Entrevista: Vivendo em Lisboa, a mineira Érika Machado lança um novo EP desejando que um certo presidente quebre o calcanhar

entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa

Há entrevistados que tentam ser cordiais, engraçados ou espertos. No caso de Érika Machado, a sua postura revela uma identidade genuinamente otimista e bem humorada e essa impressão acentua-se à medida que falamos numa esplanada do Jardim da Estrela, em Lisboa. O ponto de partida da nossa conversa é o lançamento do EP de três canções autorais e inéditas (“Devastei O Meu Jardim Por Você”), que Érika gravou entre fevereiro e abril de 2022 no estúdio caseiro Quebra-Galho e que contou com a mixagem e masterização de John Ulhoa (Pato Fu), em Belo Horizonte.

Na prática, a faixa-título e “Maria Joana” representamA o lado romântico mid tempo e a pop “Mandinga” atribui um colorido especial a um trabalho imaginativo e leve que denota uma aceitação renovada do mundo. “A abertura que vivemos hoje em dia trouxe mais otimismo e o disco chegou nessa altura. Quando compus estas canções foi num momento muito feliz porque tinha acabado de visitar a minha família que não via há dois anos”, conta.

Érika concebeu o trabalho como um EP, funcionando como um disco de demonstração e prestando atenção ao fenômeno interativo das plataformas virtuais onde o acesso é ilimitado, mas nem sempre totalmente disponível. “Pensei em fazer um disco que não gastasse cinco minutos do tempo das pessoas com mensagens sintéticas para que pudessem escutar o trabalho integralmente”, explica. Complementarmente, a cantautora mineira salienta que o objetivo inicial de fazer o conjunto de três canções destinava-se ao universo digital e a decisão de avançar para números mais curtos também visava facilitar a integração no espaço radiofónico.

Questionada sobre a continuidade das Spicy Noodles, um duo luso-brasileiro que formou com Filipa Bastos e rendeu o promissor álbum de indie-pop “Sensacional!” (2020), Érika revela alguma incerteza sobre a continuidade do projeto: “Fomos convidadas para fazer um show em setembro, mas a Filipa não teve disponibilidade e ficou em stand by. Ela está muito ocupada com os estudos, trabalha noutras atividades e vive em Coimbra enquanto eu vivo em Lisboa. Já conversamos e pensamos em alguém para a substituir, mas não faz sentido”.

Relativamente às suas influências musicais recentes, a cantautora mineira destaca o álbum “ABCYÇWÖK” (2020), que John Ulhoa lançou durante a pandemia com André Abujamra e o disco “Micro” (2022), de Maurício Pereira. Sobre o universo musical português, Érika confessa a sua admiração pelos Clã, por B Fachada, Benjamim, Cassete Pirata (é amiga do vocalista Pir) e por Surma. “Há uma cena muito forte aqui com bons projetos e boas produções. Agrada-me ver que há mais gente a cantar em português do que quando cheguei aqui. O sotaque português cantado tem muita graça (risos)”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Érika Machado conversou com o Scream & Yell. Leia abaixo!

Você reside em Lisboa há algum tempo. Gostaria de saber mais sobre a sua vida na cidade e as afinidades musicais que construiu durante este tempo.
Cheguei a Lisboa em novembro de 2019 e adoro estar aqui porque é um lugar calmo e tranquilo. Ando várias vezes de moto, uma Acelera, e encanta-me fazê-lo em Lisboa, onde posso inclusivamente viajar de noite, algo que seria difícil no Brasil. Durante este tempo, tenho desenvolvido muitas parcerias. Fiz trabalhos com uma violinista ligada à música improvisada, a Maria do Mar, de onde destaco uma colaboração musical e videográfica durante uma residência artística que ela fez recentemente no Alentejo (região do sul de Portugal). Tenho outra colaboração com a poeta carioca Duda Las Casas. Já fizemos quatro vezes uma apresentação intitulada “As Contentes”. Nós misturamos música e poesia e é algo meio irónico. A forma dela escrever é parecida com a minha, é muito crítica e eu adorei trabalhar com a Duda. Há alguns meses atrás, o último show que eu fiz incluiu a Joana Perdigão, Angélica Freitas, Maria do Mar e Renato Negrão. Atuamos no Espelho de Água. Estava todo o mundo passando por Lisboa e decidimos fazer algo com música e poesia. Foi muito legal. Trouxemos brinquedos, a Joana tocou teclado e eu baixo. Gostei bastante dessa performance. Para além disso tenho amigos na música pop, pessoas que admiro bastante e em Lisboa acontecem coisas excelentes. Tenho tido várias parcerias aqui que são diferentes de Coimbra. Falo de gente de diversos segmentos e vertentes e dá sempre para juntar o meu trabalho aqui e ali com o de outra pessoa.

