Entrevista: Alexandre Kumpinski fala de seu debute solo, “Cartilagem”, a sofistificação do funk, política, Apanhador Só e muito mais

entrevista por Bruno Capelas

Seis anos depois, Alexandre Kumpinski está de volta. Mais conhecido como vocalista da Apanhador Só, banda que marcou o cenário independente brasileiro na década passada (“Antes Que Tu Conte Outra”, segundo disco da banda, apareceu na 16ª posição entre os melhores discos brasileiros dos anos 10), o gaúcho de 36 anos lançou seu primeiro álbum solo, “Cartilagem”. Não espere “só” um disco de voz e violão: o trabalho busca aliar a proximidade do instrumento de cordas com interferências digitais e analógicas. “Eu queria tentar achar o encontro desses dois mundos, do minimalismo eletrônico, do funk, com timbres modernos e instigantes, com o mundo mais intimista da voz e do violão”, conta o cantor e compositor ao Scream & Yell.

Para Alexandre, “Cartilagem” é uma sequência natural de seu último disco cheio – o pouco escutado “Meio Que Tudo É Um”, terceiro trabalho da Apanhador Só (2017). “São discos que têm a mesma filosofia de mundo, uma conversa focada na nossa incapacidade geral de diálogo, uma tendência da dificuldade de dialogar com as diferenças”, afirma o gaúcho. Composto majoritariamente em 2018 e gravado em 2019, o álbum-solo estava previsto para sair em 2020, mas a chegada da pandemia fez o cantor adiar os planos.

Finalmente lançado, “Cartilagem” traz oito composições de Kumpinski e uma regravação que, à primeira vista, pode soar inusitada: “Ando Só”, dos Engenheiros do Hawaii. Não para ele, que cresceu ouvindo o grupo de Humberto Gessinger, lado a lado com Chico Buarque e Paralamas: “‘Ando Só’ é uma canção que representa o sujeito que anda só e não quer se fechar em comunidades, mas sabe que a gente não pode andar sozinho”. É uma manifestação clara em meio ao clima divisivo que o Brasil vive há pelo menos meia década, mas também pode ser uma própria metáfora do que aconteceu com a carreira de Alexandre nos últimos anos.

Capa de “Cartilagem”, primeiro disco solo de Alexandre Kumpinski

Em agosto de 2017, enquanto a Apanhador Só se preparava para fazer os shows de lançamento de “Meio Que Tudo É Um” no Rio de Janeiro, a ex-mulher do guitarrista Felipe Zancanaro publicou um relato no Facebook acusando-o de acumular traições, abuso e agressão, em um dos primeiros grandes casos de cancelamento do cenário independente da música brasileira – em um terceiro relato, ela diria que havia “exagerado” nas denúncias; seus três posts sobre o assunto foram apagados. A banda ainda tentou seguir sua carreira por um ano e entrou em hiato em 2018 – e nesta entrevista, o cantor fala sobre o que aconteceu e dá sua visão não só dos fatos, mas também sobre ter vivido na pele essa história.

“Foi uma loucura coletiva. O cancelamento é um julgamento sem direito a contraditório, sem provas, testemunhas, advogados, é a volta à barbárie. Sofremos uma violência absurda. Felizmente, anos depois, as pessoas estão começando a se dar conta de que não é bem por aí o caminho”, diz Kumpinski, em um trecho que vale especial atenção nessa entrevista.

Ele também reflete sobre a trajetória da Apanhador Só, revê as críticas a Tom Zé em uma conversa neste mesmo Scream & Yell há dez anos e diz ter orgulho quando alguém pede uma música da banda em seus shows. “A Apanhador é a coisa mais legal que eu já fiz na minha vida. É o projeto pelo qual eu dediquei mais tempo, mais energia e o que trouxe mais resultados. Toco músicas da Apanhador se pedirem, com prazer”.

Por falar em shows, quem quiser ver o músico no palco terá de esperar um pouco. Após duas apresentações em Porto Alegre e Florianópolis em dezembro, o cantor está dedicado a cuidar, junto da mulher Lúcia Tietboehl, de sua filha recém-nascida. Palco? Só para daqui uns meses, diz o cantor (fique atento em seu Instagram).

Juntos há anos, Alexandre e Lúcia passaram uma boa parte da pandemia rodando o Brasil em uma Kombi por mais de um ano e meio, em uma viagem que só foi interrompida pela gravidez. É uma das muitas histórias que ele conta nessa longa entrevista, que vai além do disco novo e da banda que o projetou, passando por temas como a sofisticação do funk, Jorge Drexler, Lula e Bolsonaro, “ninguém solta a mão de ninguém”, métodos de composição e a vida de músico independente no Brasil. Para ler com calma e atenção.

“Cartilagem” é o seu primeiro “disco cheio” em seis anos, contando desde o “Meio Que Tudo É Um”, da Apanhador Só. O que esse disco representa pra você? Quem é esse cantor-compositor que surge nesse novo trabalho?
Acho que “Cartilagem” é uma sequência natural do “Meio Que Tudo É Um”. Não vejo uma quebra muito grande no meu trabalho como compositor. Na Apanhador Só, as músicas que eu compunha acabavam indo parar na banda. Agora, as músicas que eu componho para a vida vão parar no meu trabalho solo. Acho que até existe algum diálogo, se você for ver, uma linha entre o primeiro disco da Apanhador Só, o “Antes que Tu Conte Outra”, o “Meio Que Tudo é Um” e o “Cartilagem”. Dá para ver, eu pelo menos percebo um seguimento de visão de mundo, de filosofia de mundo, do diálogo que os discos tentam estabelecer.

Que diálogo é esse?
É uma conversa focada na nossa incapacidade geral de diálogo, uma tendência generalizada da dificuldade de dialogar com as diferenças. Essa é a tônica maior do disco.

