Em “Caminhando com os mortos”, a brutalidade dos acontecimentos convive com a poesia de um texto saborosíssimo

texto por Gabriel Pinheiro

“Caminhando com os mortos” (Cia das Letras, 2023) começa com a descrição de uma cena brutal. Uma mulher é queimada viva pela mãe, pelo pai e pelo irmão. Celeste é morta em um ritual religioso. “Matar letinha? matei não, senhor. jamais. o verdadeiro crente expulsa o espírito maligno, o senhor sabe o que é isso?”. A partir desse acontecimento extremo, Micheliny Verunschk mergulha numa comunidade no interior profundo do Brasil, lugar onde a violência e a religiosidade parecem parte da paisagem.

“Um pai só quer o melhor para seus filhos, e olhando tudo agora parece que a gente fez algo de errado, mas até onde você iria para salvar a alma de seu filho da perdição?”

Enquanto, no presente, os trâmites policiais acerca do crime cometido são levados em frente, Micheliny Verunschk nos leva, então, ao passado dessa família, um pequeno núcleo assombrado desde muito antes pelo fantasma da tragédia. Na medida em que reconstitui este histórico familiar, o texto remonta o passado de toda uma pequena comunidade. A construção de um templo religioso parece fincar naquela terra a raiz de uma violência derivada de dois fenômenos que se complementam e se fortalecem: a intolerância e a doutrinação religiosa.

Resultam disso o medo e a não aceitação do outro, a separação entre o bem e o mal e o combate à toda e qualquer diferença. Essas são questões que atravessam a história brasileira através dos séculos. A religião como instrumento de domínio através da força em um projeto colonial. Suas raízes são tão fortes nesta terra brasilis que seus podres frutos seguem sendo colhidos hoje.

Como a visão de uma mosca, “milhares de lentes que processam fragmentos de luz e escuridão unindo-os num mosaico que vai justamente formar o mundo que lhes é permitido apreender”, a voz narrativa do romance caminha pelo espaço e pelo tempo, numa construção fragmentada, um mosaico textual onde pequenas pistas são deixadas e encontradas aqui e acolá.

Entre o passado e o presente, entre os vivos e os mortos – “uma nação muito maior do que nós mesmos, os outros, estes que estão vivos”, nos diz a mãe e acidental algoz – Micheliny Verunschk escreve um romance urgente e assombroso. Em “Caminhando com os mortos”, a brutalidade dos acontecimentos convive com a poesia de um texto saborosíssimo, que nos convida a ler e a reler, na tentativa de alcançarmos todos os seus mistérios. “Quando nos deparamos com o abismo damos um passo atrás ou damos um passo adiante”.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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