Entrevista: “‘Retratos Fantasmas’ era sobre a ideia da sala de cinema, mas ganhou um peso emocional”, diz Kleber Mendonça Filho

entrevista de João Paulo Barreto

Uma redescoberta da história das salas de cinema da cidade Recife, “Retratos Fantasmas” (2023), novo filme do diretor Kleber Mendonça Filho, apresenta um belo paralelo afetivo entre a vida do próprio cineasta, sua trajetória como realizador, e um revisitar de memórias que se mesclam a partir do apartamento onde viveu e filmou vários de seus trabalhos.

Na primeira parte da obra, Kleber aborda a chegada de sua família ao local que fica no bairro do Setúbal, no apartamento onde viveria por décadas e registraria imagens conhecidas por muitas pessoas intimas de sua filmografia. Nesse processo, o diretor segue para a segunda parte, na qual abarca a história das salas de cinema de sua cidade, desenvolvendo as mudanças urbanas agressivas pelas quais passou a capital e permite à sua audiência um vislumbre do que é o poder daqueles locais como pontos de agregação, como locais de convívio. Mas tudo é feito para além de uma sensação de nostalgia ou preciosismo. O que vemos quando, por exemplo, acessamos na tela o Cine São Luiz, é uma constatação daquele lugar espetacular como algo além da sanha capitalista e especuladora.

De certo modo, ao terminar o filme, e tendo raízes de vida ligadas de modo cultural a Salvador, é impossível não pensarmos em salas como o Cine Glauber Rocha, ou as salas do Circuito SaladeArte, e louvar a existências desses espaços. Também, fica a ideia de imaginar um local como o Cine Jandaia, hoje entregue ao descaso, encontrando uma forma de revitalização de seu passado. “Retratos Fantasmas” traz essa reflexão e acende certa chama cinéfila e de amor pelo centro, tanto de Recife quanto daqui.

Nessa entrevista ao Scream & Yell, o cineasta fala um pouco sobre o processo de construção do longa que representa o Brasil na busca por uma vaga no Oscar 2024:

Sendo baiano, cinéfilo e residente de Salvador, vi muitos ecos de minha cidade na história dos cinemas de Recife que são apresentadas em “Retratos Fantasmas”. Principalmente de um dos últimos remanescentes cinemas de rua daqui, o Cine Glauber Rocha, que segue firme, mesmo tendo perdido patrocínios. Como você analisa essa situação de sua cidade comparada com aqui?
O caso do Cine Glauber Rocha, do projeto de Cláudio (Marques) e Marília (Hughes), é um projeto importante. Ainda mais em uma cidade como Salvador. Salvador é uma cidade que recebe o mundo no seu centro histórico. A ideia de uma prefeitura, um poder público, entender que existe uma sala de cinema, um espaço de convívio no centro histórico, de frente para a Baía de Todos os Santos, é algo que precisa ser defendido. É um lugar que tem um trabalho de oferecer uma outra experiência de convívio com a cidade, de relação com ela. De relação física com a cidade. Isso deve ser defendido. Isso é do interesse da cidade. Porque não acrescentaria muita coisa nós termos mais uma sala em Salvador dentro de um espaço privado que é um shopping center. Não tenho nada contra o shopping center, mas eu combato muito a transformação do shopping como a norma. Como o espaço oficial, talvez, de uma certa classe média. Ou da classe média brasileira como um todo. E como classe média, eu falo classe baixa, classe média-média e classe alta. Então, a experiência do Cine Glauber Rocha me parece de grande importância para a cidade. E a cidade de Salvador precisa proteger e incentivar isso. Porque eu acho que é do interesse da cidade aquilo ali existir. Quando você tem em um domingo centenas de pessoas, talvez mil pessoas, indo a um cinema naquela área, ali é uma área melhor por isso. Ou em uma sexta-feira, ou em um sábado, ou qualquer dia da semana. E isso eu percebo no São Luiz. O São Luiz é uma sala de 1000 lugares, de 1952, que fica na Rua da Aurora, de frente pro rio Capibaribe, em uma região que o mercado conseguiu desprogramar na cabeça das pessoas como sendo uma região boa. Todos nós sabemos que é uma região incrível. Não é boa. É incrível. Mas existe essa desprogramação de ter vendido, desde o final dos anos 1970, que é um lugar perigoso, que é um lugar feio, que é sujo, que é pobre. E o centro entrou em uma decadência. E muita gente fala, principalmente da elite, da classe média, que o centro morreu. O centro não morreu. Nunca morreu. Na verdade, ele está super vivo. Ele só não obedece às especificações do mercado e da classe média. Muito embora o Recife seja uma cidade que tem um público que… (pausa) O recifense é muito combativo. Então, o centro da cidade é muito popular para muita gente que admira o centro. E o São Luiz se tornou um microclima dele próprio ao longo de doze anos de trabalho, quando ele voltou como sala pública. Ele fechou em 2006 como sala comercial. Em 2010, ele voltou como sala pública. É uma sala que, quando tem estreia de filme pernambucano, tem fila ao redor do quarteirão como eu lembro nos anos 1980, quando eu fui ver, sei lá, “Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu” (1980) ou “Caçadores da Arca Perdida” (1981). E isso acontece com filmes pernambucanos. “Bacurau” (2019) fez 33 mil espectadores no São Luiz. Então, eu acho que o Cine Glauber Rocha tem esse papel. E Salvador e Recife têm posturas muito semelhantes em termos de lutar contra um lado menos inteligente de cada cidade. As cidades têm um lado inteligente e outro lado que não é tão inteligente, que é dominado pelo mercado e eu admiro muito o trabalho que é feito no Cine Glauber Rocha.