É um tema que já estava presente no “Meio Que Tudo É Um”. “Teia”, por exemplo, é uma música que já toca nesse assunto…
“Teia” é exatamente isso. A própria ideia do título do disco da Apanhador vem ao encontro da ideia de que não há lógica nem saúde social na política da inimizade, do sectarismo, da segmentação, entre nós e eles.

A primeira vez que você disse que estava gravando um disco solo foi em 2019. Sem querer “biografar” a obra, o que aconteceu na sua vida até esse disco sair? Por que levou tanto tempo?
Em 2019, começamos a gravar as músicas que eu já estava compondo desde 2018. Estava tudo programado para o disco sair em 2020, o plano inicial era entre maio e junho. Mas em março veio a pandemia e travou tudo. Ainda faltava a reta final do disco para encarar, basicamente resolver alguns detalhes de arranjo, mais mixagem e masterização. Não achei que fazia sentido lançar o disco naquelas condições, ainda mais depois de tanto trabalho e sendo o primeiro álbum solo. Poderia ser um desperdício de material.

Até porque é um disco que você gostaria de rodar com um show depois, mas não ia rolar fazer show depois…
Exatamente. Mas mais que isso: eu nem conseguia finalizar o disco nas condições que eu estava, sozinho, preso dentro de casa e com tudo aquilo acontecendo. O disco ficou pausado até por uma decisão de esperar para ver como seria lançar um disco quarentenado. Observei alguns lançamentos e parece que eles caíam num vão, num nada. Então decidi esperar para lançar em tempos melhores, e aí surgiu um plano de viajar de Kombi pelo Brasil. Era uma ideia que eu e a Lúcia [Tietboehl, mulher do cantor] já falávamos sobre há algum tempo. Sempre gostei muito de viajar, sempre fiz planos mirabolantes de viajar.

A turnê da Apanhador Só para viabilizar o disco, “Na Sala de Estar”, era um plano mirabolante de viajar, né?
Sim. Sempre pirei em alternativas de circulação, tentava descobrir como percorrer territórios e ao mesmo tempo fazer disso uma prática produtiva artisticamente falando. Sempre foi algo que me pilhou muito. E eu gosto muito do exercício de entender o que é essencial para se viver. Gosto muito de natureza, de acampar, é algo que me mostra o quanto a gente precisa de pouco para viver bem, com uma qualidade de vida boa. Isso se alinhou com o fato de estar preso dentro de casa durante a pandemia e eu e a Lúcia pensando em como poderíamos viajar juntos. Antes da pandemia, ela tinha viajado para a Chapada dos Veadeiros e viu um casal vendo um pôr do sol, sentado em cadeiras em cima de um motorhome. Em algum momento, ela olhou aquela imagem e nos viu ali. Durante a pandemia, as condições começaram a ficar ideais: ela trabalhava remotamente e eu estava me virando com trabalhos que também poderia fazer de forma remota. Resolvemos ir: já que a gente não podia sair de casa por morar num centro urbano cheio de gente, resolvemos criar uma casa móvel que a gente pudesse levar para lugares isolados.

Qual foi a rota?
Saímos do Rio Grande do Sul em maio de 2021 e fomos em direção à Chapada dos Veadeiros, subindo por Santa Catarina, Paraná, São Paulo e aí direto pra Chapada. Passamos alguns meses lá e depois saímos pelo norte de Minas Gerais, em direção à Bahia, e ficamos um tempão circulando na Bahia. Foi lá que a gente descobriu, em agosto de 2022, que estávamos grávidos. Nossa ideia era fazer o Nordeste todo antes de pensar em voltar, mas com essa novidade nós fizemos contas e decidimos voltar para Porto Alegre, até para achar uma casa para morarmos juntos. Daí, organizar o lançamento do disco entrou no pacote.

Nesse meio tempo, o disco ficou parado?
Ficou. Teve uma faixa só, “Onde Eu Não Puder”, que ficou sendo produzida pelo Marcelo Fruet, pelo Átila Viana e pelo Daniel Roitman. Era uma das músicas que não me agradavam no disco, eu estava pronto para tirá-la, mas o Fruet se ofereceu para participar e fazer algo no álbum. Eu achava que essa música tinha um problema de arranjo, mas o Fruet identificou logo que o problema começava na gravação, na base de violão e voz. Regravei tudo antes de sair de viagem e ele foi produzindo. O resto do disco precisava de um tapa na mixagem. Cheguei a fazer uma mixagem caso quisesse lançar enquanto viajava, mas depois percebi que seria melhor estacionar em algum lugar para fazer um lançamento bem organizado. Por mais que dê para trabalhar dentro de uma Kombi com o celular, lançar um disco é um trabalho complicado. Assim, quando voltei, revisei todas as mixagens e o Fruet fez a masterização.

O que é lançar um disco hoje?
Basicamente, é conseguir subir o disco para as plataformas de streaming e divulgar. Falando assim, parece algo simples.

Poxa, parece até algo que dá para fazer com o celular…
Sim! Só que são muitas coisas para fazer e organizar. Precisa organizar o material, fazer o registro das músicas, escrever textos, preparar material gráfico, editar vídeos e fotos. São passos importantes para fazer um lançamento super independente, como está sendo o meu. É um trabalho bem de escritório, de mandar e-mails, mais difícil de fazer no celular. Não sei se é porque eu não sei mexer direito no celular, sou da velha guarda que prefere ter todas as abas abertas para a coisa fluir melhor.

