Entrevista: Nestor Mendes Jr. fala sobre seu novo livro, “Bahêa, Minha Paixão – Primeiro Campeão do Brasil”

 entrevista por João Paulo Barreto

Para torcedores de um time de futebol, pessoas que têm um grau de admiração por uma equipe esportiva pela qual se sintam representados dentro das quatro linhas de um gramado, há sempre questões afetivas que ultrapassam qualquer senso de pragmatismo. Muitas vezes, tais questões estão relacionadas a raízes e a laços familiares; a períodos representativos de uma vida; a aspectos emocionais nostálgicos ou, simplesmente (em um nível mais avançado), aquele time é a razão através da qual tais pessoas se relacionam socialmente. Em um nível ainda mais profundo e idiossincrático: aquele time é, simplesmente, a razão pela qual aquelas pessoas vivem.

O jornalista a escrever esse texto tinha sete anos de idade quando, em fevereiro de 1989, estava com seu pai, Antonio, em uma Fonte Nova abarrotada naquele Bahia x Fluminense com mais de 110 mil pessoas a lotar o estádio. Apesar da lembrança daquele dia estar nublada pelos assustados olhos infantis, a já adolescente década seguinte traz à atual memória quarentona nomes como Lima Sergipano, Uéslei, Bebeto Campo, Clebson, Jean e outros a marcar os anos 1990 e a construir uma raiz ligada ao citado laço familiar afetivo oriundo do velho Barretão, que, infelizmente, partiu de modo precoce ainda em 2011, não vendo, em 2012, seu time voltar a conquistar um título baiano após jejum de quase uma década.

Nestor Mendes Jr., em seus escritos a revistar a trajetória do Esporte Clube Bahia, consegue captar os detalhes de todos esses sentimentos acima. No seu novo livro, “Bahêa, Minha Paixão – Primeiro Campeão do Brasil” (2022), ele esmiúça não somente o aspecto de pesquisa histórica e profissional dos 90 anos do seu time, mas, também, esse ponto emocional atrelado ao esquadrão, ao seu hino, ao seu uniforme, sua apaixonada torcida e ao estádio da Fonte Nova. “Ao longo do tempo, você tem ciclos. Tem um ciclo no qual o Bahia está bem, tem outro em que outro clube não está. E o que é que você leva? Por exemplo, você foi menino com sete anos para a Fonte Nova. Aquilo é um alumbramento para sua visão. A primeira vez em que eu entrei no estádio, em um BA-VI, aquilo não existe para o olhar de um menino”, afirma Nestor, que tem registrada na memória a primeira vez que pisou no templo baiano.

“Eu lembro que fiquei maluco com aquilo. Como é que você tem uma torcida gritando daquele jeito? Aquela coisa colorida? Uma parte azul, vermelha e branca. A outra parte vermelha e preta. Aquele frenesi. Aquilo é uma coisa que não sai da cabeça. São elementos que você vai incorporando e que, hoje, qualquer criança percebe”, pontua o autor, que, acertadamente, representou em seu novo livro essa longevidade do clube através de fotos de uma jovem e nova geração de torcedores mirins.

Com “Bahêa, Minha Paixão – Primeiro Campeão do Brasil”, Mendes Jr. pôde corrigir algo que, desde 2001, quando lançou seu primeiro livro sobre o esquadrão, o incomodava. “Uma das coisas era essa questão do almanaque indo de 1931 até 2021. Noventa anos. Eu considerava que uma incapacidade do primeiro livro de 2001 era não atender a todas as temporadas. É um livro muito sintético. Por exemplo, às vezes, no livro de 2001, tem três temporadas que estão lá, juntas, em um parágrafo as resumindo. É muito pouco. E não detalhava sobre os acontecimentos históricos no Brasil e no mundo. Então, o novo livro corrige essa falha do de 2001. Ele detalha as temporadas. Hoje, elas estão muito mais aprofundadas”, explica o autor.

“Bahêa, Minha Paixão – Primeiro Campeão do Brasil” é o terceiro livro no qual Nestor aprofunda sua pesquisa sobre o seu time do coração. No segundo, “Nunca Mais! 25 Anos de Luta pela Liberdade no Esporte Clube Bahia”, lançado em 2014, ele apresentou um compêndio de toda a luta da torcida do Bahia contra os ditadores que se apossaram do time desde sua fundação em 1931. Luta essa que democratizou o clube. “A tirania e a ditadura são as coisas mais burras que existes politicamente falando tanto para um clube de futebol quanto para um país, quanto para uma empresa. Para qualquer coisa. A ditadura é um negócio nocivo não somente do ponto de vista da liberdade social, mas da liberdade econômica, também”, crava Nestor, que traz no novo livro a fase de trevas pela qual passou o time.

“Para você ter uma ideia, esse Bahia que era o Bahia dos Maracajás e dos Guimarães, que a gente chama de Bahia das trevas, você tinha, no máximo, 200 sócios pagantes. Teve eleição com pouco mais de 150 sócios com a mensalidade em dia. Hoje, o Bahia tem 45 mil sócios com o clube caindo para a segunda divisão ano passado, sem uma grande vitrine. Imagina uma mensalidade de R$50 para uma quantidade de 45 mil a 50 mil sócios? Imagine quanto se perdeu de dinheiro durante esse período das chamadas trevas? Por uma questão de vaidade pessoal. Isso era uma completa idiotice”, opina. Além do tratado escrito por Nestor, o novo livro traz textos escritos por nomes como Evaristo de Macedo, o técnico do bi-campeonato de 1988, sendo essa a primeira vez em que o veterano professor se debruça em um artigo autoral sobre a conquista histórica; do ex-diretor da CBF, Virgílio Elísio, que foi o mais jovem presidente do Conselho Deliberativo do Bahia, bem como do Dr. Ruy Botelho, médico e expert em camisas tricolores, e do músico e escritor Manno Góes, além de vários outros.

