Especial Portugal: A dinâmica criativa do selo lisboeta Cafetra Records

Reportagem especial de Pedro Salgado, de Lisboa

Ao longo da sua existência, o selo independente lisboeta Cafetra Records tem-se apresentado como uma comunidade onde existe trabalho, amizade, colaboração e cooperação, espelhando a identidade dos seus integrantes. Na prática, o coletivo grava, edita e promove os discos solo ou em banda dos seus artistas e programa os shows, propondo espaços alternativos às salas habituais. O que começou por ser uma união de amigos que em 2008 pretendia gravar e editar as suas músicas, evoluiu com o desenvolvimento da interação entre os seus integrantes, originando as Noites Fetra (a primeira realizou-se em 2011, no Teatro A Barraca, para financiar o disco de estreia do grupo Os Passos Em Volta, “Até Morrer”), que funcionam quase como um festival e que incluem várias apresentações de membros da Cafetra e, por vezes, outros artistas convidados, tendo-se realizado, igualmente, em espaços como a Casa Independente, Caixa Económica Operária e a Galeria Zé dos Bois – todos em Lisboa.

Com o eclodir da pandemia, em 2020, que resultou no cancelamento da agenda de shows, a Cafetra empreendeu uma candidatura à DGArtes (um organismo do Ministério da Cultura da República Portuguesa que tem por missão a coordenação e execução das políticas de apoio às artes em Portugal), da qual nasceu a Tour Fetra, que percorreu várias cidades e localidades de norte a sul do país, juntando os músicos da Cafetra a artistas locais, numa tentativa de descentralizar as apresentações ao vivo, firmar laços comunitários e promover experiências coletivas de comunidade e liberdade. A tour começou em 28 de Outubro de 2021 e terminou em 22 de Julho de 2022, englobando diferentes agrupamentos para cada ciclo de shows, fazendo com que os espetáculos fossem diferentes e em salas maioritariamente pequenas. O espírito transversal da Cafetra norteou o projeto, juntando os seus músicos todos em palco para tocarem canções dos respetivos repertórios, em ambientes lotados ou mais calmos e propícios à confraternização.

Maria Reis e Júlia Reis na Noite Fetra em Folques / Foto de Francisco Correia

“A Tour Fetra foi uma boa oportunidade para retomar as ligações que já tínhamos e construir uma rede que nos permita ter maior independência para marcar shows fora de Lisboa”, diz-me Francisca Salema (a artista conhecida como Sallim), numa conversa via Internet envolvendo também os músicos Maria Reis, Leonardo Bindilatti e Júlia Reis (por email). Pelo meio, Sallim destacou igualmente as dificuldades com que se depararam: “Tivemos alguns artistas convidados que tocaram pela primeira vez na sua terra natal o que é algo estranho. Nem tudo foi fácil ou maravilhoso, porque confrontámo-nos com os problemas que estas pequenas comunidades artísticas têm fora da cidade e sem o apoio da DGArtes era impossível tomar conhecimento delas”. Enquanto Maria Reis indica um conceito aglutinador: “A nossa ideia de progresso cultural era existir um núcleo auto-suficiente, auto-sustentável e de música boa, em cada terra ou cidade, que gerisse este tipo de dinâmicas. Se calhar é pedir muito, mas há lugares onde isso existe e é fixe (legal). O objetivo é que seja orientado para as pessoas e não tenha intenções grandiosas ou comerciais”.

Diversidade artística da Cafetra

Dentro da variedade de projetos musicais que compõem o selo lisboeta, num espectro que abrange o pop eletrônico saudável dos Iguanas (um duo composto por Lourenço Crespo e Leonardo Bindilatti), o noise-punk de Putas Bêbadas, o folk hábil e descontraído de João Marcelo (artista conhecido como Éme), ou o cancioneiro de sensibilidade apurada de Sallim, entre outros, evidencia-se, também, o desejo de abordar as composições com honestidade e inovação: “Uma coisa que nos liga a todos é que nós cantamos como falamos e não entramos em grandes delírios poéticos. Existe uma vontade de trazer o real para a música. Isso é partilhado por todos. Para além disso, tentamos cantar palavras novas e surpreender-nos mutuamente”, explica Maria Reis.