Você utiliza muito de sua memória afetiva com a cidade de Recife, com os cinemas de rua do centro da cidade, juntamente com as imagens captadas no apartamento onde morou e onde vários de seus filmes foram feitos. Como surgiu o embrião de unir essas duas questões, a história da cidade e suas salas, juntamente à sua memória dentro do lugar onde você cresceu e iniciou sua carreira no audiovisual?
Inicialmente, era um filme sobre a força de espaços de convívio. Espaço que eu chamo, também, de sala de cinema. E eu realmente acredito que Recife teve uma coleção muito forte de salas de cinema e que podem explicar o impacto de se fazer cinema. Talvez a ideia de se fazer cinema nessa cidade, nesse estado, seja parcialmente explicada pelo impacto dessas salas. Esse era o meu ponto de partida. E sempre achei que era um tema universal porque eu posso falar de uma sala de cinema no centro de Recife, e alguém na Itália ou em Salvador vai entender e fazer relações universais com essa ideia. Mas o filme, realmente, se transformou em uma ideia instigante para mim. Mas eu não gostei do início da montagem desse filme das salas de cinema. Comecei a ficar desanimado com o filme e entrei em crise. Mas quando eu entendi que ia falar primeiro do apartamento, que não é só a questão de um apartamento, é o lugar onde eu fiz muitos filmes, eu comecei a ficar instigado. Eu filmei muito aquele lugar. Foi isso que me ofereceu a chave para o filme. Foi assim que eu instiguei fazer o filme. Ainda mais porque eu e minha família decidimos que íamos nos mudar. Então, eu passei um ano meio que desmamando o apartamento, passando por um período de desapego. Isso, claro, mexeu muito comigo. Isso me levou a muitas imagens e me levou a fazer imagens, também. Assim, quase que para ter mais imagens e me apegar mais ainda àquilo. E aí o filme entrou nos trilhos. Porque ele ganhou um peso emocional. Foi isso que aconteceu. Mas, inicialmente, era um filme sobre a ideia da sala de cinema. Você mostrou o blu-ray de “O Som ao Redor” (2012), e ele tem uma sequência onde, em um engenho de cana da família, o João visita com a namorada as ruínas do cinema do engenho. E é uma cena rápida que eu gosto muito do filme. No “Aquarius” (2016), Sônia (Braga) passa pela frente de uma loja de eletrodomésticos, que era o Moderno, sala de cinema onde ela foi vista por mais de 150 mil pessoas em “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1976). Então, está tudo meio conectado. Mas não de maneira planejada. O tempo vai passando e você vai fazendo correlações.

