com a celebratória “Fiesta en el Barrio”. “Hoje há festa no bairro e nunca vai terminar”, diz o refrão – e boa sorte para quem tentasse negar lutando contra os músculos do rosto, porque o sorriso àquela hora era não só irresistível, como irrefreável.

Little B and the Mojo Brothers

Com os ouvidos ainda levemente zumbindo (e o corpo se recuperando do churrasco vespertino), o segundo dia de Paraíso do Rock começou com a Little B. and the Mojo Brothers, de Maringá. Dona do recém-lançado disco “Canela Baby”, o grupo trafega entre o blues rock hippie dos anos 1960 e seu revival mais pesado nos anos 1990. Ao subir ao palco, a impressão era de que o quarteto tentava transformar o CTG São Jorge numa espécie de Fillmore West interiorano.

Com torcida local, faixas e muita gente uniformizada com a camiseta da banda, o conjunto gastou a maior parte do tempo em clichês que repetem o padrão do gênero, a despeito dos esforços da vocalista e tecladista Beatriz Colnago, a alma do grupo (“Little B.”, sacou?). Mas uma canção mostra potencial: cantada em português e dividida com o 43duo, que retornou ao festival para uma participação especial, “Boy Neon” desloca o Little B. and the Mojo Brothers da Califórnia para Catende, emulando o melhor da psicodelia nordestina numa trilha que pode dar frutos num futuro próximo.

Deficiente

Na sequência, uma banda que veio do Paraguai para te divertir. “Para o quê?”, perguntará o incauto leitor. “Paraguaia!”, responderá este escriba, com um sorriso traquinas no rosto. Não é culpa nossa: é difícil não entrar no clima buena onda juventud do Deficiente, um sexteto de ska-punk que vem, como diz o vocalista Guillermo ‘Rata’ Rasmussen, de “um país um pouquinho mais terceiro mundista que os outros”. O Paraguai é logo ali, mas não parece: se o Bestia Bebé encarou cinco horas de traslado, o Deficiente enfrentou doze horas numa van, logo após deixar o palco do festival local Reciclarte, para chegar a Paraíso do Norte. Visivelmente emocionado, Rassmussen contou em excelente portunhol que aquela era a primeira vez que o grupo saía de seu país para “fazer musiquinha” – as aspas são dele, porque o Deficiente faz música mesmo, sem diminutivos.

Claro, é importante considerar que o grupo raramente sai da paleta ska-punk, mas o faz com tanta energia e entrega que é difícil não se entusiasmar. De um lado, o vocalista salta descalço e lembra Tim Maia ao cantar o refrão de “Do Leme ao Pontal”. Do outro, o guitarrista Seba Arze balança a cabeleira, enquanto o baixista Guille Guillén enverga sacana uma camiseta escrito “Jesús: el rey de todos”. Alheia a quase tudo isso, mas vibrando em rotação própria, a saxofonista Lara Garcete dava um colorido especial ao som do grupo. Em meia hora, o Deficiente fez todo mundo pular, seja em espertas criações próprias, como “Calentame Global”, ou em releituras bem amarradas de Sublime (“DJ’s”). Pena que o cansaço da viagem bateu: ao final de meia hora, o grupo perdeu o pique e encerrou o show com uma baladinha ska tristonha, não sem antes perder a pose. “Essa é uma canção para quando você descobre pra que serve o cotovelo”, disse o vocalista antes de dizer “adiós”.

E já que o Deficiente acabou seu espetáculo ligeiramente antes do combinado, aproveitamos uma pausa para falar de outra atração do festival: o cardápio. Comandado pela Associação de Proteção à Maternidade e à Infância (APMI) de Paraíso do Norte, a lanchonete do Paraíso do Rock trazia boas opções de pastel de carne (R$ 10) e cachorro quente (R$ 12 e molho de tomate generoso, a ponto de ficar esgotado no final do sábado). Entidade beneficente para a qual são destinados os recursos obtidos com o evento, a APMI realiza atividades no contraturno da escola pública, oferecendo cultura e arte para as crianças locais. Já o bar trazia sete opções de cervejas em doses de 400 ml. Entre as opções, destaque para dois rótulos da Araucária: a saborosa sour Mangojá (R$ 10), que misturava manga e maracujá, e a extrovertida session IPA Piñacolada (R$ 14), em que o aroma de coco e o final seco serviam como um jogo de combate e recusa interessantíssimo para o paladar dos convivas.