É inegável que um dos grupos que mais contribuiu para a visibilidade do selo lisboeta foram as Pega Monstro, um duo que Maria Reis manteve com a sua irmã Júlia Reis. O punk pop afiado e a mensagem catártica da banda, ligada aos relacionamentos e às dores de crescimento do par, manifestou-se igualmente em shows inesquecíveis e em álbuns clássicos como “Pega Monstro” (2012), “Alfarroba” (2015) e “Casa de Cima” (2017). Para Maria, a música foi a principal razão do sucesso do conjunto: “A nossa música fala de nós, o que nos rodeia e aquilo que representamos. No fundo, ela trata dos nossos laços mais próximos, afetivos, ideais e isso transparece na sonoridade. Acima de tudo a música é o aspecto mais importante para disseminar a mensagem e no caso das Pega Monstro ela é boa e os shows também”. No entender de Júlia Reis, o fator internacional também favoreceu o grupo e o selo: “As Pega Monstro foram a primeira banda a lançar fora do coletivo, pelo selo londrino Upset The Rythm. Isso facilitou-nos muito para poder tocar além do circuito Portugal/Espanha então, naturalmente, deu mais visibilidade à Cafetra, que é como uma extensão da nossa família”.

Putas Bêbadas na Noite Fetra em Bragança / Foto de Sallim

Ultrapassados os constrangimentos provocados pela pandemia e animados pelo bom andamento da Tour Fetra e por diversos espetáculos bem sucedidos dos seus artistas, o ano de 2022 foi também bastante positivo ao nível das edições discográficas. “Nível Lounge”, o novo disco de Putas Bêbadas, manteve a irreverência, o sarcasmo e a potência sonora tão grata aos seus fãs e o álbum homónimo de Éme e Moxila (que esgotou a primeira edição com rapidez) apresentou um lote de canções cativantes baseadas nas histórias pessoais dos dois músicos, cruzando o folk, country e a música tradicional portuguesa. Por seu turno, Maria Reis deu continuidade ao seu magnífico percurso solo com o álbum “Benefício da Dúvida”, num trabalho solto no qual convivem o neo-punk e o folk de lírica amadurecida e em que a intensidade como exibe os seus sentimentos gera maior sintonia com o público. No ano passado assistiu-se também à estreia discográfica de Júlia Reis em nome próprio com o belo disco “Ó Nossa”, marcado pela sua recente maternidade e pela solidão e isolamento resultantes da vida numa aldeia do interior de Portugal, alternando faixas delicadas e contemplativas com algumas canções ligadas à herança da música popular portuguesa, que Júlia me diz “acompanhar há algum tempo”.

Foco na criação e edição

Para Sallim, que além de fazer o design gráfico dos seus discos e dirigir clipes é responsável pelo site e pela dinamização das redes sociais da Cafetra, o êxito dos discos lançados pelo selo encerra algum relativismo: “Temos um sucesso sempre à nossa escala. O único financiamento que por vezes recebemos e que é direcionado para as edições é o apoio da Fundação GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas). Mas, suportamos os nossos lançamentos com o rendimento que resulta da venda dos discos, especialmente no Bandcamp”. Complementarmente, expressa um voto: “Queremos continuar a criar e a editar, de uma forma possível, sustentável e conciliável, porque alguns de nós têm outras atividades, mas sempre dentro do universo das artes e da cultura”.

Leonardo Bindilatti é um dos melhores exemplos da versatilidade dos integrantes da Cafetra Records. Para além de ter sido um dos fundadores do selo, produz discos, é DJ e técnico de som, toca bateria em Putas Bêbadas e exibe o seu talento como beatmaker com Iguanas e no seu projeto solo ligado à eletrônica e ao trap: Rabu Mazda. “Eu não separo mentalmente as coisas quando estou a tocar. É apenas aquilo que me agrada, porque eu gosto de fazer música”, começa por me dizer. No que diz respeito à mensagem positiva que é muitas vezes associada à música de Rabu Mazda, Leonardo apresenta a sua visão particular: “As pessoas dizem que eu dou um sentido otimista às minhas canções, mas sinto que elas também estão ligadas às minhas frustrações. Se calhar a forma como me expresso é que engloba alguma positividade e isso fica mais claro para o público”.