O filme tem aquele final simbólico, que flerta com o fantástico, trazendo as imagens das farmácias que se multiplicam como estabelecimentos comerciais na cidade de Recife, sendo algo que acontece muito aqui em Salvador. No meu ponto de vista, há uma noção de uma sociedade doente, dependente, e que permite essa multiplicação. Qual é para você esse simbolismo?
Já me pediram para explicar o que significam as farmácias no final, mas eu acho que cada um pode tomar a sua própria interpretação. Eu acho que, em primeiro lugar, no cinema, você pensa em imagens. E eu acho aquela uma imagem forte. Sabe quando você está em um carro, seu ponto de vista do carro em que você vê coisas passando pela janela? Eu acho que esse é um plano muito cinematográfico. E, francamente, isso veio da minha infância, quando eu saia à noite com meu pai ou com minha mãe de carro. Lembro muitas vezes de pedir para passar na frente de alguns cinemas. Isso porque eu mesmo estava curioso em saber qual era o cartaz que estava lá. Porque você tinha um “Em cartaz” hoje, um “A seguir” e um “Em breve”. E isso era organizado sempre de uma maneira muito disciplinada. E eu gostava de passar na frente dos cinemas e pedir para diminuir a velocidade, às vezes até pedir para parar o carro para eu poder ir ver os cartazes do que ia passar. E muitas vezes a gente não parava e o cinema passava. E a realidade é que, hoje, o maior número de coisas que passam na janela do carro à noite são farmácias. E são muito iluminadas, com aquela luz branca. E às vezes eu não entendo quatro farmácias coladas, vizinhas umas das outras. Eu acho que há alguma coisa na imprensa que diz que Recife tem o maior número de farmácias per capita. E eu acho que é uma imagem muito forte. Eu não seria capaz de explicar exatamente o que significa, mas eu acho que as implicações são… (risos). O (Eduardo) Escorel escreveu uma crítica muito boa do filme, e ele acha que o final é um final feliz. Eu acho que é um final que tem um certo humor, mas eu não sei. Acho que aquelas farmácias ali são algo um pouco sinistro. Tem uma mistura de sensações. A música do (Herb) Alpert… eu gosto muito daquela faixa. Gosto muito de Rubens (Santos) na cena toda. Gosto do tom da cena. E aí tem as farmácias. Se você achar engraçado, é engraçado. Eu não sei se eu acho engraçado. Cada um sente o que pode.

Seu filme chega em um momento importante no qual se torna crucial falar sobre a preservação de cinemas, e dos centros urbanos e seus entornos, e é importante ter exibição aqui por poder demarcar essa discussão.
Sim. Quando visito Salvador e ando por toda essa área, a cidade me coloca em um estado de espírito muito particular. Obviamente, não sou o único. São milhões de pessoas que se sentem assim em Salvador. Mas é uma cidade que merece muito mais respeito do que já tem, do ponto de vista de preservação, de revitalização. E talvez Recife esteja em um estágio ainda menos favorável. Teve uma exibição espetacular do filme no Odeon, na Cinelândia do Rio, que inclusive é citada no filme. Em Recife, teve uma sessão no Teatro do Parque, um lugar incrível de 1919. Aí fomos para São Paulo, e, agora, Salvador. Nessas visitas, percebi que o centro do Rio está em uma situação mais favorável do que o centro do Recife. E o centro do Recife está em uma situação muito mais favorável do que o de São Paulo. O centro de São Paulo está um desastre. E Salvador tem suas questões, mas é muito especial. Eu acho que está em uma situação bem melhor do que alguns outros centros. Essa é a realidade.

João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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