Gargantas aliviadas e refrescadas foram, aliás, pré-requisito para o concerto seguinte da noite: filho do histórico Mestre Salustiano, o rabequeiro Maciel Salú já havia conquistado corações em sua primeira passagem pelo Norte do Paraná em 2015. Dessa vez, ele cometeu o show com maior apelo popular do festival, com canções gritadas a plenos pulmões pela plateia de aproximadamente 350 pessoas, segundo o Instituto Estatístico Scream & Yell. Por pouco mais de uma hora, o Paraíso do Rock foi também o Paraíso do Frevo, com uma competentíssima banda comandada por Salú fazendo o público arrastar a sandália e pintar o sete como se estivesse nas ladeiras de Olinda.

Salú, porém, não se resumiu às brincadeiras. O primeiro terço de seu show foi dedicado a um repertório mais cancioneiro – incluindo “Gaiola da Saudade”, já gravada por Elba Ramalho. Já a parte do meio teve uma força espiritual avassaladora, especialmente em canções originais como “Ogum”. Seja por qualquer uma de suas facetas, eis aqui outro nome que merece entrar no circuito de festivais brasileiro. Em tempos em que a brasilidade avança frente ao rock na maior parte das curadorias, Maciel usa a potência do gênero como base para uma quantidade inesgotável de misturas, celebrando a força das músicas populares do nosso país. Bonito de ver e de ouvir.

Maciel Salú

A essa altura do campeonato, triscando as duas da madrugada, era possível acreditar que nada mais sairia de bom do Paraíso do Rock. Melhor para os incrédulos que não arredaram pé. Quem ali ficou pode testemunhar o rolo compressor dos uruguaios do Trotsky Vengarán, que subiram ao palco após uma homenagem do curador Vinhas ao argentino Ruben Scaramuzzino, criador do site Zona de Obras, da Aliança Faro (da qual este Scream & Yell faz parte) e importante voz na difusão e no intercâmbio da música iberoamericana. Se tinha gente na plateia que sabia cantar quase tudo do repertório de três décadas dos hermanos, parte do crédito pode ser dado a Ruben, que faleceu na última semana, vítima de um câncer.

Fundado em 1991, o Trotsky Vengarán é uma instituição do rock uruguaio, mas pouco conhecido por aqui. O que talvez explique uma das primeiras frases ditas pelo guitarrista Hugo Díaz no palco: “Nós descobrimos que não sabemos nada de português… mas nós somos a melhor banda da galáxia!”, anunciou ele, antes de emendar em mais uma sequência de riffs retos e diretos. Ao longo de três décadas, o Trotsky Vengarán é fiel tributário do “rock 1-2-3-4”, mas toca com uma energia que é difícil de botar defeito – seria como criticar a beleza de um x-burger perfeito (ou um chivito) no meio da madrugada, não é mesmo?

Com animação lá no alto e não se importando em tocar para uma plateia já diminuta, o Trotsky fez um show divertidíssimo, com o vocalista Guillermo Peluffo dedicando canções aos amigos “argentinos e paraguaios”, “à toda a malta corinthiana” e não poupando gestos, caras e bocas. Entre os pontos altos, vale destacar a empolgante “Más Allá o Más Acá” e a dançante “El Tsunami” – isso para não falar na festa-punkê de “Noche de Rock”, com aquela rodinha de pogo educada entre sujeitos de 35 anos ou mais, uma oferenda à Santa Igreja dos Ramones. Ao final de tudo, Peluffo cantava que “a veces, la vida es una mierda” – mas mesmo com os joelhos e a lombar doendo, era difícil concordar com ele naquele momento.

Trotsky Vengarán
Trotsky Vengarán

Em duas noites e oito shows, o Paraíso do Rock não só concretizou sua missão de integrar bandas da América Latina e do Brasil, mas também apontou caminhos estéticos muito interessantes para a utilização de guitarras em alto e bom som na segunda década do século XXI. Seja utilizando o cânone com alto astral, seja misturando peso e força com ritmos populares, há muita música a ser feita, descoberta e escutada neste mundão velho sem porteira – e, torçamos, cada vez mais sem fronteiras.

Há que se pesar, para uma prosa adiante, uma discussão sobre a sustentabilidade econômica de um evento como esse, com público pagante girando em torno de 600 pessoas na soma dos dois dias. Mas, ao romper a monocultura de gêneros musicais em um cantinho muito especial do Brasil, apresentando sonoridades mil, o Paraíso do Rock merece um lugar cativo na agenda de festivais do país. Se por acaso a estrada te levar até o Paraná em algum momento de setembro, saiba que esse é o lugar para se estar.

Relembre como foram as edições do festival Paraíso do Rock em 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

One thought on “Paraíso do Rock 2023 celebra intercâmbio latino e atesta que Congadar e Maciel Salú merecem circular nos festivais do país

  1. Música é liberdade. É dizer, fazer e tocar. Festival e bandas Top e agora a espera da próxima edição em 2024. #paraisodorock

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