Música: “Formal Growth in the Desert” tem os elementos sombrios típicos do Protomartyr, e uma pitada de otimismo

texto por Luciano Ferreira

Depois de um período tão assustadoramente difícil, o que resta senão seguir em frente? Olhar para aqueles anos de pandemia sem saudades, mas sem esquecê-los. Entender e encarar a transitoriedade, a fugacidade da existência como algo intrínseco à vida: “Memento Mori”. A música, enquanto arte, além de todos os impactos financeiros para os artistas, foi afetada principalmente nos aspectos psicológicos. Por conta disso que, em pleno 2023, muitos álbuns surgem “impregnados” pelo período pandêmico e suas sequelas. Composições e álbuns surgiram no (ou por causa do) período pandêmico. “Formal Growth in the Desert” (2023), novo álbum da Protomartyr, banda revivalista pós-punk de Detroit, entra nessa lista.

Após o lançamento de “Ultimate Success Today” (2020), além da pandemia, o vocalista Joe Casey teve que lidar com a perda da mãe – após uma década convivendo com o Alzheimer –, mas encontrou um “céu sem nuvens” na forma de uma companheira com quem noivou e casou. Ou seja, não foram só dias nublados. Felicidade? Não exatamente. Casey tem 46 anos e é um cara deprimido. Ele mesmo se define assim: “Quando você está no Protomartyr, seus fãs gostam do fato de você estar deprimido, ou pelo menos ser capaz de capturar esse sentimento. Sou uma pessoa muito infeliz, o que torna mais fácil escrever sobre essas coisas”.

A música do Protomartyr, no quesito lírico, é conduzida por essa estrada sombria da qual o vocalista é o nosso guia. Se os versos são taciturnos, o instrumental bebe no revivalismo pós-punk construído a partir dos timbres e efeitos de guitarra de Greg Ahee, as linhas de baixo protagonistas de Scott Davidson e as batidas (às vezes tribais) de Alex Leonard. Com humor mais para o torrencial e caótico do que para o melancólico, a música do Protomartyr oferece a combinação perfeita para seu vocalista despejar versos que enfatizam palavras, ao estilo de Nick Cave nos idos anos 80/90. Imagine uma mistura de Pixies com Nick Cave & the Bad Seeds, e aproximação com nomes contemporâneos como Bambara e Dry Cleaning.

Com treze anos de carreira, o Protomartyr teve alguma repercussão no Brasil após o videoclipe de “Processed by the Boys”, do álbum de 2020, usar como referência uma suposta briga num quadro de um programa de TV de Manaus que viralizou na internet – estética que eles voltariam a utilizar no videoclipe de “Polacrilex Kid”. A comicidade do acontecido e do próprio videoclipe contrasta com a seriedade atribuída ao grupo. Na canção, o discurso de Casey é sobre a mazelas no governo Trump, incluindo o aumento da violência policial sobre minorias, os discursos anti-imigração e a intolerância das pessoas.

Bem-vindos à terra assombrada / A vida após a morte / Onde escolhemos esquecer / Os anos da faca faminta”, são os versos que iniciam “Make Way”, onde o grupo mantém o clima de tensão prestes a desembocar numa avalanche de riffs, enquanto o vocalista pede passagem berrando para que “abram o caminho”. Soa quase como uma continuação dos versos que finalizam “Worm in Heaven” – “Eu sou o verme no céu / Lembre-se de como eu vivi / Eu estava com medo / Sempre com medo” –, do disco anterior.

Sexto álbum do quarteto, “Formal Growth in the Desert” é um “retorno ao básico” após as experiências com os elementos jazzísticos de “Ultimate Success Today”, via uso do sax de Jemeel Moondoc em faixas como “Day Without End” e a já citada “Processed by the Boys”, uma das grandes canções da banda e daquele disco, considerado o fechamento de um capítulo após uma década de grupo. É difícil não pensar o quanto o título do novo álbum está totalmente conectado a 2020, dado o período turbulento pelo qual a banda passou e que quase levou ao seu fim.

O tom profético que o disco de 2020 viria a parecer encarnar, devido aos acontecimentos posteriores, vide as observações perspicazes do vocalista, mudam aqui para um tom mais pessoal, por conta das experiências acumuladas ao longo dos últimos três anos. Dessa forma, Casey cita a mãe em versos como: “Ela gostaria que eu tentasse encontrar / Felicidade em um céu sem nuvens” (“Graft Vs. Host”); “Posso fazer você ver / A beleza simples em conhecê-la? / Se há algo de bom em mim / Cante para ela / Ela é a autora” (“The Author”). E se questiona se é merecedor do amor: “Você pode se odiar e ainda assim merecer amor?” (“Polacrilex Kid”), concluindo, na derradeira faixa do álbum que “Eu mereço o amor” (“Rain Garden”), trazendo à tona a lembrança de uma “tarde perfeita” ao lado da amada.

Em “We Know the Rats”, o vocalista usa como tema o arrombamento da casa de sua mãe (por quatro vezes seguidas) e a forma surreal como a situação foi tratada pela polícia local. Enquanto “3800 Tiger” traz a dubiedade ao falar da redução global do número de tigres e também fazer alusão ao Detroit Tigers, time de beisebol da sua cidade. O lado às vezes ambíguo dos versos, tem explicação: “Minhas músicas favoritas para escrever são as em que não tenho ideia do que estou escrevendo”, afirma Casey. Exemplo disso é “Rain Garden”, que tenta encapsular o romantismo, ainda que traga frases como “Carros silenciosos perdidos, grávidos de cavaleiros solitários percorrendo as horas” ou “Vamos dar uma gorjeta ao criador / Enriquecendo nossas vidas, definhando, que pena”, em “Let’s Tip The Creator”, onde critica os tecnocratas e ricos ociosos e sua sede de monetização.

Disco para ser ouvido com as letras “nas mãos” e ouvidos atentos, “Formal Growth in the Desert” tem os elementos sombrios que caracterizam a obra do Protomartyr, e uma pitada de otimismo tentando emergir.

 Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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