Acho que músico nenhum pensa nesse tipo de tarefa quando começa uma carreira. Como é assumir esse “trampo de escritório”?
Foi algo que existiu desde cedo na minha carreira como músico independente. Eu ia dizer que é algo do Brasil, mas é global. Desde cedo, entendi que se quisesse ficar só tocando, não ia conseguir me profissionalizar. Não é uma questão, é uma realidade. A diferença entre alguém que é um músico talentoso e faz ótimas músicas para alguém que consegue viver da música é que o segundo faz esse trabalho de escritório, que se empenha para divulgar o trabalho, organizar ensaios, alinhar todos os pontos. Quer dizer: ensaio já não é trabalho de escritório, mas é um trabalho de produção, de organização. Quando você começa a tocar, você marca um ensaio de vez em quando com os amigos para se divertir, é que nem marcar um jogo de futebol. Mas para tocar bem, chega uma hora que você tem que ensaiar mais do que o prazer manda. Tem que repetir as partes para deixar todos os trechos redondos. Gravar disco é igual: é muito prazeroso, é das coisas que eu mais gosto de fazer na vida, mas é extremamente extenuante. Tem que ouvir muitas vezes a mesma música, às vezes tem que gravar muitas vezes as mesmas coisas. Às vezes você tem sorte, está num dia bom e a voz-guia já funciona, mas às vezes precisa ficar doze horas seguidas na frente do computador para tirar um bom resultado. Tem um lado bem nerd de estudar equipamento, plugin, programa de edição e mixagem de música, para conseguir tirar um timbre interessante. É um um monte de coisa que não é só tocar, “fazer um som”.

Em termos de sonoridade, o que você queria alcançar com o “Cartilagem”? Tem referências específicas?
Alguma coisa em mim não queria que meu primeiro disco solo fosse só de voz e violão. Não sei explicar o porquê, mas não queria. Por outro lado, por ser um compositor de voz e violão, sabia que não ia conseguir fugir completamente disso. Na época em que eu estava fazendo o disco, ouvi muita música eletrônica e muito funk carioca e paulista, especialmente entre 2017 e 2019, prestando atenção no minimalismo dos arranjos. Antes da onda dos 150bpm, me encantava muito a forma como o funk trabalhava o silêncio. Eu fazia muito o exercício de ouvir o funk sem ver os vídeos do canal do Kondzilla, tentando perceber como existia ali uma concepção muito arrojada de arranjo. As músicas conseguiam, com pouquíssimos elementos, um resultado muito potente.

O funk usa o silêncio quase como uma nota.
O silêncio é uma provocação. Dessa provocação, nasce uma motivação no corpo, uma promessa que não se cumpre. É uma batida que parece que vai estourar, mas nunca estoura. Fica sempre naquele espaço que não se cumpre, mas enquanto isso acontece você vai sendo envolvido, e quando vê, já está dançando. Se isso acontece num ambiente coletivo, está todo mundo indo até o chão com um arranjo que prometeu um estouro que nunca chegou. É um preenchimento que não vem. Acho magnífico. De alguma forma, eu queria tentar achar o encontro desses dois mundos, do minimalismo eletrônico, do funk, com timbres modernos e instigantes, com o mundo mais intimista da voz e do violão. Era o primeiro norte estético do disco. Não necessariamente consegui chegar nesse resultado, mas essa foi a corda que puxou a canção.

É uma abordagem que me lembra muito alguns trabalhos do Jorge Drexler – uma referência que você já disse ter em outras oportunidades. Foi uma referência?
Com certeza. O Drexler é um dos artistas mais interessantes do cenário mundial há muitos anos. Tem muito a ver. Um dos singles do disco, “Vulcão”, que acabou não entrando no álbum, tem uma batida de funk 150bpm. Peguei essa estética para colocar como referência, batendo continência para o funk também. E no disco mais recente do Drexler [“Tinta y Tiempo”, de 2022], tem “Tocarte”, que é um funk. Bem estudado, bem dentro da linguagem do funk. Não é uma música que usa só a célula rítmica do funk, mas toda uma concepção artística dos timbres, do minimalismo. Dá para ver que o Drexler está atento a isso.

Dá para perceber essa atenção na forma que ele canta, em como ele estruturou a melodia de “Tocarte”.
É um canto muito ligado à fala, tem ritmo e tem preenchimento. Isso foi algo com que eu me deparei quando estava fazendo meus primeiros testes, descobrindo linguagem. Antes de produzir o disco, fiz alguns funks em casa, nada muito fechado. E uma das coisas que notei foi que o funk traz a canção com muita presença, sem muito respiro. A melodia e a letra seguram a onda da canção para que o silêncio do arranjo consiga se destacar, se estruturar enquanto silêncio. Para a canção ficar de pé, a voz quase não para. “Tocarte” é isso.

No que diz respeito às letras, “Cartilagem” parece ter dois temas centrais – e que disputam espaço entre si. De um lado, há essa noção de que essa divisão da sociedade não vai dar em boa coisa. Por outro lado, há uma sensação muito forte de solidão, de isolamento, de afastamento do resto do mundo – e é curioso saber que essas composições são até anteriores à pandemia. Como essas duas forças se equilibram no disco?
Acho que isso acontece porque o personagem do disco está sentindo as consequências de um presente cindido, jogando sua esperança na superação disso. É um sujeito sentindo as agruras de um isolamento, sabendo que a gente não está no caminho certo, em que é preciso superar e encontrar a saúde de novo.

Não sei se concordo com essa ideia de superação, ainda mais porque o disco acaba com uma releitura de “Ando Só”, do Engenheiros do Hawaii. O que te fez colocar essa música ao final do disco?
Sabe que essa música é uma música que me acompanha desde a adolescência? Acho muito bonita. Ouvi muito Engenheiros do Hawaii quando era pré-adolescente e adolescente, essa letra sempre me tocou muito. Sozinho numa madrugada, eu a gravei em casa com gravador de mão. Racionalmente, não sei explicar bem, mas intuitivamente sentia que ela fazia sentido para fechar meu disco. Não fiz um desenho racional, só intuí mesmo. Prestes a lançar, conversando com o Humberto Gessinger para “pedir a bênção”, me dei conta que o “só” de Apanhador Só vem daí. Foi um nome que me veio às pressas: a gente precisava se inscrever num festival de bandas da escola e eu inventei Apanhador Só na hora. O “só” vem de “Ando Só” e também de “Marinheiro Só”, duas músicas que eu gostava muito. Acho que essa música fecha um ciclo para mim: acabar meu primeiro álbum solo depois da Apanhador Só com “Ando Só”, que emprestou seu “só” para o nome da banda que me acompanhou durante quase vinte anos da minha vida. É algo que abre e fecha um ciclo. Mas não consigo explicar mais do que isso.

