Entrevista: O duo português Senza fala sobre seu terceiro álbum, o ambicioso e abrangente “Próxima Paragem”

entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa

O gosto pelas viagens acompanhou desde cedo o percurso dos músicos Nuno Caldeira e Catarina Duarte. Inspirados por uma longa viagem que fizeram ao sudoeste asiático, na qual dispuseram de mais tempo para compor músicas da sua autoria, a dupla lançaria o álbum de estreia dos Senza (o nome advém de um instrumento musical africano de lâminas), intitulado “Praia da Independência” (2016).

No trabalho, os dois artistas refletiram sobre diferentes formas de vida e propuseram um encontro musical lusófono contemplando sonoridades tradicionais portuguesas, brasileiras e africanas. Na sequencia, no disco “Antes da Monção” (2018), retratando as histórias vividas pelo duo durante uma estadia na Índia, os Senza retomaram as coordenadas sonoras anteriores, mas empreenderam uma aproximação ao pop, acompanhada de uma maior vivacidade nas suas canções.

“Próxima Paragem” (2022), o terceiro álbum do grupo de Aveiro (cidade do norte de Portugal), que Nuno e Catarina começaram a criar no período de confinamento pandemico, é o motivo principal da nossa prazeirosa conversa via Whatsapp. As grandes novidades do disco são a introdução do rap e da música eletrônica na paleta sonora tradicional da banda e o foco numa temática mais ambiciosa e abrangente (centrada em questões correntes como a instrumentalização da mídia, a identidade de gênero ou a influência da cor da pele), contrastando com o universo das viagens que dominou os primeiros trabalhos da dupla.

Para além dos singles “Sozinha no Mundo” (com a participação do rapper português Carlão) e “Bailarina do Soweto”, existem outras canções que chamam a atenção como “Som Misturado” (com uma tonalidade sonora e lírica marcadamente brasileira), a celebratória “Namíbia”, que contou com a colaboração do artista namíbio Elemotho, e a agradável “Falar com Sotaque” que proporciona bons momentos de interação e musicalidade.

De acordo com o guitarrista Nuno Caldeira, justifica-se falar numa nova fase na música dos Senza: “Acho que este disco reflete o momento em que nos encontramos e a atual etapa da banda. Seria surreal continuarmos com uma visão orgulhosamente inebriada do mundo como tínhamos em algumas canções”, explica. E em 2022 é igualmente razoável perceber que o grupo aveirense procura um equilíbrio entre uma maior honestidade musical e aquilo que torna a sua música viável comercialmente.

Enquanto a vocalista Catarina Duarte me confessa que a banda “sente muita vontade de voltar ao Brasil” (eles se apresentaram em São Paulo e Salvador em 2018), Nuno Caldeira apresenta uma leitura global do trabalho dos Senza: “Queremos ser urbanos e compor música que cumpre com os nossos estímulos criativos. Temos os dois pés no presente, mas sabemos que a nossa música é arriscada num mundo que começa a ser cada vez mais formatado. Mas, isso faz parte do jogo que estamos a jogar e sentimos que vale a pena também”, conclui. De Lisboa para o Brasil, os Senza conversaram com o Scream & Yell. Confira:

Que objetivos vocês procuraram atingir com o disco “Próxima Paragem”?
Como todos os nossos colegas músicos, passamos pela pandemia de uma forma mais fechada e introspetiva e tivemos tempo para nos reinventarmos e procurar novas soluções. Uma das coisas que se nota neste disco, e não sabemos se era exatamente o nosso objetivo, foi a mistura de sonoridades ligadas às raízes com a electronica numa maneira de fácil percepção. Este disco é mais urbano e, por isso, nota-se mais a fusão de música tradicional com a eletrônica. Isso foi intencional. É claro que o resultado final faz com que as coisas sucedam de uma forma natural. Para além de ser urbano, é um álbum mais dançável que os anteriores. Como aconteceu a pandemia, paramos um pouco e falamos em alguns temas como a instrumentalização da mídia. De certa forma, nós (os consumidores), com uma televisão ou um tablet, já quase não podemos escolher o que queremos. Estamos um pouco partidos relativamente ao que recebemos. As pessoas continuam a sonhar, mas têm menos autonomia para o fazer. E é disso que fala a faixa “Sozinha no Mundo”, ou seja, da passividade que temos relativamente aos nossos sonhos. Assim, temos de correr para contornarmos o que vemos e a forma como nos chega a informação. Sabemos que é uma palavra muito forte, mas pode ser perigoso.

