Balanço: Festival Paraíso do Rock 2016

Texto por Leonardo Vinhas
Fotos por Andye Iore

Numa manhã de sábado chuvoso, um carro de som anunciando o obituário da cidade se soma ao ruído de pneus sobre poças d’água, o único som de uma sinfonia urbana de um universo muito particular: Paraíso do Norte, diminuto município próximo de Maringá, no interior do Paraná. Nesse cenário entre o bucólico e o depressivo, a cidade vive dias atípicos e movimentados, com a inauguração de sua Casa da Cultura e o festival Paraíso do Rock. Em 2015, o Scream & Yell já havia feito a cobertura do festival e também entrevistado seu organizador, o prefeito Beto Vizzotto. Já havia sido possível entender os objetivos do evento, conhecer a cervejaria Araucária e saber que a curadoria sempre reserva algumas surpresas. Nessa edição de 2016, esses elementos não mudariam. Ou teriam mudado? Que uma recapitulação ajude a por tudo em perspectiva para responder essa pergunta.

Na sexta anterior, dia 15 de julho, o festival se iniciara. O duo gaúcho Tujalmas não era bom presságio: os músicos Cidão (The Djalmas) e Tiago Duarte apresentam versões acústicas de canções do underground gaúcho. Releituras óbvias de um repertório idem (para os que conhecem esse underground, claro). A relação imediata é com esses duos que tocam em bares de happy hour cheio do “pessoal da firma” – a única diferença era que o repertório tinha Wander Wildner e The Djalmas em vez de Jota Quest e “Mr. Jones”, do Counting Crows.

Porém, o festival recobraria seu “elemento surpresa” com a boa apresentação de Jarrah Thompson. Se o nome não lhe soou familiar, não estranhe: mesmo tendo morado por um tempo no Brasil, o jovem australiano não é dos mais conhecidos. Uma injustiça: Thompson junta elementos de folk e country a uma base percussiva que remete tanto ao folclore de seu país de origem como ao rock psicodélico menos hermético dos anos 1970. Essa mistura se apresenta ora em canções circulares (quase mântricas), ora em progressões que convidam para a festa roqueira. A formação da banda se adequa às condições das turnês, podendo chegar a ter seis músicos, mas apenas um trio ocupava o palco do CTG São Jorge: Jarrah (violão, guitarra e banjo), Bianca Aviaz (percussão) e o brasileiro Bernardo Fajoses no baixo.

Porém, antes da apresentação, Bianca garantia: “Você não vai sentir falta da banda, a gente dá um jeito de preencher os espaços”. Promessa cumprida: o banjo usado como uma cítara, as linhas de baixo entre o rock setentista e a world music, mais a força percussiva e o carisma cênico de Bianca eram bons o suficiente para que se relevasse o uso de trilhas pré-gravadas, e a combinação rendeu um daqueles shows de deixar o bar vazio, já que todo mundo foi para a frente do palco para dançar. É verdade que algumas poucas canções têm uma estrutura mais convencional, mas até quando se envereda por um blues à “Hoochie Coochie Man” – o clichê-mor do rock, convenhamos – os arranjos garantem que tudo soe novo e fresco.

Na sequência, tudo aumentaria: o frio, a psicodelia e, principalmente, o volume. Os Muddy Brothers, de Vila Velha (ES), foram responsáveis pelos dois últimos. A banda costuma ser mencionada como um representante do stoner rock no Brasil. Entretanto, é mais justo pensar em uma versão anfetaminada e barulhenta (mas não menos apurada) dos Black Crowes. O vocal de João Lucas Ribeiro ajuda muito para isso, assim como o visual da banda, claro, com as raízes do southern rock servindo de âncora para ambos. Um comentário que escapou no público era elucidativo: “Se esses caras tivessem aparecido no fim dos anos 90, teriam sido contratados pela Geffen” (gravadora que na época abrigava os Crowes e o Jayhawks por exemplo). Simplifiquemos: os Muddy Brothers são uma banda rock’n’roll, facilmente identificável como tal, e nem por isso caricata. Melhor show do festival, fácil.

A cervejaria Araucária, de Maringá, estava presente no evento nas versões Weizen e Pilsen, além da Lager lupulada que leva o nome do festival. Ótimas cervejas, mas a intensificação da chuva convidava a trocá-la por um Malbec argentino, vendido em copo americano a honestíssimos R$ 8. E nesse espírito mais contemplativo foi ainda mais prazeroso contemplar a breve apresentação dos alunos do CRAS (Centro de Referência e Assistência Social) de Paraíso do Norte, uma das muitas iniciativas de arte-educação da prefeitura local. Combinando riffs de guitarra e percussão pesada, os jovens mandaram uma espécie de batuque punk numa apresentação breve e divertida, que serviu de aperitivo para os headliners da noite, os Replicantes.

Da formação original do quarteto gaúcho só sobraram os irmãos Claudio e Heron Heinz. Mesmo sem Carlos Gerbase e Wander Wildner, a banda não soa cover de si próprio – o vocal riot grrrl de Julia Barth dá uma boa renovada na sonoridade sem que o peso seja afetado. Mas é um show para fãs e “convertidos”. Quem não pegou apreço pela banda na adolescência dificilmente vai ficar seduzido pelos versos toscos de “Nicotina” ou “Festa Punk”. Mas não dá para ser ranheta com uma banda que carrega a eficiência de algumas décadas nos palcos. Infelizmente, São Pedro não se importa muito com o punk, e o temporal que caía provocou um blecaute na cidade toda, interrompendo o show antes do final.