Tomei um susto quando vi essa música no disco. Primeiro, por ser uma música que não é sua em um disco solo, de compositor. Segundo, por ser justamente Engenheiros do Hawaii essa escolha.
Pois é: Engenheiros é daqui, de Porto Alegre, alguma coisa também me conecta. Também não sei explicar exatamente por que, mas sinto que Engenheiros do Hawaii é um projeto que não é muito respeitado dentro da história da música brasileira. Discordo bastante: poucas bandas no Brasil tiveram um trabalho tão consistente e tão profundo, em termos de domínio de obra. É uma profundidade de composição que faz parte da minha formação. Com 12, 13 anos de idade, eu ouvia incessantemente Engenheiros, Paralamas do Sucesso e Chico Buarque. Hoje estou com 36. E olha que não cheguei a pegar o auge da banda, mas cheguei a ir em shows, talvez até o primeiro show que eu tenha ido na vida tenha sido deles. Me peguei revendo vídeos deles, tem uma participação no “Programa Livre” em que um rapaz pergunta o que eles achavam de uma certa votação numa revista específica (nota; Revista Bizz), com Engenheiros sendo o primeiro lugar na escolha do público e o último lugar na escolha da crítica. E fiquei pensando nisso: a crítica da música brasileira não curte muito Engenheiros, né?

Não.
Estou vendo pela tua reação que tu mesmo não curte Engenheiros.

Eu tenho uma relação caótica com Engenheiros: o Humberto faz o tipo de trocadilho e piada que eu faço. Mas quando ouço, não consigo gostar. Talvez seja porque ele está fazendo isso a sério, e eu sinto que seja só piada. Mas tem momentos relevantes no Engenheiros, também.
(risos) O tipo de piada, de trocadilho, sei. Eu vejo os trocadilhos dele ancorados em profundidade, em quem pinta um quadro geral sócio-político do que era o mundo no início dos anos 1990. Mas eu entendo, muita gente não leva a sério porque não bate. “Pô, o cara fica aí fazendo joguinho de palavra?” (risos).

Talvez entrando num campo mais psicanalítico da entrevista, me pareceu significativo que você encerre seu primeiro disco solo com uma música chamada “Ando Só”, depois de tudo o que aconteceu com a Apanhador Só. Essa música é uma bandeira? Algo como: esse é o meu caminho, não é mais o caminho da banda?
Não, eu iria além disso. É uma interpretação, claro, é uma das camadas que está dentro da minha escolha intuitiva. Tem a ver: ando só, estou em carreira solo, não ando mais em bando, meu projeto não é mais um grupo. Mas vai além, tem forças que talvez se contradigam – e como diz a música “Sem Contradições”, estou um momento de vida em que eu não estou fugindo das contradições. Um lado da interpretação mostra que não é bem a hora da gente se fechar em bandos. Quando o Bolsonaro venceu as eleições de 2018 e começou a corrente do “ninguém solta a mão de ninguém”, achei aquilo de um descabimento. Quem faz parte desse alguém, desse sujeito coletivo que não vai soltar a mão dos outros? O mundo é vasto, é complexo, e o Brasil é feito de quase metade de eleitores do Bolsonaro, e naquela época, quase metade de eleitores do Haddad, agora do Lula. O quadro não mudou muito, as duas eleições foram apertadas. Estamos dentro de um país em que tem muita complexidade acontecendo. Dizer que ninguém solta a mão de ninguém… ok, é a esquerda dizendo que vai se amparar e se fechar num círculo de proteção. Mas a gente sabe que não é a esquerda de uma forma ampla. Era um sinal de algo que eu comento no disco: a gente não tem que se fechar em comunidades, entre os nossos. É o contrário: o que a gente tem a fazer é tentar se abrir o máximo possível para o contato, o diálogo e o entendimento do diferente. Não é metade do país que é fascista. As pessoas não são fascistas porque votaram no Bolsonaro, elas têm as suas razões. Preciso tentar entender as razões para tentar dialogar com as pessoas, para daí tentar influenciá-las ou ser influenciado. A via de mão dupla aqui é importante, para chegar num entendimento maior, para conseguir ir além. E aqui surge outro lado da interpretação: o sujeito que anda só não quer se fechar em comunidades, mas sabe que a gente não pode andar sozinho. Nem tem como andar sozinho, a gente está sempre junto. A ideia é se despir da fantasia de que podemos viver num mundo só entre iguais, uma fantasia afirmada quase todos os dias nas redes sociais. Se fosse pelas minhas redes sociais, o Olívio Dutra estava eleito senador no Rio Grande do Sul com folga. Cada vez que damos um passo para nos “bolhificar” mais, estamos mais longe de chegar numa configuração social que seja saudável. Graças a Deus o Lula ganhou, mas isso não vai resolver nossos problemas, porque a gente continua num país cindido, numa lógica de guerra e inimizade. A política do “nós” e “eles”, que é fascista, está disseminada.

Tem quem goste de dizer que quem começou com o “nós” e “eles” foi o Lula – embora esse “nós” e “eles” do Lula seja mais luta de classes que outra coisa.
Sim, existem alguns “nós” e “eles”. As lutas são muito complexas, as relações de poder entre as partes são muito complexas. Às vezes existe “nós” e “eles”, e “aqueles outros”, e “aqueles nós”, e os “outros nós”, é uma rede complexa de relações. No momento em que se fala de “eles” e “nós”, simplificou demais. Não estamos num país bom de se viver hoje em dia. Mas é isso: é talvez andar sozinho e, ao mesmo tempo, tentar andar o mais amplamente acompanhado.