Tour Fetra / Foto de Cátia Rodrigues

A possibilidade de uma aposta internacional mais vincada é um dos tópicos que continua na mente do coletivo, mas não é só o preço das viagens que dificulta a missão, como me explica Maria Reis: “Muitos dos clubes e agentes que faziam parte do circuito independente, e que estavam ligados às turnês, já não têm capacidade para trazer músicos de outros países e a indústria ficou voltada para o cenário festivaleiro que rende mais dinheiro”. No entanto, o objetivo mantém-se em aberto: “Se calhar devíamos pensar em ter distribuição europeia, como no Brasil, e reacender as ligações que fizemos com o selo Upset The Rhythm, que nos possibilitou tocar na Europa e no Brasil e tentar conectar-nos de novo com esse circuito”, conclui.

Com a crescente afirmação dos artistas da Cafetra no panorama musical português, e em particular de Maria Reis, colocam-se igualmente novos desafios que passam pela perspectiva de poder alcançar uma visibilidade maior e, eventualmente, a aproximação a um patamar mainstream, algo que Maria se apressa em contrariar: “Eu não tenho nenhuma intenção de tornar a minha música comercial ou atingir um lugar em que não consiga controlar o meu ambiente. O que me importa é ter uma ligação com a audiência e com as pessoas que me acompanham. Por isso, farei por continuar a surpreender, mas também a agradar ao meu público”. Ao mesmo tempo, revela ambição e senso sobre o momento que vive e os espaços onde comparece: “Atuar na Culturgest era algo que eu não via como realidade, mas surgiu a ocasião. Foi desconfortável tocar para muita gente, no entanto é legal porque consigo ver aspetos positivos nisto, ou seja, a música chega a mais público e aos jovens. E não é por aparecer muito spam no Facebook ou pelo fato das minhas canções passarem na rádio, mas sim porque as pessoas cultivam-nas e adquirem um gosto próprio”.

Objetivos da Cafetra para 2023

De acordo com Leonardo Bindilatti, o primeiro objetivo do selo lisboeta para 2023 é “tentar editar um disco ao vivo, compilando os vários shows que os artistas da Cafetra fizeram no âmbito da Tour Fetra”, enquanto Sallim reafirma a vontade geral em continuar a editar e adianta que “o rescaldo da tour e a tentativa de criar uma dinâmica interna mais empenhada estão em marcha”, bem como “uma melhor organização do catálogo e a abertura às reedições de material antigo”.

Sobre os cenários que se colocam ao panorama musical português dos próximos tempos, Maria Reis revela uma aspiração: “Mais do que vislumbrar o futuro, gostaria de ver mais editoras como a nossa trabalhando em Portugal, porque o que se verifica atualmente é que essas organizações funcionam durante dois anos e depois acabam. É preciso uma maior resiliência para ultrapassar os obstáculos que encontramos e seria bom que houvesse mais vontade de criar um circuito independente e auto-suficiente”.

O mérito da Cafetra Records foi o de ter recuperado um espírito de comunidade que estava adormecido no universo musical indie português, dotando o selo de uma identidade própria, alicerçada em projetos musicais variados e originais, nos quais a espontaneidade e a procura de abordar e cantar a realidade foram acompanhadas por uma atenção ao gosto e ao sentir do público que aderiu à sua mensagem. Esta aventura de disposição familiar, onde se relativizam as expectativas e se almeja a evolução artística, conhecerá seguramente mais e melhores resultados, porque o seu dinamismo e a sua criatividade têm um caráter genuíno e inesgotável.

Conheça mais sobre a música feita em Portugal hoje

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.



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