Para um time que chega aos 90 anos, o novo livro é um marco que representa um novo horizonte. “A partir de 2023, o Bahia está sob nova direção. Estará sob o comando do City Group, que é um grupo que tem expertise. Os caras não vão meter a cara em uma história dessa para brincar”, afirma Nestor sobre a nova fase e finaliza de modo direto: “Para o apaixonado pelo Bahia, o presidente é muito secundário. A gente quer ver é título. A gente quer ver é gol. Quer ver o Bahia disputando campeonatos. Essa é a verdade. Essa é a paixão do torcedor e que não vai acabar nunca”. Mais do que nunca, é isso. BBMP!!

Nessa entrevista ao Scream & Yell, Nestor aprofunda como se deu sua pesquisa para chegar a “Bahêa, Minha Paixão – Primeiro Campeão do Brasil”, além de relembrar momentos que definem o indefinível amor pelo Esporte Clube Bahia. Confira!

Esse é seu terceiro livro sobre o Bahia, sendo que este comemora os 90 anos do tricolor. Após 20 anos do primeiro, “Esporte Clube da Felicidade”, lançado em 2001, como foi o processo de revisitar essa história acrescendo mais vinte anos a ela?
Quando você começa alguma coisa, é preciso um ponto de partida. Como uma caminhada. Tem que chegar ao primeiro passo. No primeiro livro, era meio que uma caminhada que você não sabia onde ia dar. Porque eu tinha algumas referências da década de 1940. Aroldo Maia escreve um livro que abrange até 1940, primeira parte (N.E. Livro lançado em 1969 sob o título “A Verdadeira História do Esporte Clube Bahia”, em dois volumes). Depois, Newton Calmon e Carlos Casaes, que são jornalistas, eles escrevem um outro chamado “Bahia de Todos os Títulos”, que vai até o começo dos anos 1970. Então, eu tinha mais ou menos isso como referência. Mas, livro, quando você começa a escrever, é uma coisa meio sem fim. Você não sabe onde vai dar. O primeiro livro de 2001, ele foi referência para esse novo porque ele calca a pesquisa histórica (N.E. “Bahia Esporte Clube da Felicidade – 70 Anos de Glória”, lançado por Nestor Mendes há 21 anos). São mais de 200 depoimentos de jogadores que, hoje, não estão mais vivos. Pessoas que nos deixaram nesses 20 anos. Esse livro me ajudou muito a dar esse norte, esse caminho, essa direção. Agora, esse novo livro tem uma capacidade de absorver o de 2001, de amplificar, de filtrar e de melhorar. Eu sou o autor, sou suspeitíssimo para falar, mas acho que é um livro dez vezes melhor que o de 2001. Muito pelo apuramento, pelo refinamento da pesquisa, por poder acrescentar coisas que não tinham antes.

Você citou no release a inclusão de um aprofundamento em fases que estavam ausentes no livro de 2001. Quais foram essas fases?
A temporadas de 1957 e 1960 eram tratadas de uma forma meio ‘en passant’. A questão das excursões do Bahia, por exemplo. Eu achava que faltava alguma coisa. O ex-senador Antonio Carlos Magalhães Jr., que foi uma pessoa que me deu uma espécie de norte no início do primeiro livro, de 2001, tem uma memória prodigiosa sobre o Bahia. Ele me cobrava dizendo que faltava mais detalhes sobre aquelas excursões. E aí você tem coisas que mesmo a torcida mais velha passava batida. Ficava uma coisa assim… (pausa) Porra, o Bahia ganhou do Bayern, da Alemanha. Um amistoso, certo, mas ganhou dentro da Alemanha. O Bahia jogou contra o Chelsea. Foi pioneiro na Rússia, que na época era URSS. São coisas que o novo livro incorporou e encorpou ao de 2001. Quando comecei a escrever, pensei: “Rapaz, eu não vou somente ampliar os 20 anos.” A ideia era pegar os 20 anos que faltavam, complementar e pronto. Estava pronto o livro. Mas pensei: “Não, vou reescrever esse livro do início ao fim.” Comecei em fevereiro de 2021 e terminei, praticamente, em novembro desse ano, quando ainda tinha coisas de última hora para acertar. E livro tem uma coisa interessante. Qualquer obra literária, para finalizar, você tem que simplesmente que parar. Se você não parar, você não termina nunca. Precisa colocar um ponto final. E ai você tem logo depois do livro concluído, o Bahia sobe de novo para a primeira divisão e vira SAF (N.E. Sociedade Anônima de Futebol). Vira um clube multinacional dominado, hoje, por árabes, norte-americanos e chineses. O Bahia não é mais somente baiano. E isso acontece rapidamente. Então, é muito dinâmica a história.

Ao ter acesso ao livro, além da diagramação detalhada com diversos aspectos históricos tanto do tricolor como em um contexto geral do Brasil e do mundo, chama atenção a estrutura de almanaque, temporada após temporada.
Sim. Uma das coisas era essa questão do almanaque indo de 1931 até 2021. 90 anos. Uma falha, uma incapacidade do primeiro livro de 2001 era não atender a todas as temporadas. É um livro muito sintético. Por exemplo, às vezes, no livro de 2001, tem três temporadas que estão lá, juntas. Somente divididas com uma barra ou em um parágrafo resumindo três temporadas, por exemplo. É muito pouco. Não se detalhava os acontecimentos. Sobre o que permeava cada um. Os acontecimentos históricos no Brasil e no mundo. Então, esse livro corrige essa falha do de 2001. Ele detalha as temporadas. Hoje, elas estão muito mais aprofundadas. Claro que você pode até descobrir que falta alguma coisa. Mas os detalhes estão extraordinariamente melhores nesse livro do que no outro. Consegui equilibrar bem entre informação com o contexto histórico tanto nacional quanto internacional. E com o contexto local que, às vezes, influencia muito na história. Por exemplo, em 2020, chega a Covid e isso muda o calendário esportivo. Voltamos a ter uma coisa que não tinha, algo bem antigo, que era uma temporada começar em um ano e ser concluída no outro. É uma dinâmica interessante. Esse capítulo dois, que é o ano a ano, de 1932 a 2021, ele está bem detalhado e rico.