Vou voltar na ideia do “ninguém solta a mão de ninguém”. Ao ler essa entrevista, sei que vai ter gente que vai pensar que quem diz essas coisas é alguém de quem soltaram a mão. Vai ouvir o que você diz com um puta rancor. Soltaram a sua mão?
Eu sinto que eu mesmo já não vinha fechando essa roda antes. Se tu for ouvir direito, o “Meio Que Tudo É Um” já aponta para isso. O “Antes Que Tu Conte Outra” não: era um disco que queria ir para a luta, apontava para inimigos. “Mordido” é uma canção-manifesto, agressiva. “Aqui na espera / a gente tá esperando um / que sirva pra exemplificar” é bem a lógica do “nós contra eles”, a lógica do sangue no olho de 2013, do embate mesmo. Entre 2013 e 2017, quando saiu o “Meio Que Tudo É Um”, comecei a ver que o caminho não era bem por aí, que essa trilha que não era muito saudável socialmente. É bem disso que a gente está falando: o fechamento de bolhas.

Sonoramente, o “Meio Que Tudo É Um” mostra isso. Quando vocês lançaram o disco, todo mundo esperava um disco que fosse ainda mais para a guerra. E ele é o contrário.
É um disco que diz o seguinte: “olha, na verdade eu não tenho bem certeza das coisas e vou abraçar a minha dúvida e vou tentar ampliar o escopo do que está aqui dentro”. É um disco de “sim”. O “Antes Que Tu Conte Outra” é um disco de não, do que a gente não vai aturar, do “não passará!”. O “Meio”, não: é um disco de respiro, de tentar entender as coisas de maneira complexa. Ao fazer esse movimento, já soltamos um pouco a mão, para poder abrir a roda. Um círculo fechado só pode se abrir e crescer se a gente soltar a mão uns dos outros. Claro: se for pensar sobre o que aconteceu com a Apanhador Só, sim, soltaram a nossa mão. Mas a gente já vinha fazendo esse movimento. E bem, não é que a gente teve a mão soltada. A gente foi apedrejado em praça pública. Para nos apedrejar, soltaram a nossa mão antes. Mas essa soltada de mão é bem emancipadora. É positiva, no fim das contas.

Já que a gente entrou no assunto, vamos lá. Como é que o processo de cancelamento aconteceu para você? Voltando mesmo para 2017, lembro que vocês estavam no Rio de Janeiro para fazer os shows de lançamento do “Meio Que Tudo É Um” e sai o texto no Facebook da Clara Corleone, ex-mulher do Felipe Zancanaro. No relato, ela diz que decidiu escrever sobre esse relacionamento encerrado três anos antes por conta de “Linda, Louca e Livre”, uma música que é sua. O texto não é sobre você, mas você foi afetado. O que eu quero saber é: como é que você conta essa história quando alguém te pergunta o que aconteceu?
Eu não conto essa história, porque todo mundo viveu essa história.

Mas você vai ter uma filha agora, que um dia provavelmente vai descobrir e te perguntar sobre o que foi essa história. O que você vai dizer?
Provavelmente, vou dizer que foi uma loucura coletiva. Foi um momento histórico em que as pessoas estavam coletivamente malucas. Sofremos uma violência absurda, surreal, uma destruição de um jeito que, felizmente, anos depois, as pessoas estão começando a se dar conta de que não é bem por aí o caminho. As pessoas estão entendendo que não é justo e não dá para acreditar bem em qualquer coisa que se escreve na internet, que as histórias são muito mais complexas do que se pode colocar num post de Facebook. No fim das contas, ninguém saiu ganhando com isso. O mundo não nos tornou uma vírgula melhores por conta do cancelamento da Apanhador Só.

Houve um exagero?
Rolou. Eu não diria nem que é exagero. Mas se for para responder de maneira simples a sua pergunta, sim.

Não precisa simplificar, pode deixar complexo.
É o mínimo que se pode dizer: rolou um exagero. (pensa). Hoje em dia, graças a Deus, todo mundo já entendeu que essa [cancelamento] não é a via e que não tem como saber a verdade. Não tem como pegar um relato de alguém que tem seus motivos para querer prejudicar outra pessoa, pegar esse relato e utilizá-lo como verdade absoluta para destruir uma carreira. Sim: exagero é o mínimo. Rolou uma loucura coletiva, é o que eu acho mesmo.

Há algo de que você, Alexandre, se arrepende no processo todo? De ter feito a música? De não ter conversado com o Felipe, como amigo? Todo relato tem verdades e mentiras, claro, mas muito do que se colocou nos relatos foram histórias que aconteceram na sua presença. Tem algum arrependimento nessa história?
Não. Da música eu não me arrependo nem uma vírgula. “Linda, Louca e Livre”, inclusive, foi feita para a Lúcia, que é a minha companheira e vai ser mãe da minha filha. É a nossa música de amor e talvez a melhor canção que eu já tenha escrito na minha vida. Falo isso sem muito receio de errar, é uma das minhas melhores músicas, senão a melhor. O problema nunca foi a música, na verdade. A música era só um ingrediente dentro de uma receita explosiva. Foi um dos primeiros cancelamentos de grande escala no cenário independente brasileiro. De lá para cá, muita gente já aprendeu muita coisa e o próprio processo de cancelamento já mudou. Hoje em dia, todo mundo é muito mais maduro para entender que não é bem por aí o caminho, apesar da gente ainda viver uma época de muito cancelamento. Já existem muitas críticas à cultura do cancelamento. Naquela época, era difícil saber como lidar. Hoje, todo mundo tem uma opinião do que poderia ter sido feito melhor na época. Mas quando uma bomba dessas cai na tua cabeça e não existem exemplos prévios, fica difícil decidir por qual caminho seguir. Acho que fizemos o correto, não fomos injustos com ninguém em nenhum momento. Deito minha cabeça no travesseiro tranquilamente todas as noites. Não fomos injustos com ninguém, não devolvemos violência com violência, nem mentira com mentira. A gente não ajudou o mundo a se tornar um lugar pior dentro desse processo.

