Entrevista: Glenda Nicácio e Ary Rosa falam sobre a homenagem recebida na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

entrevista por João Paulo Barreto

Na abertura da 26ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, que começou na última sexta-feira, dia 20, e segue até o dia 28 de janeiro, a dupla de cineastas Ary Rosa e Glenda Nicácio (mineiros de nascimento, mas filhos do Recôncavo baiano e da UFRB) foram à frente da plateia que lotou o Cine Tenda, na exuberante cidade histórica de Minas Gerais, e trouxeram um discurso de esperança.

“É muito bom poder pensar que vamos ser homenageados e poder, quando formos chamados lá na frente, fazer um discurso de esperança, e não um discurso de protesto, que é o que a gente tem feito nos últimos quatro anos cada vez que somos chamados a falar”, contou Ary, em entrevista concedida ao Scream & Yell, antes de viajar para Tiradentes.

Surgindo para o cenário do audiovisual brasileiro em 2017, com o longa “Café com Canela”, Glenda e Ary vêm apresentando uma produção que se consolidou em um cenário de escassez de políticas públicas voltadas para o audiovisual. Mesmo assim, conseguiram manter um a regularidade de projetos em obras como “Ilha” (2018), “Até o Fim” (2020), “Voltei” (2021) e “Mugunzá” (2022), filme de abertura na Mostra de Tiradentes 2023.

Glenda, que nesse período também dirigiu o projeto solo “Eu Não Ando Só” (2021), afirma que a construção da filmografia da dupla, através da produtora Rosza Filmes, reflete essa postura de se buscar criar no audiovisual mesmo com a asfixia cultural advinda do cenário político. Mas há um otimismo latente com a nova conjuntura de retorno do MinC e da Ancine.

“Em tempos bons e em tempos ruins, nós existimos. E acho que a gente não perde isso de vista. Então, acho que é contar e saber que dentro dessa nova conjuntura de governo se tem mais espaço e mais possibilidade de criação. Mais políticas públicas que estejam pensando e fomentando isso. Fomentando atores e toda essa estrutura para que essas pessoas sejam acessadas enquanto público e enquanto produtores”, pontua Glenda.
Nesse papo com o Scream & Yell, ambos aprofundam suas impressões acerca desse momento especial. Confira!

20230121 – TIRADENTES – MG – 26ª MOSTRA TIRADENTES – DEBATE – O CINEMA MUTIRÃO DA ROSZA FILMES – PERSPECTIVAS DAS CURADORIAS – Foto Leo Fontes/Universo Produção

Ary e Glenda, a história de vocês dentro do audiovisual possui uma ligação muito forte com Tiradentes, passando por visitas como espectadores, em oficinas, em apresentação de filmes e, agora, como homenageados. Qual o significado de olhar para trás e perceber essa trajetória?
Ary – A Mostra de Tiradentes é muito significativa pra gente. Primeiro porque Glenda e eu somos de Minas. Então, já era uma mostra que meio que rondava o nosso imaginário. Em 2010, viemos para Cachoeira para fazer o curso de cinema. Em 2011, voltamos para Minas e Tiradentes foi o primeiro festival que fui. Primeira mostra grande. Fui para fazer oficinas, nessa coisa de conhecer o cenário. Foi lá que eu fui conhecer a Alumbramento, a Filme de Plástico (nota: produtora responsável pelo filme “Marte Um”, entre outros). Um pouco mais adiante, o Adirley (Queiroz, cineasta do DF). Então, foi um lugar aonde voltamos umas duas ou três vezes antes de fazer “Café com Canela”, que é o filme que vai, de alguma forma, projetar a gente. Então tinha esse imaginário. Essa vontade de sentir Tiradentes como esse lugar onde o cinema se encontra afetivamente pra gente. Fiz várias oficinas lá, como a de direção com Jorge Bodanzky. E aí, em 2018, fomos chamados para fazer a abertura da Mostra com “Café com Canela”, na homenagem ao Babu Santana. De lá pra cá, todos os anos temos marcado presença em Tiradentes. Em 2017, apresentamos “Café com Canela”. Em 2019, fomos com “Ilha”, e em 2021 a gente participou de um programa que eles têm, que é o Cine Mundi, que é voltado a obras que ainda estão em finalização, com o “Mugunzá”. E esse ano voltamos homenageados e exibindo presencialmente o “Mungunzá”. “Na Rédea Curta” na praça e os outros filmes vão ficar on line no site. Então, é um momento bem especial.