Sim. É uma estrutura enciclopédica que me agrada muito em relação a pesquisa da história.
A história é sempre contada por alguém através de uma visão e de um ponto de vista. Mas você tem fatos e esses fatos você checa. Alguns não são possíveis de checar por conta de que as pessoas que os estavam vivendo já faleceram. Ou então não deixaram depoimentos. Ou mesmo elas que tenham vivido o momento, podem ter uma visão, uma leitura diferente de outras. A história se equilibra um pouco nessa conjunção entre os fatos e entre a visão de quem escreve, também. Eu acho muito legal isso. Você ter essa coisa registrada realmente do que aconteceu. O Bahia foi campeão, o Bahia perdeu. Aconteceu isso, acontece aquilo. Agora, isso não tira esse elemento da magia do futebol e da própria história. Ela é riquíssima nesse vai não vai, coisas que podiam acontecer e não aconteciam. É muito interessante. Acho que funciona como uma enciclopédia do Bahia. Você tem outros livros semelhantes no mundo do futebol que são mais ou menos isso. São resumos dos jogos, como foi a temporada do time durante aquele ano. Esse livro contempla tudo isso. Contempla uma parte dessa coisa do almanaque, da enciclopédia. E contempla outra parte que é a histórica, mesmo. De você ter várias pessoas que contribuíram com essa história. Eles contando, eles estando presentes no livro. Sejam torcedores, sejam jogadores, sejam treinadores, sejam músicos ou outros artistas.

Você cita os artistas e a relação deles com o time do Bahia. Isso me faz pensar no hino e como ele se popularizou.
Sim. E a geração do trio elétrico ajudou muito a disseminar o hino do Bahia. Ele deixa de ser uma música, um hino de clube, para ser uma música popular. Um Hino do Bahia. Para isso, tem uma contribuição fantástica de três grandes figuras. Adroaldo Ribeiro Costa, que é o autor que compõe esse hino na década de 1940. Depois ele é popularizado na década de 1950. É quando vem o segundo elemento, que é uma dupla, e depois é um trio, que é o trio elétrico de Dodô e Osmar. É justamente quando acontece o primeiro título brasileiro em 1959. E o terceiro elemento nessa popularização é Moraes Moreira, já no trio eletrizado nos anos 1970, quando acontece o jubileu de prata do trio elétrico Dodô e Osmar e ele canta o hino do Bahia no carnaval. Até então, as músicas de um modo geral do carnaval eram só no instrumental. E Moraes Moreira passa a cantar o Hino do Bahia. Então, tem essa contribuição assim que é fantástica à história. E depois você tem Luiz Caldas, tem Caetano e Gil, que gravaram no disco “Barra 69”, um disco ao vivo que traz show histórico de despedida deles antes do exílio em Londres. E que é um show político. E que eles usam essa música como uma carga política e sentimental muito grande. O que marca a Bahia para eles quando escolhem essa música? É o hino do time do Bahia. Algo fantástico que incorpora o hino à MPB e à música baiana. O hino do Bahia passa a ser tocado em bailes de carnaval por torcedores de todos os times. Ninguém ficava dizendo: “Não toca porque sou Vitória”. Não. Todo mundo lá na hora da batalha, do baile de carnaval, todo mundo corria atrás do hino. Então, talvez no futebol brasileiro não tenha um hino com essa força e música popular. Não tem. Cid Teixeira (N.E. professor e historiador baiano falecido em 2021) me disse em entrevista durante um depoimento para o livro de 2001, que só tinha uma música com força igual a do Hino do Bahia que era o Hino ao Senhor do Bomfim. Que não existia outra. Era uma coisa inédita. Você pegar um hino de clube e transformar em uma música popular. E virou. E o Hino do Bomfim também foi gravado por Caetano e também toca no Carnaval, ali nos encontros dos trios que aconteciam nas manhãs da praça Castro Alves. Essa mistura do que é artístico, do que é cultural e do que é futebolístico, o Bahia consegue incorporar, consegue amalgamar muito bem ao longo da sua história. Então, voltando ao que você falava, tem essa parte almanaquista, enciclopedista, mas também tem essa parte dessa história de quantas contribuições deram para que o Bahia chegasse a essa posição de um clube popular com a força de uma torcida que é descomunal. Uma torcida que está no nível dos grandes clubes populares do mundo. E Morares Moreira compôs outra canção que é tida como um dos hinos do Bahia, a “Campeão dos Campões”.

Lembro, também, de uma versão que o guitarrista Álvaro Assmar.  E além dessas que falamos, há diversas outras versões com outros artistas aqui da Bahia.
Sim. Álvaro que apresentava o Educadora Blues. É algo muito rico. A mistura que a música feita na Bahia tem de incorporar. Você tem a coisa tradicional do samba de roda, do Recôncavo, e incorpora com essa coisa do Tropicalismo. A Tropicália traz a guitarra, que é justamente a proposta de Gil e de Caetano de incorporar esses elementos da Jovem Guarda. Não havia um duelo, na verdade. Era uma incorporação de ritmos. A Jovem Guarda muito mais pautada no rock, mas a Tropicália incorpora o que é tradicional com o que é internacional, com o que é pop. Então, o Hino do Bahia e também o time faz isso. Ao longo de sua história, ele se reinventa incorporando essas coisas.