O sábado amanheceu chuvoso, dificultando qualquer turismo pela cidade. O sol tomaria força no período da tarde, mas o corpo pedia repouso. A noite veio seca, com um frio intenso, e a falta de paredes na estrutura do palco do CTG São Jorge aumentava a friaca, provocando movimento no bar: muitos saíam com um copo de quentão em uma mão e um de cerveja na outra. As camisas floridas do trio Terremotor, de Umuarama (PR), destoavam desse cenário gélido, mas combinavam muito bem com sua surf music de escola clássica, com o twin reverb consagrado por Dick Dale ditando a sonoridade de muitas canções. Em algumas delas, o guitarrista Duda Victor trocava sua guitarra pelo que parecia ser uma dorma (instrumento de cordas russo). Ao fim do show, algumas pessoas gritaram perguntando onde podiam comprar CDs da banda (que ainda não tem nenhum lançado – só um disco ao vivo digital). E tem gente que ainda fala de “morte do formato físico”…

Beto Vizzotto pedira aos Replicantes que a banda “continuasse” o show da noite anterior, e foi atendido: as 10 últimas canções programadas para sexta acabaram rolando no sábado. Entre elas, estavam os hits “Surfista Calhorda” e “Festa Punk”. Com um som bom, tão pesado quanto nítido, e esses hits, não tem indisposição que resista, e a festa funcionou, mesmo com o baterista Cleber Andrade se perdendo completamente na metade de “Surfista Calhorda”.

Na sequência, o pernambucano Juvenil Silva veio com seu rock que parece mais inspirado no Brasil (Raul Seixas acima de tudo) que nos EUA ou na Inglaterra. A boa apresentação da banda – cheia de ótimos músicos – ajudou a lavar da memória o show desencontrado e frustrante do festival El Mapa de Todos de 2014. A voz continua sendo um problema – desafinações e sílabas desarticuladas não são raras, o que acaba desperdiçando as boas letras, quase todas focadas no cotidiano. Mesmo assim, o público aderiu com gosto, e é preciso lembrar que “Bodeado” é um achado. O baterista da banda de Juvenil continuou no palco após o fim do show, puxando um groove que serviu de trilha para apresentação de um crew de b-boys locais, tendo à frente o grafiteiro (e professor de grafite nas escolas públicas) Felipe Newmove, que ainda fizera sua arte com tintas ao vivo ao lado do palco durante a apresentação dos pernambucanos.

Os Expulsados, banda cujo vocalista Sebastián é conhecido por ter feito turnês com Marky Ramone, entregaram exatamente o que se espera deles: um punk rock rápido, inspirado no lado mais bubblegum dos Ramones. Dá pra dizer que é correto, se você simpatiza com a banda, ou que é um cover mal-disfarçado, se a empatia não estiver abundante. O fato é que é um show com sabor de fast food de praça de alimentação: funciona na hora, esquece-se logo depois.

O encerramento cabia aos Faichecleres. Então, sabe aquela conversa sobre caricatura de rock? O que dizer de uma banda cujo maior hit é “Ela Me Quer Só Pra Me Ter”? Não, não se trata de uma banda com humor, e sim de uma banda “engraçadinha”, com aqueles clichês sexistas juvenis e o espírito “beber pra cacete e pegar as mina” que não ficaria deslocado no sertanejo universitário ou no funk ostentação. A diferença é que eles usam estruturas manjadas do rock sessentista em vez de beatbox tosco ou vaneirão acelerado e pasteurizado. É possível que a própria banda saiba que não deve ser levada a sério, mas nem como brincadeira dá para encarar. E assim, a noite estrelada de Paraíso do Norte ganhava um caminhante que regressava mais cedo.

Recapitulação feita, é possível avaliar essa edição do Paraíso do Rock. Que um festival consiga manter sua regularidade, com line-up combinando artistas nacionais de diferentes regiões do país e também internacionais, já é um feito notável. O segundo é que há alguns contrastes: o cuidado com a qualidade do som garante que todos soem bem, só que os intervalos entre uma apresentação e outra tiram um pouco o foco do público – Jarrah Thompson chegou a demorar 30 minutos para começar sua apresentação. A outra dicotomia está na própria curadoria, que incluiu artistas e formatos que involuntariamente enfatizam a caricatura roqueira, como Faichecleres e Expulsados.

O evento se beneficiaria ao se retomar a tendência das últimas edições, que permitia propostas estéticas mais variadas. A edição de 2015, por exemplo, conseguia ter o folk psicodélico dos uruguaios Molina y Los Cósmicos e a música pernambucana de Maciel Salú junto com o rock garageiro dos Autoramas e o surf rock pesadão do The Mullet Monster Mafia.

Claro que ousadia não é sinônimo de qualidade, e que é possível ser “canônico” sem perder o apelo: estão aí os Muddy Brothers para provar que a tradição pode ser usada a favor da boa música. E eles não ficaram deslocados entre a psicodelia praiana de Jarrah Thompson e o batuque enguitarrado dos jovens alunos do CRAS de Paraíso do Norte. Assim, será interessante que o festival use essa edição para reavaliar sua proposta e sua missão, assim como alguns aspectos da organização. Porque a importância de se ter um festival desse porte no interior de um dos Estados mais rurais e conservadores do país não é simbólica: é real, e extremamente valiosa. Que, como o gênero que o inspira (e é a paixão de seu fundador e organizador), o Paraíso do Rock saiba se renovar e ampliar horizontes: os de seu público e o seu próprio.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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