Balanço: Festival Paraíso do Rock 2017

por Leonardo Vinhas

“O rock não está em crise. O que está em crise é o que as pessoas acham que é ou não rock”. A frase é de Juan Moreno, da banda colombiana The Rolling Ruanas, e aplica-se ao cenário rock de qualquer país do Ocidente. Há quem diga que o rock hoje atende apenas à caricatura do “tiozão do motoclube”, da feira de food truck com cerveja artesanal e “hambúrguer gourmet”; há quem o veja como um produto plástico e estetizado para adolescentes de classe média; e há, claro, quem diga que “o rock morreu” e continue repetindo que os mesmos nomes de sempre são os únicos que valem ser escutados (uma conversinha que se repete desde a morte de Buddy Holly, diga-se).

A verdade é que nada disso importa para Beto e Arthur VIzzotto, organizadores do Paraíso do Rock, um evento que ocupa um espaço singular no cenário de festivais independentes brasileiros. O festival é um ato de amor a um gênero ao qual os organizadores não dedicam elocubrações teóricas nem papos saudosistas. O objetivo é simplesmente fazer uma festa, que deve ter valor em seu momento, e que possa ser capaz de oferecer algo diferente a um município de 13 mil habitantes do interior rural do Brasil.

Evidentemente, há intenções na curadoria: além de ter espaço para o rock paranaense, ela sempre abriga nomes das mais variadas regiões do país, veteranos ou iniciantes, além de contar com pelo menos uma atração latino-americana. E sendo essa uma edição comemorativa (10 anos de existência), a programação dos dias 14 e 15 de julho tinha que deixar esses princípios em evidência, desviando um pouco da rota mais caricatural que dominou a edição de 2016.

A primeira atividade do festival foi um Tributo a Belchior, realizado na Casa de Cultura de Paraíso do Norte. O jornalista Jotabê Medeiros falou sobre o compositor, falecido há pouco, e antecipou histórias que estarão presentes na biografia que escreveu sobre ele, intitulada “Apenas um Rapaz Latino-Americano” e com lançamento previsto para setembro. Suas falas eram entrecortadas por versões acústicas das canções do homenageado, feitas por Cidão Tim (The Jalmas), colaborador regular do Paraíso do Rock.

Como em todos os anos, os shows rolaram no CTG São Jorge, e sempre vale destacar a divertida contradição implícita em ter um festival de rock em um centro de tradições gaúchas. Também vale ressaltar a presença da cervejaria Araucária, de Maringá (PR), que nesse ano levou cinco chopps para o festival (IPA, Pilsen, Weiss, Brown Ale e a ótima Lager que leva o nome do evento), vendidos a R$ 8 (300 ml) e R$ 10 (500 ml) – “porque não tem cabimento o cara ir pra um festival de rock e tomar cerveja ruim e cara”, como diz Beto Vizzotto. Cachorro-quente e pastel eram comercializados a R$ 5, em tamanho e quantidade dignos de qualquer larica, e havia até vinho quente para suportar o frio da madrugada (o espaço é coberto, mas sem paredes).

Os Helvéticos, de Bombinhas (SC), deram a largada com um som de ambições pop e diretamente influenciado pelo lado mais acessível dos Black Keys. Às vezes, buscam um peso um pouco mais elaborado, mas no geral seu trabalho desemboca em um som de riffs simples e climas “pra cima”, rock radial contemporâneo bem-feito e breve. Brevidade, porém, foi o que faltou aos paraibanos Seu Pereira e Coletivo 401. A banda honra as fontes nas quais se inspira – samba rock, mangue beat, soul brasileira dos anos 60 – e vem calcado no groove de guitarra, ao qual se somam o bom (e econômico) uso de teclados, trompete e trombone, mais a ótima cozinha de Thiago Sombra (baixo) e Victorama (bateria). Ganharam rapidamente o público, e esse foi o “problema”, já tiveram o aval da organização para estenderem sua apresentação para quase uma hora e meia, dobrando o tempo originalmente previsto. A plateia não se importou – na verdade, não foram poucos os que consideraram esse o melhor show de todo o festival – e dançou animadamente até o fim, mas não era hora nem lugar para fazer um show desse tamanho, principalmente considerando que eles começaram pouco antes da meia-noite. O atraso empurrou as demais apresentações para mais tarde, desfalcando de público a última banda, os brasilienses Almirante Shiva, que subiram ao palco quando já era alta madrugada.

Antes deles veio Wander Wildner, com uma empolgação raras vezes vista nas apresentações do gaúcho. Ele parecia estar onde queria fazendo exatamente o que tinha vontade. Iniciou com “Bebendo Vinho” e enfileirou canções de todos os discos (que beleza que é “Meio Bauhaus, Meio Inverno”, do recente “A Vida É Uma Toalha Estendida no Varal”) com a esperada tosquice – ninguém vai ver o Wander esperando um vocalista técnico ou um virtuose na guitarra, né? Mas sua banda, com a baixista Georgina e a baterista Pitchu, estava com o mesmo ânimo do líder, e a inventividade de Georgina dava um pouco mais de cor às execuções. Wander ainda abriu o microfone para Arthur Vizzotto cantar “Amigo Punk” e entregou sua guitarra ao músico local Tiago Duarte para uma versão à californiana de “Eu Tenho Uma Camiseta Escrita Eu Te Amo”. Foi uma apresentação especial, capaz de emocionar fãs e ao mesmo tempo agradar a quem não leva seu personagem “punk brega” a sério. Ao fim do show, o ex-Replicante ainda recebeu um quadro retratando Júpiter Maçã, feito pelo grafiteiro Felipe Newmove durante os dois primeiros shows da noite.