Esse aspecto de revisita histórica que o “Bahêa, Minha Paixão – Primeiro Campeão do Brasil” traz não somente no capítulo de almanaque ano a ano, mas nos outros onde você traz a trajetória do clube nos dá uma ideia precisa do que foram esses noventa anos.
O Bahia tem ao longo desses 90 anos essa coisa muito ousada. Ele é o primeiro clube campeão brasileiro em 1959 e talvez se defrontando com o melhor time de todos os tempos que é o Santos. Não é pouca coisa. É a mesma coisa de você, tempos atrás, enfrentar o Barcelona, de Messi, ou o Real Madrid, de Cristiano Ronaldo. E, assim mesmo, esses times ainda ficam um pouco atrás do que era o Santos de Pelé, Pepe, Dorval que enfrentou o Bahia. Então, é muito emblemática essa ousadia tricolor. De ter incorporado essa coisa do tradicional, mas ao mesmo tempo sempre procurar ser diferente, ser ousado, incorporar elementos novos. Você tem, por exemplo, a torcida LGBTQIA+ sendo representada em tempos mais recentes. Você tem a questão social. O Bahia nasce, aí já indo um pouco mais para a história, o Bahia nasce, basicamente, da união de jogadores da Associação Atlética da Bahia e do Clube Bahiano de Tênis. Esses clubes disputavam o campeonato baiano. E, em 1929, eles decidem não mais disputar. Decidem acabar com sua divisão profissional, com seus clubes que disputavam o campeonato profissional. E esses jogadores ficam ao léu. E o que acontece? Eles começam e disputar jogos amadores e acaba nascendo a ideia de criar um clube. É quando nasce a história do Bahia no final da década de 1930, início de 1931. E por que a história tem a ver com isso? Porque esses clubes eram muito tradicionais. Em “Tradição”, Gilberto Gil fala que “preto não entrava no (clube) Bahiano (de Tênis) nem pela porta da cozinha“.  Então, o que eles enxergam, esses clubes? “Não temos mais como segurar. Os pretos estão jogando futebol no Ypiranga, estão no Botafogo, estão nos clubes da cidade. Não dá para impedir.” Você tem um jogador negro do Ypiranga, o Popó, que é um mágico. Popó foi campeão baiano e teve o pé banhado com champanhe. Mas para eles admitirem, o (clube) Bahiano (de Tênis) e a Associação Atlética admitirem que precisavam incorporar o preto, aí era uma coisa complicada, uma vez que eles não admitiam pretos nem entrando na porta da cozinha. Então, eles pensaram: “vou cair fora do futebol, porque não tinha mais como segurar.” O Bahia nasce dessas mudanças. Em 1931, ainda sopravam os ventos da Revolução de 1930, de Getúlio Vargas. Getúlio, a partir de 1930, começa a mudar a pauta do Brasil, que era um país agrário e passa a ser um país urbano. Deixa de ser o país da produção só agrícola e passa à produção, também, industrial, que é o que vem a acontecer já no período da Segunda Guerra. Enquanto na Europa, essa industrialização começa no início do século, no Brasil ela só começa a partir da década de 1930. E o Bahia tem esse papel de ser ao mesmo tempo a tradição e ser a revolução. E agora, em 2022, volta a fazer isso. Se torna um time a entrar em um grupo de multinacionais poderosas dentro do futebol, no caso o City Group. Então, é mais uma vanguarda do Bahia. Esse modelo de tradição e vanguarda.

Esse é o seu terceiro livro sobre o time. O segundo”Nunca Mais! 25 Anos de luta pela liberdade no Esporte Clube Bahia” aborda de modo aprofundado as máfias que passaram pelo time. Desde Paulo Maracajá, presidente do Bahia durante os anos 1980 e na primeira metade dos anos 1990, passando pela máfia de Marcelo Guimarães e família, você testemunhou diversas mudanças no time. Tem aquela história de que Maracajá pediu sua cabeça no jornal onde você trabalhava a não ser que você escrevesse um artigo benéfico a ele. Você se recusou. Enfim, o Esporte Clube Bahia conseguiu escapar desses ditadores. Como foi esse processo para você?
Essa história é interessantíssima. A tirania e a ditadura são as coisas mais burras que existes politicamente falando tanto para um clube de futebol quanto para um país, quanto para uma empresa. Para qualquer coisa. A ditadura é um negócio nocivo não somente do ponto de vista da liberdade social, mas da liberdade econômica, também. Para você ter uma ideia, esse Bahia que era o Bahia dos Maracajás e dos Guimarães, que a gente chama de Bahia das trevas, você tinha, no máximo, estourando, 200 sócios pagantes. No máximo 200. Teve eleição com pouco mais de 150 sócios com a mensalidade em dia. É um negócio burro. Hoje, o Bahia tem 45 mil sócios e sem muito esforço. Com o clube caindo para a segunda divisão (N.E. Fato aconteceu em 2021, com o Bahia voltando a disputar a primeira divisão em 2023), sem uma grande vitrine, nós temos 45 mil sócios. Imagina uma renda dessa, com uma mensalidade de R$50 para uma quantidade de 45 mil a 50 mi sócios? Imagine quanto se perdeu de dinheiro durante esse período das chamadas trevas? Por uma questão de vaidade pessoal. “Ah, eu quero manter isso sob meu domínio, sob a minha batuta.” Isso era uma completa idiotice. Isso vale para o clube e vale para a política de um modo geral. A ditadura é anacrônica. Ela tolhe não só a liberdade, mas o crescimento. Ela tolhe o progresso. Tolhe o desenvolvimento de tudo. Tolhe o desenvolvimento das pessoas. Quanto prejuízo causou a ditadura no Brasil? Quantos talentos, quanto coisa que a gente podia ter avançado e não avançou. Então, eu acho que quando você faz um balanço do que o Bahia, nesses dois períodos, perdeu, é muita coisa. Ficamos para trás. Ao ponto de ser campeão brasileiro de 1988 e, no ano seguinte, lutar contra o rebaixamento. De não terem se aproveitado disso. De não ter se viabilizado como um grande líder sul-americano. Eu acho que 2013, que foi o marco da redemocratização, quando uma assembleia geral derruba tudo isso e passa a estabelecer eleições diretas, é um marco não só de libertação, mas de mudança de um patamar econômico. E que acabou desaguando, agora, na SAF. Se não tivesse isso, o Bahia, com certeza, não poderia ser cobiçado por um grupo como o City. E que você pode discutir isso ou aquilo, mas, realmente, é um dos players do futebol mundial. Indiscutível. Eles têm ressalvas? Têm. Todo mundo tem. Mas não pode deixar de discutir. E o Bahia só chegou a esse patamar porque conseguiu se livrar dessa visão tacanha de que o Bahia tinha dono. O Esporte Clube Bahia não tem dono. O Bahia é uma instituição da torcida da Bahia.

