A Capa do Disco: “Nheengatu”, Titãs e Pieter Bruegel, o Velho

texto por Luciano Ferreira

Os Titãs sempre foram uma banda muito preocupada com a arte das capas de seus discos. De “Cabeça Dinossauro” (1986), que utiliza duas obras de Leonardo Da Vinci (“A expressão de um homem urrando” e “Cabeça grotesca”) que vieram de acetato do Museu do Louvre, passando por “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas” (1987), que traz oito colunas gregas simbolizando os então oito integrantes da banda (os dois projetos ficaram a cargo de Sergio Brito) e chegando na dobradinha coordenada por Fernando Zarif, “Tudo ao Mesmo Tempo Agora” (1991), usando imagens da enciclopédia Barsa, e “Titanomaquia” (1993), com uma colagem de sete cores (representando os sete integrantes) que vinha envolta por outra capa, como se o disco estivesse em um saco de lixo, as artes sempre tiveram um cuidado especial na obra titânica.

Em 2014, ao utilizarem uma pintura de um artista holandês como arte da capa de “Nheengatu”, seu 14º álbum de estúdio, os Titãs juntaram música, pintura, religião e também política em um mesmo pacote, aparentemente paradoxal, mas que tem uma explicação. A capa ficou a cargo novamente do vocalista/ tecladista Sergio Britto, que escolheu “A Torre de Babel ‘Pequena’”, obra de Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), considerado um dos artistas mais importantes do Renascentismo flamenco. Muitas de suas obras (pinturas e gravuras) se tornaram ícones do século XVI, e retratam, em geral, paisagens e cenas do campo. Comparado e citado como influenciado por Jeroen van Aken, mais conhecido como Hieronymus Bosch ou Jeroen Bosch Hertogenbosch (1450 -1516), pintor renascentista do século XV, Bruegel acabou por dar origem ao que viria a ser chamada de “dinastia Bruegel”, com seus descendentes (filhos, netos e bisnetos) levando adiante a inspiração de suas obras.

“A Torre de Babel’ (1563) é considerada uma das obras das mais importantes do pintor que possui várias outras icônicas dentro do movimento renascentista, incluindo ‘Provérbios Flamencos”, que em 2008 também foi usada como arte de capa de um outro álbum que falaremos na próxima edição desta coluna. Bruegel produziu três pinturas sobre o tema bíblico, uma delas foi perdida. As que resistiram ao tempo: ‘De “Kleine” Toren Van Babel’ (ou a “pequena” Torre de Babel, 59,9 × 74,6 cm) e De Toren van Babel (a Torre de Babel, 114 × 155 cm), encontram-se no Museu Boijmans Van Beuningen (em Roterdã, na Holanda) e no Museu de História da Arte (em Viena, Áustria), respectivamente.

Na representação da torre grande é possível ver a construção com uma grande riqueza de detalhes e também o que acontece ao seu redor, incluindo a cidade logo atrás, o mar à frente com os barcos, as pessoas em seus afazeres cotidianos na construção e no seu entorno, e também a imagem do rei fiscalizando a construção e sendo reverenciado pelos trabalhadores. Dentre os detalhes que chamam a atenção na imagem, um deles é que a torre está ligeiramente inclinada para a esquerda, outro é que a torre ao mesmo tempo que está sendo construída parece estar desmoronando, além de inacabada, claro.

Com a pintura, Bruegel buscou ilustrar um dos acontecimentos narrados na Bíblia, especificamente no livro de Gênesis e ocorrido após o dilúvio, quando Deus teria ordenado que as pessoas se dispersassem e povoassem a Terra (Gênesis 9:7), mas não foi obedecido. Em vez disso, liderados por Ninrode (um dos descendentes de Noé), na cidade de Babel, uma das cidades onde a população havia se reunido, resolveram construir uma torre tão alta cujo o cume tocasse o céu. Devido a essa desobediência e a ambição de tal empreendimento, Deus fez então que houvesse várias línguas a serem faladas por aquele povo, de modo a não se entenderem e a não concluírem a torre, dispersando-se em grupos para várias outras regiões. Esses acontecimentos são narrados em Genesis 11:1-9.