Como é a sua relação com Fernão e Felipe hoje?
É boa, nós seguimos amigos, nos falamos.

E a banda? Lembro que vocês chegaram a fazer shows em Porto Alegre depois do cancelamento…
A banda seguiu as atividades por um ano depois do cancelamento. É uma coisa que ninguém se lembra ou se deu conta, mas a gente batalhou arduamente. Mantivemos atividades até agosto de 2018, e aí decidimos dar uma pausa. Não estava dando, não estávamos conseguindo girar a roda, mas fizemos mais do que só um show. É louco: as pessoas acham que rolou o cancelamento, nós tentamos fazer um show e a banda acabou.

Daria para voltar com a banda hoje?
Daria, acho que sim. Se alinhar fatores que precisam ser alinhados, levando em conta a vida pessoal e profissional dos três, acho que sim. Se os fatores estivessem alinhados, talvez até a gente já tivesse voltado.

É interessante você dizer isso: comentei com algumas pessoas que você estava lançando o disco e que ia te entrevistar. E de muita gente ouvi frases como “os caras foram cancelados, esquece isso aí, não mexe não.”
É incrível como as pessoas têm uma visão limitada do que é a realidade, da vida pessoal e profissional de alguém. Às vezes, vejo algumas pessoas só começando a se dar conta de como as coisas são quando elas sofrem algum tipo de cancelamento, ou arremedo de cancelamento. Ou quando algum amigo sofre. Aí as pessoas veem como a coisa é potencialmente injusta, como as coisas não são bem assim, como o cancelamento é uma prática medieval nossa enquanto sociedade. É medieval acreditar que alguém que foi cancelado deve ser realmente cancelado e ter sua carreira cancelada por conta de alguma coisa que tenha acontecido – que, normalmente, as pessoas não sabem nem se é verdade ou não. Vou dar um exemplo de como as coisas são voláteis e irresponsáveis na internet, de como a gente não pode tirar conclusões sérias a partir de relatos. Uma das coisas que pegou muito no cancelamento da Apanhador Só foi que o Felipe era “agressor de mulher”. O relato dizia que o Felipe tinha quebrado o dedo dela. Mas a própria pessoa que fez o relato publicou depois que não tinha sido bem assim, que tinha sido uma má interpretação de texto e que ele nunca tinha feito isso propositalmente. A própria relatora desmentiu depois a agressão, que foi o que mais pegou, mas ninguém prestou atenção, ninguém ouviu. Ficou jogado ao vento. O processo de justiçamento é selvagem e o algoritmo não pega o desmentido do mesmo jeito. Cinco anos depois, ainda tem gente que acha que a Apanhador Só foi cancelada justamente porque um dos seus integrantes bateu na mulher. Isso nunca aconteceu. Isso é uma mentira.

Existe uma lógica muito complicada na cultura do cancelamento. Vou traçar um paralelo: quando alguém comete um crime, esse crime tem uma pena, que deve ser cumprida. Existe uma pecha social para o criminoso, claro, mas a pena foi cumprida e, vá lá, dentro de uma lógica judaico-cristã há um perdão. Um cancelamento não tem essa pena: é um carimbo, é uma marca que fica. Feito de maneira justa ou injusta, o cancelamento não tem um prazo para terminar.
E o cancelamento não tem julgamento, não tem direito a contraditório. Quer dizer: tem um julgamento, feito sem provas, sem testemunhas, sem advogados. É a volta à barbárie, na verdade. Com toda a tecnologia que temos nas mãos, a gente volta à barbárie e faz justiçamento. Existe uma coisa muito básica da justiça humana, há muito tempo, que não basta alguém te acusar de algo para tu ser culpado. Não basta só dizerem que aconteceu o crime para você ser julgado. E naquele momento da cultura do cancelamento, se falava muito sobre “não se pode duvidar do relato da vítima”. Isso coloca a base da justiça humana no lixo, porque qualquer um pode escreve qualquer coisa sobre qualquer um e tu não pode duvidar da vítima. O relato da vítima se torna uma verdade absoluta. Tem isso que tu está dizendo, tem questões anteriores e posteriores. Todas as camadas do processo de cancelamento na internet estão equivocadas. (respira).

Se o cancelamento não tivesse acontecido, onde a Apanhador Só estaria hoje?
Impossível dizer.

Acho que é um “exercício” que muita gente já fez – e acredito ser meio impossível que você, Felipe e Fernão não tenham imaginado isso ao menos uma vez.
Eu realmente não trabalho com essas perspectivas. Não é algo que eu faça na minha vida. Eu não crio muitas projeções para o futuro, nem do que seria um futuro se o passado tivesse sido diferente. Eu não estou querendo fugir da pergunta, não (risos).

Agora, na hora de lançar o “Cartilagem”, rolou algum medo ou precaução da sua parte para evitar ruídos? Houve receio de ser cancelado de novo ou interditarem seu trabalho?
Acho que, em 2022, já tendo toda a experiência de cultura do cancelamento no Brasil, quem não quiser nenhum papo comigo, eu também não vou querer papo com essa pessoa. Não é o tipo de público que eu estou buscando. Mas de resto, há um entendimento geral – e eu volto a repetir, acho muito positivo que a gente tenha amadurecido a nossa visão sobre a cultura do cancelamento. Eu me sinto bem confortável de lançar um álbum, até porque a gente não pode deixar a cultura do cancelamento vencer. A gente tem que responder com a cultura da vida, de seguir colocando coisas no mundo, fazendo as coisas nascerem e acontecerem. É o que a gente precisa.