Após quase 10 anos desde a democratização do Esporte Clube Bahia em 2013, com o mandato de transição de Fernando Schmidt, passando por Marcelo Sant’Ana e chegando ao atual presidente Guilherme Bellitani, você consegue criar uma reflexão sobre um balanço desse período até que possamos dizer que há um equilíbrio no Bahia?
Eu acho que é muito cedo ainda porque é uma experiência muito recente. Desde 2013, você tem nove anos, mais ou menos. Não chegamos nem a 10 anos de história. Então, é muito cedo. Tinha um modelo no Bahia que vinha praticamente desde a fundação do time, que era o Bahia ser dominado por cardeais. Ele nunca teve uma democratização. Tinha uma história de Paulo Maracajá, que conto no livro, que ele dizia que o risco era o anão do Baby Beef ser o presidente. Era um porteiro que tinha no restaurante. Ele chegou a dizer isso. E era uma grande bobagem. Qualquer pessoa pode ser presidente. Ele pode ocupar o cargo durante um período e se não for bem, ele sai. Seja por mecanismos institucionais, como o impeachment, ou pelo fim do mandato dele. Mas de uma certa forma, ele contribui. O que você não pode ter são pessoas que se consideram iluminadas. Ter gente escolhida de Deus que está ali porque só aquela pessoa pode ser presidente. Não existe isso. Isso é uma grande bobagem. Então, o Bahia perdeu muito com esse modelo de ser dominado por cardeais, de ser dominado por um modelo no qual achavam que só os deles que resolviam. E eu acho que, a partir de 2013, com (Fernando) Schmidt, que faz um mandato de transição, uma espécie de tampão, você tem depois dois presidentes que são mais ou menos do mesmo grupo político, mas que não dão ainda uma ideia de alternância de poder. De você, realmente, viver a democracia. E não tem ainda muito tempo para que tenhamos experimentado isso. Acho que Bellitani acaba se elegendo porque tem uma força, tem um nome. Ele vem como ex-secretário da prefeitura, da gestão de ACM Neto. Acaba ganhando essa ideia de que é um nome preparado para modernizar o Bahia. Não vai dar tempo, talvez, de saber se a gente conseguiria chegar realmente nessa alternância de poder e nessa coisa da democracia, com gente enxergando de um jeito e outro enxergando de outro. Porque a SAF limita muito o poder da instituição Esporte Clube Bahia. O Clube passa a ter 10% do controle. Vai ter eleição e aí você tem esse presidente ocupando uma cadeira em um conselho de seis pessoas da SAF. Assim, o peso do presidente acaba sendo muito menor. O Bahia vai ter que se reinventar. Porque o futebol passa a ser controlado pela SAF, pelo City Group.

Isso, para você, é um ponto negativo ou positivo?
Do ponto de vista de testar a democracia do Bahia, é negativo. Porque você não tem mais o peso que tinha antes. Era um presidente que determinava tudo o que acontecia no clube. Agora, não. O presidente tem uma voz entre seis em um conselho gestor. É muito pouco. Ele vai ser sempre vencido. Sempre! Claro que você vai ter pontos de vista que são, às vezes, até de unanimidade. Ele vai ter uma proposta que os outros cinco vão avaliar como sendo coerente, como sendo a melhor proposta. Disso eu não tenho dúvida. Agora, na decisão do que fazer, quem vai decidir mesmo é o City Group. É quem vai contratar, é quem vai traçar a estratégia daquele ano. Os parceiros comerciais, essa coisa toda. Então, eu acho que para essa nova democracia do Bahia, é uma perda. Mas, ao mesmo tempo, para o Bahia, é um ganho enorme do ponto de vista de que passa a ter mais dinheiro, mais recursos e mais capacidade de fazer. Isso é indubitável. Você tem um futebol cada vez mais profissional. Aquela coisa dos dois times, um com camisa, outro sem camisa, a bola em um terrenão, já acabou. Não tem mais. Então, eu acho que o Bahia está em um caminho do ponto de vista econômico, financeiro, muito bom. Agora, vamos ver como vai ficar do ponto de vista futebolístico.