Glenda – E é muito importante porque Tiradentes está muito na nossa construção. Faz muito parte da nossa formação. Foi a primeira mostra, o primeiro festival que participamos. Acho que foi o primeiro lugar onde tivemos entendimento de mercado. Esse susto com o mercado, com o que se espera com o conteúdo, com esse pensamento. Então, traz tudo isso à tona. Ao mesmo tempo é um lugar em que a gente vem se consolidando. Sempre voltando com filme. O último que exibimos lá, que foi o “Até o Fim”, foi uma sessão super bonita e que, por muito tempo, ficou sendo a nossa última memória de público, porque foi em janeiro de 2020, e logo depois começou a pandemia. Depois, ficamos um bom tempo com “Até o Fim” sendo exibido somente on line, à distância. Então, nossa última memória de público, até então, antes do lançamento do “Na Rédea Curta” e antes do lançamento do “Mungunzá”, era um público de Tiradentes que sempre nos abraça de uma forma bastante calorosa. E é um espaço gostoso de troca, de encontros. Acho que por ser uma cidade pequena, também, se aproxima da gente esse lugar de Cachoeira, de ser uma cidade de interior, pequena, aonde a gente vai pra rua e as conversas meio que acontecem ali. Acontecem não necessariamente só no cinema. A sala de cinema é só um passo para a gente encontrar com as pessoas no meio da cidade.

Sobre a homenagem, como isso reflete para vocês e para o horizonte futuro?
Ary – É muito bom poder pensar que vamos ser homenageados e poder, quando formos chamados lá na frente, fazer um discurso de esperança, e não um discurso de protesto, que é o que a gente tem feito nos últimos quatro anos cada vez que somos chamados a falar. Então, independente dos movimentos que ainda estão por vir, hoje o discurso só remete à esperança. E sermos homenageados neste momento, pra gente, é algo muito bonito. Porque é como se um peso saísse para celebrar. Passamos por esses últimos seis anos de muita dificuldade para o audiovisual. E não passamos imunes a isso. De alguma forma, passamos. Conseguimos passar por esse momento. Acho que também aprendemos muito com esse momento. Sobre como a história do cinema brasileiro se repete. Como esses ciclos de farturas e de escassez vão se repetindo durante toda a história do cinema brasileiro. E eu acho que a gente conseguiu passar por esses momentos de escassez vislumbrando um momento de fartura. Mas, aí, eu acho que, também, todos, a classe, os governos, acho que é preciso já ter uma concepção sobre pensarmos uma fartura responsável para o audiovisual para que esses momentos de escassez não sejam tão devastadores, como têm sido. Tem esse movimento de poder celebrar a UFRB, de poder celebrar o cinema do interior, poder celebrar novas perspectivas. Acho que a Bahia ganha um protagonismo dentro da cultura nacional pensando nessa conjuntura política que, para a gente, é muito importante. Acho que, também, é celebrar a Bahia, celebrar o audiovisual baiano. Há muito tempo que a gente não celebra. Ficamos muito gratos a Tiradentes por nos proporcionar isso. Proporcionar, nesse momento de celebração, também sermos celebrados.

Glenda – Acho que é isso, mesmo. Essa sensação de reconstrução. Estamos nesse espírito. É o que eu tenho sentido com as pessoas com quem tenho conversado. A sensação é aquela de: ‘Vamos lá. Vamos reconstruir! Temos um grande trabalho pela frente, mas estamos aqui. Estamos aqui para diálogo’. É bonito demais poder nesse janeiro começar o ano já com esse mote.

Na filmografia de vocês, uma variedade de temas e experimentações é palpável. Desde dramas mais afetivos, como o de “Café com Canela”, passando por aqueles mais enérgicos, como “Ilha”, até comédia como “Na Rédea Curta” e em um aspecto mais teatral, em “Mugunzá”. Para vocês, como se dá esse processo de nortear as escolhas para os projetos?
Glenda – Para mim e para o Ary, cinema nunca é uma coisa certeira. Desde o “Café com Canela”, sempre refletimos sobre qual vai ser o próximo filme. E, invariavelmente, a gente também é surpreendido. Por vários momentos ficamos meses combinando. “Café com Canela” foi muito assim. Vamos fazer o “Café” e, depois, vamos fazer tal filme, tal roteiro que já saiu que a gente já está estudando, que a gente já tem uma proximidade. E aí, de repente, vem o mundo. Porque acho que é também contar com as configurações históricas, as configurações de país. “Mugunzá” é muito um reflexo disso. O tipo de história. Como é feito. O fato de ser feito dentro de um teatro, dentro de um único espaço. São várias escolhas estéticas, narrativas, que estão interagindo o tempo todo com o mundo. E eu acho que esse é o nosso maior pacto. Esse pacto de fazer um cinema que esteja ancorado no aqui. Onde é que estamos fazendo, qual o território que a gente está fazendo. Com quem é que se está fazendo e de quais formas que se está fazendo, culturalmente e economicamente pensando. Então, é um pouco um retrato de tudo isso. E para além de todas essas questões, tem, também, o nosso gosto pela experimentação. ‘Se já viemos por aqui, vamos buscar um caminho totalmente diferente, agora?’ Porque eu acho que a gente também vai se descobrindo e vai se experimentando diretores nesse lugar.