Como as pessoas têm recebido o “Cartilagem”?
A recepção está ótima, está maravilhosa. É um disco do qual eu fiquei afastado durante um tempo, porque ele foi gravado em 2019. Eu tinha um pouco de dúvida se ele não nasceria meio antigo, já, se as questões que estavam colocadas nele ou a sonoridade não teriam perdido o frescor, mas não. As pessoas estão ouvindo, dando um retorno positivo e emocionado, estou feliz mesmo. E isso abre perspectivas para um planejamento de seguir tocando o barco, tocando a carreira adiante. Eu vou fazer shows em dezembro em Porto Alegre e Floripa, aí paro e tiro uma licença paternidade porque a minha filha vai nascer. E devo voltar, o planejamento é voltar para os shows pelo menos no meio do ano que vem.

Acho que o disco não perde o frescor porque o momento do Brasil continua parecido.
Infelizmente. Alguém veio me dizer que o disco estava super atual – feliz e infelizmente, né?

Se o resultado da eleição tivesse sido diferente, o disco seria recebido da mesma forma?
Acho que ele bateria diferente, mas ainda faria sentido, porque ele foi composto em 2018, depois da vitória do Bolsonaro. Se o Bolsonaro ganhasse agora de novo, as questões continuariam as mesmas. E com o Lula ganhando, infelizmente as questões continuam as mesmas, porque isso por si só não muda tudo. É assim que eu vejo.

Em 2023, o “Antes Que Tu Conte Outra” faz 10 anos, assim como o movimento de Junho de 2013 faz 10 anos. Há quem acredite que esse movimento tenha sido uma espécie de ovo da serpente do que aconteceu a seguir. Qual é o balanço que você faz dessa década – e claro, do significado daquele disco ao longo do tempo?
Primeiro de tudo: essa narrativa de que Junho de 2013 foi onde tudo começou é uma narrativa bem simplificada, é uma preguiça de visão histórica que vem a calhar para alguns tipos de narrativas. Acho, inclusive, que se a oportunidade que aconteceu em 2013 fosse bem absorvida e bem trabalhada, no âmbito de governo federal, a gente poderia ter tido uma história diferente de lá para cá. Vejo uma cultura muito mais narcisista do que há 10 anos. Vejo uma tendência da agressividade, da não tolerância e da falta de convivência com diferenças mesmo. Vejo um Brasil que está tendo que lidar com dificuldades tremendas de um governo absurdo – porque o governo Bolsonaro é um governo absurdo – e mesmo depois desse governo absurdo, ainda tem metade do Brasil que vota nele. E eu me pergunto porque isso está acontecendo. Se for pela lógica do meu grupo social, o que mais aparece para mim nas redes sociais, é simplesmente um absurdo: as pessoas são gado. Usa-se muito esse termo, “gado”. Não é gado: são pessoas que votam e tem seus porquês de votar. É muito complexo. Uma das coisas que nos leva a isso é um bode generalizado de todo mundo com todo mundo, porque está todo mundo tá a fim de apontar o dedo na cara de todo mundo. É o que “Onde Eu Não Puder” diz: eu quero poder falar, me expressar, trocar ideia, sem medo de errar uma palavra e ser execrado por causa disso. Acho que está todo mundo muito tenso, todo mundo se preocupando em fazer parte de um grupo para tentar se salvar. Muito numa onda de que, para se afirmar como sujeito que tem valor, você tem que desvalorizar os outros. Isso vai criando um clima social que leva ao bolsonarismo. Num momento em que a gente consegue só meter o dedo na cara dos outros, chamar os outros de ignorantes e um monte de coisa ruim, a fenda entre nós se aprofunda. Os times se armam e a política vira um Gre-Nal. Chega a ser meio uma caricatura infantil, a política infantilóide, ter dois grupos: os que se vestem de vermelho e fazem L com a mão, e os que se vestem de verde amarelo e chamam o Bolsonaro de mito. Parece que estamos no jardim de infância, não é nem na quinta série. É como ir num Gre-Nal, mas é futebol, são dois times, com azul e vermelho, que se odeiam e se xingam. Pelo amor de deus: estamos em 2022, num país como o Brasil, rico, complexo para caralho e difícil, cheio de maravilhas, uma caralhada de gente, um caldeirão, e a gente vai se dividir desse jeito? E aí tem as palavrinhas certas para uns e para outros… é o quadro que eu vejo, sabe.

Existe uma linha tênue entre fazer crítica e colocar o dedo na cara da pessoa. E vou usar um caso de exemplo no qual a Apanhador Só fez parte: o caso do Tom Zé que culminou no “Tribunal do Feicebuqui”, bastante comentado em uma entrevista que a banda concedeu ao Scream & Yell em 2013. Muita gente na época disse que vocês não podiam criticar o Tom Zé, ou que aquilo foi um dedo na cara dele e que não valia a pena conversar com vocês. Como é que você vê aquele episódio?
Ah, eu não faria aquelas críticas da mesma forma hoje em dia. É justamente esse tipo de mudança que aconteceu entre os dois discos. Era uma crítica muito juvenil, muito purista. A vida é mais complexa do que aquilo e o Tom Zé é muito maior do que uma propaganda para a Coca-Cola. Era um momento que os nervos estavam à flor da pele, a gente estava com aquela postura, uma somatória de fatores. Mas tirando isso, eu diria que era uma crítica bem boba e vazia, pelo menos da minha parte. Acho até que naquela época era mais eu que estava falando. Se eu pudesse, se fosse possível, eu voltaria e retiraria as minhas críticas. Eu, Alexandre de 2022, parando na frente do Alexandre de 2013, diria que ele não sabe de nada.