O single “Bailarina do Soweto” resulta do contato com o bairro sul-africano onde viveu Nelson Mandela. Como viveram essa experiência?
Nós estivemos na África austral em 2018 e passamos pela África do Sul, Namíbia e Zimbabwe e uma das nossas visitas marcantes foi ao bairro do Soweto e, mais concretamente, à casa do Nelson Mandela. Foi lá que conhecemos um projeto de dança local super-inventivo e super-criativo com um potencial internacional enorme, mas que ainda vive com problemas de segregação. Por essa razão, eles têm dificuldade em colocar aquelas bailarinas no exterior. A qualidade artística é muito alta e aquilo é uma espécie de manifesto para tentar dar um salto para o mundo, dizendo que se superam e são muito bons no que fazem. Isso deixou-nos particularmente sensibilizados, uma vez que tentamos trazer as coisas que são especiais nestas viagens e escrever sobre essa realidade (a letra da canção é de Catarina Duarte). No fundo veio trazer a este disco uma postura mais crítica, tal como outros temas e outras participações, que nos levam a este tipo de observação acutilante. Quando estávamos imersos no contexto da pandemia também ficamos com uma perspetiva mais ácida. A canção “Bailarina do Soweto” fala claramente de segregação racial com este revestimento festivo de uma bailarina, ou seja, trata-se de uma grande metáfora.

Existem algumas influências brasileiras na música dos Senza e a faixa “Som Misturado” é um exemplo disso. Quem são, concretamente, os vossos músicos favoritos no Brasil?
As nossas referências são as mesmas de tantos músicos. Todo o período da música popular brasileira, bossa nova, tropicalismo. Mesmo antes dos Senza se formarem nós tocávamos algo desse repertório. É injusto estarmos a escolher nomes, mas os suspeitos do costume são Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Eles são excelentes. Há uma coisa que é ótima no Brasil, nas rádios só se escuta música brasileira ou quase. Enquanto nós vendemos um pouco a alma ao diabo (risos). Falta-nos valorizar mais o que fazemos. Os compositores brasileiros têm uma confiança na sua música e no seu património que nós ainda não temos. Se tivermos essa firmeza isso irá gerar melhores compositores. Os brasileiros sempre protegeram bem o seu patrimônio musical e literário. Fizeram-no porque tinham uma produção criativa admirável. Aquilo que aconteceu no Brasil foi único e irrepetível. Mas, por outro lado, à escala da população portuguesa, está a gerar-se um ponto interessante na música. Não sabemos muito bem o que está a acontecer, mas há uma atenção redobrada relativamente à música portuguesa.

Após várias viagens, shows e contatos internacionais, o que concluem sobre a viabilidade de uma maior proximidade musical entre os diversos países lusófonos?
Sendo Portugal um dos países falantes de português mais pequenos, em termos de população, deveríamos ser os principais interessados em que isso aconteça. Até porque existem movimentações econômicas, onde gira tudo, e é interessante que uma banda portuguesa possa tocar noutros países lusófonos. O contrário, honestamente, talvez não seja tão interessante. Num mercado tão grande como é o Brasil, vir para Portugal, em termos numéricos, não será o mesmo do que um músico português tentar o mercado brasileiro. No entanto, há um imaginário e um fascínio pelo lado europeu que pode ser interessante e funcionar como porta de entrada na Europa. Mas, devíamos sentir que esse tipo de colaborações e circulação de artistas não são só uma necessidade econômica, mas também uma obrigação cultural nossa e uma forma de valorizarmos a língua portuguesa. Apesar dos múltiplos sotaques há um interface belíssimo entre nós e no fundo é bonito que haja essa diversidade. No entanto, o mundo lusófono já não está assim tão afastado. Por exemplo, não nos encontramos muito distantes da música angolana nem da moçambicana. Globalmente, estamos mais próximos das sonoridades dos outros países lusófonos. A língua aproxima-nos e as leituras que fazemos das canções são mais compreensíveis, enquanto há uns anos atrás com tantas formas diferentes de escrever não era. Achamos que isso nos está a contagiar e nota-se na nossa música, desde o primeiro disco dos Senza. Há momentos cantados (por Catarina Duarte) sugerindo o sotaque intencional por questões técnicas. Isso tem a ver com uma forma de abertura a esse contágio e a absorvermos isso positivamente. É algo bonito de verificar. Não tanto no sentido da uniformização, porque isso faria com que ficássemos iguais e diminuía o interesse, mas é uma forma de partilha e de criar encontros musicais. Sentimos que isso está a acontecer cada vez mais e é positivo.