Mais uma homenagem, ainda mais solene, aconteceria na sequência, com a apresentação da Almirante Shiva. Recentemente, o trio perdeu seu baixista e sua mola propulsora, Pedro Souto, vitimado por um aneurisma. Ainda incertos sobre o futuro da banda, confirmaram sua participação no festival para um (último?) show, recrutando o baixista Stive Canavarro. Para os que conheciam Pedro, que já havia tocado no festival em 2013 com a banda Cassino Supernova, um momento especial, valorizado pela entrega da banda em sua psicodelia pesada e de fortíssima influência setentista. Infelizmente, o horário (passadas as três da manhã) já havia afastado a maior parte do público. Ainda assim, uma justa e digna homenagem.

No dia seguinte, Cadillac Dinossauros, de Ponta Grossa (PR), veio com o lado mais “sabbáthico” do grunge e atitude de palco de banda grande/headliner. Ainda que algumas letras caiam naquele clichê roqueiro do “cristão de armário” (“Apesar de ser tão egoísta e inescrupuloso / ainda sou eu / um filho de Deus / meio fora do trilho”), seus riffs, a alternância de dinâmicas e uma dose econômica de humor renderam uma apresentação surpreendente, na qual se destacou o repertório de seu recente EP, “Pretobranco”, gravado na Toca do Bandido (RJ). O power trio argentino Las Diferencias é mais completo e versátil, mas seu rock de inspirações hendrixianas não tem a mesma proposta enérgica dos Cadillac Dinossauros, e isso teve seu impacto na popularidade. O público se dividiu: metade acompanhava o show com entusiasmo e a outra metade preferia flanar pelo CTG São Jorge. Porém, quando o duo de metais do Seu Pereira e Coletivo 401 subiu ao palco para uma longa versão, hipnótica e funkeada, de “Al Borde del Filo”, os garotos contaram com total adesão da plateia, chegando a se emocionar com a receptividade do público. Mas para não deixar dúvidas: baita show, tanto que foi a única unanimidade entre o “júri” de jornalistas e profissionais de música que votaram.

Esperados como atração principal da noite, os Acústicos e Valvulados saíram um pouco do seu repertório de sempre e incorporaram covers de Chuck Berry, Raul Seixas e Graforreia Xilarmônica (“Amigo Punk” novamente, e dessa vez cantada por Beto Vizzotto). A banda não tem ilusões a respeito de si própria: há anos assumiram-se como entertainers dispostos a dar exatamente o que público espera deles, e da forma mais simples possível. Passada a fase “roqueiro mendigo” que se apresentou com o sofrível álbum “Meio Doido e Vagabundo” (2014), bem como o cosplay de Rolling Stones que a antecedeu, a banda agora aparece à vontade, sem tantos tiques e clichês. Ali, no Paraíso do Rock, era o ambiente deles (a quantidade de tietes na plateia era espantosa), e aproveitaram para tocar seus hits de sempre numa pegada mais power pop. E quer saber? Rendeu um show bem divertido, de dobrar a resistência até dos detratores (não são poucos). Contexto é tudo nessa vida.

Os “camisetas pretas” locais reivindicavam uma banda de metal no festival há anos, e coube aos thrashers do Corpsia encarar a tarefa. Contrariando as previsões mais pessimistas, o pesadíssimo trio de Londrina (PR) não espalhou rodinhas no local, e era curioso ver as hiperproduzidas fãs do Acústicos e Valvulados circulando sorridentes em meio aos headbangers. Noite encerrada. E toda aquela história sobre o que é ou não rock no começo do texto? Deixaram de ter qualquer relevância, pelo menos durante os dois dias do festival. Não é de hoje que o rock e seu público se veem presos a convenções e dogmas, para não mencionar o comercialismo massivo que se atrelou ao estilo. O Paraíso do Rock, em sua simplicidade, consegue ser um resgate do gênero ao qual se dedica justamente por não incorrer em nenhuma dessas armadilhas. E a predileção do público pelo show do Seu Pereira e Coletivo 401 mostra o quanto o evento ganha quando abre seu olhar para além das guitarras – lição que já fora apresentada na edição de 2015, com nomes como o pernambucano Maciel Salu, os maringaenses Sollado Brazilian Groove e os rappers Elemento Principal.

Em seus 10 anos, o Paraíso do Rock já se consolidou uma espécie de “lenda” no circuito de festivais nacionais, graças ao seu espírito acolhedor, entusiasta e acessível. Se lhe parece utópico, arrisque-se a investigar por conta própria nas próximas edições (“10 anos é só o começo”, ouviu-se entre os presentes). A chance de você se decepcionar parece ser cada vez menor.

Top 3 Paraíso do Rock 2017
Leonardo Vinhas – Scream & Yell
1 – Cadillac Dinossauros
2 – Las Diferencias
3 – Seu Pereira e Coletivo 401

Andye Iore – Zombilly
1 – Wander Wildner
2 – Las Diferencias
3 – Tributo a Belchior com Cidão Tim e Jotabe Medeiros

Marcelo Domingues – Demosul
1 – Seu Pereiro e Coletivo 401
2 – Cadillac Dinossauros
3 – Las Diferencias

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. Foto que abre o texto por Leticiah Futata/HAI studio. As fotos são de André Donadio / Divulgação, com exceção da foto 2, de Andye Iore / Divulgação.

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