Ao final de 2021, o Bahia acabou caindo para a segunda divisão do Brasileirão. No meu ponto de vista, conseguiu subir esse ano porque o nível dos times na segunda divisão era muito baixo. Houve méritos, sim, mas isso ajudou. Nessa nova fase, você acredita em melhores resultados para a temporada 2023?
Primeiro a gente vai ter que ver o arriar da mala que é a nova gestão do City Group, que agora é quem comanda, é quem define estratégia, é quem define o que vai ser. Serão eles. botaram a cara aí e agora não vão ficar entregando a terceiros ou à atual gestão de Bellitani o comando disso. São eles que vão decidir. Porque são eles que vão estar a par em relação ao mercado, em relação aos acionistas, aos investidores que comandam os três grupos. Um grupo majoritário é árabe, o segundo é um grupo norte-americano, e o terceiro é um grupo chinês, com mais ou menos 10%. O norte-americano tem 15% e o resto é árabe. Então, essa divisão, essa prestação de contas vai ser feita a esse pessoal. A mudança passa a ser essa a partir de 2023. Claro que com algumas ressalvas, porque ainda tem o processo de transição, tem o processo de ajuste. Mas, a partir de 2023, o Bahia está sob nova direção. O Bahia estará sob o comando do City Group, que é um grupo que tem expertise. Que tem o Manchester City na Liga Inglesa, e que tem mais 11 clubes espalhados pelo mundo. Essa responsabilidade passa a ser deles. E os caras não vão meter a cara em uma história dessa para brincar. Eu acho que é muita exposição. Essa história tem alguns meses de negociação e eles sabem onde estão pisando. Sabem o que vão fazer. O Soriano (N.E. Ferran Soriano, CEO do City Group), na apresentação que fez ao conselho, trouxe algo muito bom. Não tem que mexer em marca, não tem que mexer em nome, não tem que mexer em torcida, não tem que mexer em hino. Porque é nisso que está a força do clube. Isso é a força do Bahia. Nunca existiu essa história de ter que mudar isso. Estamos entrando no Bahia por causa disso. Ele disse que teve conversas com outros clubes que não tinham a força que o Bahia tem. Você tirando os clubes do eixo sul-sudeste, o outro clube que você tem na bala da agulha é o Esporte Clube Bahia. Não tem outro no Brasil. Com torcida, com marca, com títulos, com história, não existe. Você tem clubes bem arrumados? Sim. Tem clubes com potencial? Tem. Mas sem nada disso. Sem história, sem títulos, sem marca, sem torcida, sem popularidade. Estamos falando de um estado de 14 milhões de pessoas. Quantos países europeus existem nessa população? Então, esse futebol que é feito hoje, que é baseado no consumo, no consumidor, o torcedor é o consumidor. É o potencial consumidor. O Bahia é uma verdadeira vitrine para isso. Nos três últimos jogos na Fonte Nova, na série B, teve um público médio de 48 mil pessoas. Potencial tem. Você falou de Bahia x Fluminense na Fonte Nova no campeonato de 1988, tinha 120 mil pessoas no estádio. E isso você está falando de mais de 30 anos atrás. Imagine que essa população cresceu. Essa paixão pelo futebol cresceu. Você vê os valores que se movimentam hoje com um jogador de futebol. São valores milionários. O valor agregado do futebol aumentou muito. E o Bahia vai surfar nessa maré alta.

Falamos sobre diversos momentos da história do time que ocupam um lugar especial na memória, seja por nostalgia, seja por uma romantização pessoal. Sobre esse aspecto do futebol, você acha que dentro dessa nova realidade, que movimenta tanto dinheiro, tantas marcas e empresas, transmissões via streaming em lives que suplantam TVs e rádios tradicionais, você acha que ainda existe espaço para essa romantização?
Essa coisa da romantização vs. profissionalização vs. esse novo paradigma do futebol, envolve não só a coisa financeira, mas a tecnológica, como isso que você falou sobre o streaming ter o poder de aglutinar um público que ninguém imaginava que teria há algum tempo. Então, você tem essas duas coisas, que é a econômica e esse futebol saudoso da velha chuteira de couro ficou para trás. E essa coisa do velho radinho de pilha no ombro, também. Mas a paixão pelo futebol nunca vai morrer. A paixão é imorrível. Ela não vai acabar nunca porque é ela que faz com que as pessoas sejam fascinadas seja pelo Bahia, seja pelo Flamengo, pelo Barcelona, pelo Manchester City. Essa paixão nunca vai deixar de existir. Para você ter uma ideia, mesmo com essa coisa do futebol que a gente chama de romântico e futebol que a gente chama de moderno, que é o futebol dos números, você tem elementos para ainda o romantismo barrar esse avanço. Na Holanda, o Manchester Group tentou comprar o NAC Breda e os torcedores alucinados foram para cima e não deixaram. Eles barraram. Impediram a compra, mesmo com todo esse dinheiro do Manchester Group, com toda bala que eles tinham para poder levantar um clube de 1912, um clube tradicional, com uma torcida apaixonada, mas os caras foram lá e barraram. “Não queremos que o clube seja vendido. Queremos o velho clube como era aqui.” E isso eu estou falando de hoje. Eles não conseguiram. Eles conseguiram com o Girona, na Espanha. Conseguiram com o próprio Manchester. Mas com o NAC Breda, da Holanda, não conseguiram. Foram barrados. Então, o futebol ainda continua. Apesar dessa grande circulação de riqueza que tem no esporte, de muito dinheiro. São petrodólares. E o Bahia, agora, está nesse meio. É muito dinheiro. É muita grana. Agora estão levando o Cristiano Ronaldo por uma fábula. Eles são apaixonados por Futebol e ao mesmo tempo têm muito dinheiro. Dia desses me mandaram uma brincadeira com o hino do Bahia tocando em uma mesquita, em alaúde, já incorporado às coisas árabes. Aí eu brinquei dizendo que quem teve Alfredo Saad como presidente do clube, pode ter o Mohamed, presidente dono da comparação que domina o City Group como presidente, entendeu? Para o torcedor do Bahia, não muda muito. Para o apaixonado pelo Bahia, o presidente é muito secundário. A gente quer ver é título. A gente quer ver é gol. A gente quer ver a bola entrando. Quer ver o Bahia disputando campeonatos. Essa é a verdade. Essa é a paixão do torcedor e que não vai acabar nunca. Tem uma história que diz que você muda de emprego, muda de profissão, muda de mulher, mas não muda de time. Uma vez que você se apaixonou, já era.