A Coca-Cola aparece na tua porta e te oferece uma grana para fazer propaganda. Você topa?
Naquela época, eu diria não, certamente. Hoje? Olha… volta e meia alguém me pergunta isso. Eu gostaria de saber quais são as condições. Em troca do quê? O que eles têm a oferecer é dinheiro. Quero saber o que o Alexandre Kumpinski vale. Eu não estou valendo nada agora. Se a Coca bater na minha porta, vai oferecer o quê? R$ 1 mil? R$ 2 mil? Tô aqui inventando um número, mas vou dizer que não, claro. Lembro que na época o Tom Zé ganhou, sei lá, R$ 80 mil? Lembro até de achar pouco, ficar meio puto até com isso: “pô, o Tom Zé tinha que ter ganhado mais!”. Era uma crítica boba, feita de uma forma agressiva, muito mais agressiva do que precisava e desconsiderando a complexidade da situação.

Para fechar o capítulo de 2013: com o fim da década passada, é comum que se faça – especialmente entre críticos e jornalistas – uma série de listas, de retrospectivas, de rankings dos melhores discos e bandas de uma época. Talvez você não ligue, mas você sente que a Apanhador Só é deixada de lado nesse tipo de discussão por conta do cancelamento?
Eu não acompanho esse tipo de coisa.

Meu exemplo é a própria lista do Scream & Yell de melhores da década, feita em 2020. O “Antes Que Tu Conte Outra” foi disco do ano em 2013, mas ficou fora do top 15 de discos nacionais – e houve uma discussão em redes sociais, na época da lista, que poderia ter rolado um receio de se votar no disco por conta do cancelamento.
Bah. Vou te dizer que assim, ó: se em 2022, ou 2020, que seja, as pessoas ainda estão fomentando a cultura do cancelamento, é porque elas não entenderam nada.

Vamos voltar pro futuro. O “Cartilagem” tem menos de 40 minutos de duração, é bem menos do que o tempo normal de um show solo. O que é que vai ter no repertório do show para além do disco e de “Vulcão”, que é um single que não entrou?
Além do disco e de “Vulcão”, vai ter músicas novas e vão ter versões também de outras músicas, tanto de compositores consagrados quanto de novos compositores.

Apanhador Só vai ter?
Sempre me pedem e eu não consigo negar (risos). A Apanhador Só é uma banda muito importante na vida de muita gente – e é óbvio que quem vai no meu show solo sabe da história da Apanhador. As pessoas sabem da importância que a banda tem na vida delas e não estão a fim de deixar isso para trás. As pessoas pedem as músicas. Eu toco, não tem porque não tocar. A Apanhador Só não é um capítulo que eu queira esconder, não é algo que eu queira deixar no passado. Muito pelo contrário: é um projeto que me dá muito orgulho. Saímos de ser uma banda independente em Porto Alegre, sem o suporte de grandes gravadoras, estruturas ou produtoras. A gente foi do zero ao muito: teve muita gente trabalhando com a gente, mas não tínhamos nenhuma grande estrutura nos alavancando. O fato de ter rolado o cancelamento e ter tido que parar o projeto é uma vergonha, diria que é uma vergonha para nós enquanto sociedade, mas não é uma vergonha na minha vida. Eu carrego a Apanhador Só junto comigo com o máximo de orgulho, é a coisa mais legal que eu já fiz na minha vida. É o projeto pelo qual eu dediquei mais tempo, mais energia na minha vida, e o que trouxe mais resultados. Eu toco músicas da Apanhador se pedirem, com prazer.

Além de você, quem te acompanha no palco?
A base do show somos eu e o Bruno Neves, que é um dos produtores do disco. Eu fazendo voz, violão/guitarra e ele na MPC, largando programações, samples e eventualmente tocando baixo.

Sem sucata?
Percussão de sucata não tem, mas tem alguns experimentos que eu faço. Tenho uma maleta de vinil e faço interferências no vinil, colocando um copo e crio caminhos no vinil com fita, fazendo loops analógicos. O vinil fica rolando e repetindo, virando um elemento do arranjo. Tem também uma maleta de vinil que eu acoplei um corpo de lanterna, é uma haste com carga de caneta, ela gira e toca um instrumento ou objeto, é um elemento de loop analógico, orgânico. Tem loop do pedal, a gente vai trabalhando com isso, loop analógico, loop digital, lançando samples eletrônicos ou não, tem algumas gravações que são timbres analógicos e dispara na MPC, com isso a gente consegue uma gama bem ampla de possibilidades de arranjo e timbre com poucos elementos e pouca gente no palco.

Para fechar, a pergunta clássica de jornalista: o “Cartilagem” é composto entre 2017 e 2019, gravado quase todo em 2020. Já tem dois anos desse processo. Quando vem o próximo disco?
(risos). Olha, eu tenho muita música nova, mas não parei para analisar esse conjunto para ver se tem material para um álbum. Não estou preocupado com isso agora: estou dedicado ao lançamento do disco, ao nascimento da minha filha, e depois vou me debruçar sobre as questões do próximo.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

One thought on “Entrevista: Alexandre Kumpinski fala de seu debute solo, “Cartilagem”, a sofistificação do funk, política, Apanhador Só e muito mais

  1. Cara eu acompanho o Alexandre desde 2012 quando me foi apresentado o Acústico sucateiro, depois fui ao show de2014 em BH na sala de estar, que coisa maravilhosa, e essa entrevista é tão importante pois trata a visão do Alexandre sobre como aconteceu tudo isso nessa última década, e saber que apesar da injustiça com seu trabalho, vc enxergar isso com naturalidade e sem mágoas é muito inspirador pra muitas áreas de pensamento tanto social quanto cultural. Obrigado por essa rica entrevista!

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