Ary, você traz em sua assinatura como roteirista, também, muito dessa experimentação, buscando, como visto em “Mugunzá”, muitas fontes literárias para a construção, tai como “Medea”, letra de Chico Buarque, por exemplo. A experimentação da escrita nesse sentido é um norte para seu processo de criação no roteiro?
Ary – Acho que sim. Mas acho o processo de escrita um lugar muito objetivo do que queremos fazer. Acho que a gente também já vem sentindo quais esses caminhos que queremos. Eu acredito muito no roteiro como um grande parceiro da produção executiva. Porque é a partir dali que vão sair os valores que fazem um filme ser grande, pequeno, com muitas locações ou com poucas locações, como muitos atores ou poucos atores, com demandas estéticas e tudo mais. Então, “Café com Canela”, especificamente, eu acho que tem esse lugar de um roteiro que vai se trabalhando ao tempo, que vai se deixando ser qualquer coisa. Mas eu acho que de “Café” pra frente, é sempre essa objetividade: ‘vamos fazer um filme? Vamos! Quanto se tem para fazer um filme?’ E aí começa a fazer essa produção da escrita a partir dessas limitações, que a gente chama de precariedades, mas que são potências de linguagem. Entendemos que a precariedade existe como potência de linguagem. Então, cada vez mais, meus roteiros têm sido mais generosos com a direção. E isso inclui Glenda e eu no sentido de uma abertura para possibilidades que não engessem a estrutura fílmica e de linguagem, mas que, ao mesmo tempo, possa trazer esses elementos econômicos que possibilitam a feitura do filme. Acho que a gente consegue fazer uma média de um filme por ano porque temos roteiros que nos possibilitam chamar nossos amigos e fazer um filme como “Mungunzá”, com oito pessoas na equipe e dois atores em uma única locação.

O ministro Silvio Almeida trouxe um discurso de posse muito forte. Penso que o cinema representa muito do que foi dito, sobre as pessoas existirem e serem importantes. E seus filmes refletem muito a importância dessa representatividade.
Glenda – Sim. Em tempos bons e em tempos ruins, nós existimos. E acho que a gente não perde isso de vista. Então, acho que é contar e saber que dentro dessa nova conjuntura de governo, se tem mais espaço e mais possibilidade de criação. Mais políticas públicas que estejam pensando isso, que estejam fomentando isso, fomentando atores, fomentando toda essa estrutura para que essas pessoas sejam acessadas enquanto público e enquanto produtores, também. Mais especificamente, pensando na nossa Rosza Filmes, essa é uma pauta que é constante. Porque a nossa equipe, também, é muito diversa. A nossa equipe também é composta por essas pessoas. Então, é menos no sentido de ‘nós vamos dar voz’, porque temos um tanto de vozes pelas quais nós não podemos falar. E nem nos interessa falar. Mas nos interessa estarmos próximos diante de um pensamento, diante de uma construção de imaginário. E por isso a nossa equipe é tão diversa.

Já existem projetos confirmados para 2023?
Glenda – Nós estamos vivendo esse momento. Estamos saindo do “Na Rédea Curta”, que está nesse período ainda de distribuição, e que também é esse período de entender, também, o que é o filme, o tamanho do filme, aonde ele chegou, até onde ele vai. Estamos, ainda, vivendo o “Na Rédea Curta” e nos preparando para Tiradentes. Acho que uma coisa desse período agora é poder celebrar, afinal de contas, o agora. Então, acho que o nosso próximo passo grande é Tiradentes. E acho que é lá que todo mundo se encontra e acho que a partir daí as coisas vão acontecer, também.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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