Não à toa, creio, você incluiu diversas fotos da nova geração de torcedores dentro do livro.
Sim. São os ciclos. Ao longo do tempo, você tem ciclos. Tem um ciclo no qual o Bahia está bem, tem outro em que outro clube não está. E o que é que você leva? Por exemplo, você foi menino com sete anos para a Fonte Nova. Aquilo é um alumbramento para sua visão. A primeira vez em que eu entrei no estádio, em um BA-VI, aquilo não existe para o olhar de um menino. Eu lembro que fiquei maluco com aquilo. Como é que você tem uma torcida gritando daquele jeito? Aquela coisa colorida? Uma parte azul, vermelha e branca. A outra parte vermelha e preta. Aquele frenesi. Aquilo é uma coisa que não sai da cabeça. São elementos que você vai incorporando e que, hoje, qualquer criança percebe. Eu estava observando um moleque em um dos últimos jogos do Bahia na Fonte Nova, quando o time ainda não havia conseguido subir para a primeira divisão. Tinha um menino de, no máximo, sete anos perto de mim. Quando o Bahia perdia o gol, ele batia na cadeira: “Puta que pariu!!” Eu olhava assim. E o pai do lado, junto com duas irmãs. Elas pegavam no cabelo, tensa. Não xingava. Ainda com essas coisas do machismo estrutural. Mas ele batia na cadeira, xingava quando perdia o gol. Ai você olha e pensa: “Porra, sou eu! Encarnado nesse moleque”. Então, esse livro de 2022 tem muita referência à molecada, às crianças que já torcem para o Bahia. Porque a ideia, justamente, é que você tenha em 2122 essa galera olhando como eles eram e como será a torcida do século XXII.

Gol de Lima Sergipano contra o Corinthians em 1997

Gol de Raudinei contra o Vitória em 1994

As minhas principais lembranças do Bahia são daquele jogo na final do Brasileirão de 1988, que aconteceu em fevereiro de 1989. Lembro, também, do gol de Raudinei que trouxe o título baiano em 1994. Lembro de um gol de Lima Sergipano contra o Corinthians em 1997.
Tem um jogo em 1979, o jogo do heptacampeonato baiano. Foi em uma sexta-feira à noite. Eu fazia cursinho pré-vestibular no Garcia (N.E. Bairro de Salvador relativamente próximo à Fonte Nova), encontrei uns amigos e fomos para o estádio. Naquele jogo, o Vitória estava bem no campeonato e jogava por um empate. Era o favorito. Lembro da Fonte Nova lotada. Teve o gol de Fito. Não foi nem uma paulada daquelas indefensáveis. Ele bateu, Gelson segura, mas a bola escapa da mão dele e entra. E o Bahia se torna heptacampeão. Aquela noite foi inesquecível. Invadimos o gramado, aquela coisa toda. Foi um momento realmente marcante porque entre esses amigos, estava o Homero, que era filho de Boquinha, que havia sido zagueiro do Vitória. E Homero era um torcedor doente pelo Vitória. Rapaz, ele deu um piti naquela noite por conta desse gol de Fito (risos)

Gol de Fito contra o Vitória em 1979

Um outro momento, tirando o título de 1988, é Bahia x Fast, ainda pela série C. Aquele jogo louco em que as pessoas estavam alucinadas. Eu, próprio, sou muito… (pausa). Eu gosto de ir para o estádio para assistir ao futebol. Eu gosto de me concentrar na partida. Não sou muito de ir para o bar, de ficar jogando dominó, de não ficar vendo o jogo. Tenho alguns amigos assim. Eu, não. Eu gosto de ficar sentado concentrado no jogo. Nem para ir ao banheiro eu saio. E esse Bahia x Fast foi um jogo elétrico. Existia um clima na torcida. Parecia que a torcida estava ensandecida. Parecia que estava louca, que tinha cheirado a noite toda. Você sentia que as pessoas estavam alucinadas com aquilo. O Bahia precisava ganhar para se manter entre os oito que iam disputar a segunda fase da Série C. Um negócio maluco. E parecia um clima que até mesmo antes do estádio, na rua, você sentia uma sensação de que o Bahia estava disputando uma final em Tóquio contra o Real Madrid. Era uma coisa desse tipo. Foi um momento muito doido. Eu fiquei estupefato. Entrei no clima. Eu ficava olhando e pensando nisso. Era algo geral. Antes, durante e depois do jogo. (N.E. O Bahia acabou vencendo com um gol marcado por Charles aos 50 minutos do segundo tempo). Era uma euforia que você não entendia que porra estava acontecendo. Era algo assim. A torcida do Bahia tem esse poder.

Gol de Charles contra o Fast, em 2007

Um outro momento aí já é voltando à primeira vez que fui a Fonte Nova. Eu tinha a mesma idade que você tinha, 7 ou 8 anos. E quando eu vi a torcida do Bahia ao vivo pela primeira vez… Eu já tinha visto em fotos. Você via muito pouco em televisão porque não tinham muitas imagens. Você assistia a No Campo do 4 (N.E. Telejornal esportivo da local TV Aratu) quando passavam os destaques da rodada. Mas era uma câmera que registrava tanto o campo quanto registrava a torcida. Não tínhamos como tem hoje. Você tem mais de 20 câmeras fazendo o registro de um jogo. E não tinha isso naquela época. Quando eu vi a torcida, quando eu vi aquela massa louca. Vi Loirinho puxando o coro na Fonte Nova (N.E. Loirinho do Bahia, com sua cabeleira dourada nas arquibancadas, era um notório torcedor símbolo do time). Eu o vi perto de mim, porque a gente sentava mais ou menos onde hoje ficam as cabines de TV. Do outro lado, onde bate o sol, onde ficava a torcida Bamor. Eu ficava ali. Olhava para aqueles alambrados, para o fosso que tinha. Era uma coisa, assim, impressionante. Eu, ainda menino, fiquei doido com aquilo. Se você me perguntar do jogo, o que eu vi do jogo, eu não lembro. Eu me lembro da torcida. Eu ficava em um encantamento. E era um susto ao mesmo tempo. Era uma coisa doida. Tinha charanga, buzinas. Então, são três momentos que eu acho marcantes nessa história de 90 anos do clube e, também, da minha história de 60 anos com o Bahia.