Estudiosos identificam na pintura da “Torre de Babel” uma conotação principalmente política e contestatória, representação da ambição dos homens de sua época. Bruegel viveu na Antuérpia do século XVI, uma cidade bastante cosmopolita e das maiores da Europa, além de estratégico centro de comércio. Sendo um grande centro comercial, a cidade tinha muitos comerciantes ricos, o que desagradava a Bruegel, que via toda essa riqueza como algo exagerado, insignificante diante da grandeza de Deus. A pintura seria uma espécie de alerta para as pessoas, significação encontrada em muitas outras pinturas do artista.

A “Torre de Babel ‘Pequena’” é a que viria ilustrar a capa de alguns álbuns de música pop, algo um tanto incomum para as pinturas do artista, geralmente utilizadas em discos de música clássica. Ela está, por exemplo, no álbum “Converging Conspiracies” (1993), da banda de Death Metal Comecon. Se os Titãs não foram os pioneiros no uso da pintura como ilustração para a capa de seu álbum, foram ao menos certeiros, casando com a ideia que pretendiam passar com “Nheengatu”, lançado num momento de certa turbulência política e social no país (que viria a se agravar nos anos seguintes) e numa tentativa de retomada a uma sonoridade mais crua e enérgica, com aproximação do punk, tanto nas letras quanto nos arranjos, sem deixar de lado ritmos regionais como o baião e apresentar influências de ska.

Em termos de proposta, a banda tenta se aproximar do que fizeram nos exitosos álbuns de 1986/87 já que “Sacos Plásticos” (2009), o álbum anterior, não foi bem recebido nem por público e nem crítica, tendo sido o último álbum com a participação do baterista Charles Gavin. No formato quarteto e com a participação de um baterista convidado (Mario Fabre), “Nheengatu” apresenta composições de Sergio Britto, Paulo Miklos, Tony Belloto e Branco Mello, e conta com participações especiais de Arnaldo Antunes e Angeli. O álbum traz uma versão pesada para “Canalha”, de Walter Franco, na voz de Branco Mello.

Outro detalhe que merece ser citado é a contracapa do disco, em que foi utilizada uma outra pintura de Bruegel, “O Massacre dos Inocentes” (1565 – 1566), representando a execução ordenada pelo Rei Herodes de todos os meninos de Belém, narrada na Bíblia no Evangelho de São Mateus. A pintura é cercada de certa controvérsia tanto em relação ao que é visto em cena, quanto a sua originalidade, já que existe uma pintura idêntica à original, feita por Pieter Bruegel, o Jovem; é de sua autoria a arte “The Flatters” (1596), usada no rótulo do disco dos Titãs. Já no encarte, outra pintura de Bruegel (o velho), a pintura “A Luta Entre o Carnaval e a Quaresma” (1559). Todo esse trabalho gráfico é possível de apreciar com mais detalhes na edição em vinil de “Nheengatu”, lançado em capa dupla.

“Nheengatu” é uma palavra indígena que significa língua geral, criada pelos jesuítas no século 17 numa tentativa de unificar os dialetos indígenas em um só. Essa busca de unificação entra em contraste com o que aconteceu com a construção da Torre de Babel. No comunicado à imprensa, a banda explicitou a ideia: “A capa e o título apresentam um paradoxo interessante: uma torre que foi destruída pela falta de entendimento e uma língua que foi criada para favorecer o entendimento. Na tentativa de fazer uma foto instantânea do Brasil atual, as duas ideias se contrapõem bem: uma palavra (e uma linguagem) de entendimento para tentar explicar um mundo de desentendimento”.

A história da Torre de Babel e a dos Jesuítas são demonstrações claras de que a palavra/linguagem, no fim, é apenas um facilitador para a comunicação, já que o entendimento entre os homens está para muito além e requer muito mais que isso, como nos lembra os Titãs em “Nheengatu”.

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 Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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