Até ao final do ano vocês irão atuar em várias cidades portuguesas e em palcos na Índia. Quais são as vossas espetativas relativamente à recetividade do público ao novo trabalho?
Já começamos a tocar “Sozinha no Mundo” em alguns shows e nas próximas apresentações vamos incluir mais três ou quatro canções do novo disco. As nossas expectativas são que as pessoas gostem e que possamos entregar-lhes algo de novo e não mais do mesmo. Foi o que trabalhamos neste álbum. Já tinha acontecido isso quando lançamos o segundo disco, “Antes da Monção” (2018), que não era idêntico ao primeiro, mas estava lá a nossa identidade. Sentimos que também acontece um pouco no “Próxima Paragem”, porque as músicas são muito diferentes entre si e não foi feito com intencionalidade. Parece que são os tais microclimas sonoros que você falou e aparentam vir de outro universo. Mas, o objetivo é inovar e manter a identidade e achamos que as pessoas apreciam isso. Lançar discos repetidos é tão arriscado como partir para outros registros. Há sempre riscos. Podemos perder pessoas durante o caminho, que essencialmente gostavam da sonoridade anterior. Se passar a ideia de que a banda está a produzir coisas e que os Senza estão à procura do seu caminho ficamos contentes. Relativamente à expectativa concreta dos shows na Índia, nós temos secretamente uma ambição: atingir a receptividade que tivemos lá (em 2016), quando fizemos o primeiro disco. É algo que criamos instintivamente, sem grande controle e é a referência dos Senza nas suas primeiras apresentações de sempre na Índia. Esperamos que desta vez também seja tão especial para nós como para o público. Contamos vir de lá com boas memórias e vontade de fazer mais espetáculos. O público indiano, pelo menos aconteceu isso connosco, é muito eufórico a manifestar-se (risos). A reatividade e generosidade dos indianos surpreendeu-nos. Eles não entendem nada do que dizemos, aparte alguns momentos entre as músicas em que falamos em inglês, por isso é só a música que os move.

“Próxima Paragem” é um disco celebratório, dançável, mas igualmente relaxante e reflexivo. Para onde pretendem levar a vossa música no futuro?
Achamos que será para esse mundo que reflete, mas que ao mesmo tempo tem energia e deixa-se contagiar pela dança e pelo movimento. É para aí que a queremos levar. Porque nós sempre quisemos que as nossas músicas tivessem conteúdo. Por essa razão, as letras das nossas canções falam de experiências de viagens e não falam todas de histórias de amor, embora tenhamos alguns temas românticos neste trabalho. O fato de querermos que as músicas dos Senza tenham significado faz com que entrar nesse lado mais poético e reflexivo aconteça. Mas, é para esse mundo que dança, tem energia e é alegre que queremos e tentamos estar. Ficamos muito contentes com o seu elogio de há pouco. É sinal que o elemento dançável passa neste disco, mas também tem um lado reflexivo com o qual nos preocupamos. É importante que não seja uma leveza desprovida de conteúdo. Onde nós nos situamos é a fazer uma música que dispõe bem as pessoas, mas não a fazer sem trazer nada que nos diga respeito ou a um assunto que mereça atenção.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.