Evaristo de Macedo, técnico do Bahia em 1988, e Nestor Mendes Jr.

Você acredita ser possível, diante do que é o futebol hoje, que o Bahia consiga novamente alcançar um feito como aquele de 1988?
Sim. Futebol tem umas equações que não são desvendáveis. Que você não vai acabar esse mistério nunca. É você, por exemplo, ter um time como aquele de 1988, o de Evaristo de Macedo, e se perguntar: qual era grande nome daquele time? Não tinha. Era um conjunto muito bem formado, muito bem feito, e deu em campeão brasileiro. Pode acontecer? Pode. É difícil? É. Isso em qualquer campeonato. O Napoli, para poder vencer os grandes de Milão, ele tem que rebolar. Os pequenos na Liga Inglesa, para poder ganhar um campeonato contra os poderosos, é muito difícil. Na Espanha, você vê domínio do Real Madrid e do Barcelona. O Atlético de Madrid, de vez em quando, vai lá e fura esse bloqueio. É possível? Sim. Você tem hoje modelos que estão replicados no mundo com um futebol eficiente e dão certo. A Copa do Mundo agora é uma prova disso. Você tem seleções que não têm tradição, mas têm um bom conjunto e avançaram para as oitavas e para as quartas (até na semifinal). As outras, que são tradicionais, ficaram para trás. Então, é possível. Volta àquela história que conversamos entre o romantismo e o profissionalismo. Uma coisa não vai inviabilizar a outra nunca. Não vai invalidar nunca. Você tem essas variáveis do futebol que são terríveis. Então, acho que é possível, sim. Você olha pelo próprio desempenho do Manchester City na Liga Inglesa antes de ser adquirido pelo grupo árabe e, hoje, a diferença é enorme do que eles conquistaram. Aí você vai dizer: “Entrou dinheiro.” Claro! Entrou dinheiro, você qualifica mais o grupo, mas dinheiro não é o único determinante. Se fosse, o campeonato brasileiro teria um ganhador só ou dois. E há sempre uma alternância. Entre Flamengo e Palmeiras, que são clubes com maior poder econômico, teve o Atlético Mineiro no meio. Teve poder econômico? Teve, também. Mas o Atlético Mineiro é um clube fora da bolha Rio-SP. Então, acho que pode acontecer, sim.

Sempre penso que há, também, o fator da conjuntura do momento, de uma energia em relação a isso. Penso em times como o São Caetano no final dos anos 1990. Do Athletico Paranaense, também. No próprio Vitória de 1993 e de 2010, que chegou à final do Brasileirão e da Copa do Brasil, respectivamente.
Acontece, sim. O Bahia poderia ter perdido o título em 1988. Na final que aconteceu em 1989, ele ganha aqui na Fonte Nova e empata lá no Beira-Rio. E podia ter perdido o jogo lá. Essas coisas. Você tem o futebol naquele momento que foi a conjunção astral foi decisiva, mas também tem o momento em que é o futebol que prevalece. Você tem vários embates entre clubes. Por exemplo, Napoli contra a Juventus, contra a Internacionale. Eles têm momentos em que você vê que existe uma diferença gritante entre plantel, entre grana, entre investimento. Mas você vê, também, um futebol combativo. No campeonato brasileiro você tem alguns clubes que têm esse patamar financeiro muito alto, muito definido, mas você tem, também, times que têm uma competitividade muito grande. Às vezes, não têm o dinheiro que eles têm, mas têm a competitividade. São times que sempre brigam lá em cima. Estão sempre brigando, incomodando. Você falou do Athletico Paranaense. Nos anos 1970, quando o Athletico Paranaense jogava com o Bahia, era um time de segunda linha. Não estava entre os adversários grandes do Bahia. Esses adversários eram o Flamengo, o Corinthians, o Palmeiras, o Santos. O Athletico, não. Hoje, o patamar deles é de primeira linha. Brigando por título, brigando lá em cima nos campeonatos, brigando com competitividade, um time arrumado. O que eles fizeram? Arrumaram a casa, plantaram uma divisão de base fortíssima. Se você tentar lembrar do time do Athletico que disputou o campeonato brasileiro em 2022, dificilmente vai se lembrar de um nome, como você lembra de outros nome em times como Palmeiras ou Flamengo. Você diz na hora. Mas do Athletico Paranaense, não. Mas eles estão competitivos. Eles se organizaram para serem competitivos. Fortaleza é outro time assim. Embora seja bem recente a experiência, mas já são dois anos em uma sequência muito boa. O treinador era disputado por Corinthians e por Atlético. Os clubes pagando a peso de ouro. Mas ele preferiu ficar no projeto do Fortaleza. Isso indica o que? Indica que você tem alguma coisa muito arrumada. Muito bem planejada e bem pensada. É difícil? É. Futebol está muito ligado a essa coisa: “quem tem mais dinheiro, vai ter mais resultado.” Mas isso não é uma lógica definida.

Final de 1988, Bahia x Internacional

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. Na foto do abre, Nestor posa ao lado do jornalista JP no lan;amento do livro. 

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