As três canções que você apresenta agora surgiram de gravações caseiras. Quando é que lhe ocorreu integrá-las no EP “Devastei o Meu Jardim por Você”?
Na verdade era um projeto que foi aprovado pelo programa Ibermúsicas. A proposta ia no sentido de eu produzir e compor online. Por isso, quando eu compunha ligava a live do Instagram e essas músicas foram feitas nesse processo e compartilhando com quem estivesse na minha rede e quisesse ter acesso ao sistema. Foi muito engraçado trabalhar dessa forma. Por exemplo, o Daniel, um guitarrista que trabalhou comigo no Brasil mandou-me uma mensagem que dizia: “Érika, eu acho que a sua câmara no Instagram está ligada por engano”. Eu estava apenas afinando a guitarra e ele entrou nesse momento pensando que eu estava online (risos). As músicas foram feitas especialmente para esse projeto. E a canção que dá o nome ao disco, “Devastei O Meu Jardim Por Você”, partiu de um desenho que estava na sala de casa. Era uma ilustração que eu fiz para uma amiga florista que vivia em Coimbra. Ela arrancava flores perto da estrada e depois fazia arranjos. Eu desenhei um jardim devastado, no qual ela estava com um bouquet de flores na mão. A dado momento, senti que a frase “Devastei O Meu Jardim Por Você” dava um bom começo para uma música e a canção partiu daí.

Embora você esteja à vontade em duas canções de romantismo suave, agrada-me particularmente o pop colorido de “Mandinga”. Pode-me explicar o significado da canção?
O Brasil tem uma grande variedade de religiões e todo o cantor popular tem uma música para um orixá ou um santo. Você tem esse lado presente em “Jorge da Capadócia”, que muitas pessoas gravaram. Eu não sou uma pessoa muito religiosa mas, nesta fase de otimismo, eu pensei em fazer a minha própria oração, como se fosse uma mandinga do bem: “Quero fugir do perigo da gafe da treta do mal estar de arrepender do que digo da pindaíba (que na gíria brasileira representa a falta de dinheiro) e do azar”. Essa primeira parte da música é como se fosse a minha oração, do tipo “O que é que eu quero?” e a resposta seria “Quero isso!”. Depois a letra da canção tomou outro rumo, refletindo o fato de eu não ser uma pessoa de brigar. Sou pacífica e fujo mais do que discuto e dou o que tiver para poder sair de uma briga (risos). Também pus alguma ironia e no final da canção desejo que o meu arqui-inimigo quebre o calcanhar. Porém acho que o meu maior arqui-inimigo hoje é o cara que governa o meu país. Uma pessoa tão esquisita e bizarra (risos). Eu podia desejar a morte dele mas, de uma forma mais leve, falei apenas em quebrar o calcanhar. Para brincar com isso, no clipe que eu fiz para essa canção, filmei-me quase sempre do joelho para baixo, dançando e colando nas pedras da praia, no chão duro, mas dançando também na relva que é mole e macia. A mensagem que eu quis passar foi que dançarei em qualquer cenário e continuarei alegre e espero que a referida pessoa quebre o calcanhar.

Você compartilhou recentemente, através do Instagram, o seu processo criativo. Com que objetivos resolveu fazer essa partilha?
Tenho várias amigas que são cantoras, compositoras e instrumentistas também. Elas têm muita dificuldade em registar o trabalho e estão sempre com o sonho de entrar num estúdio. Para mim, as coisas são mais fáceis hoje em dia. Mesmo que você não tenha um microfone que capte todas as frequências da sua voz, acaba conseguindo colocar a sua ideia. Toda a gente tem um computador, existem muitas plataformas gratuitas de gravação de aúdio e o Caetano Veloso até chegou a fazer um disco com uma dessas aplicações. O Logic, que é o programa que eu uso, faculta três meses de teste gratuito e é o tempo suficiente para gravar um disco. É caro, custa cerca de 200 euros, mas dá para fazer a gravação de um álbum e também inclui outras ferramentas. O John Ulhoa (Pato Fu) deu-me de presente quando eu gravei o meu primeiro disco, “No Cimento”, de 2006. Ele instalou o Logic no meu computador com um cd e numa tarde ensinou-me o básico do programa. A partir daí eu fui para o estúdio com uma direção concreta e isso ajudou-me muito. Voltando um pouco atrás, quando eu fiz a partilha do processo pretendia incentivar todas as minhas amigas que me perguntaram como é que eu gravava e mostrar-lhes a simplicidade desse método. Pensei nelas e nas meninas em geral porque o universo de estúdio é demasiado masculino. Nós temos a nossa voz e toda a competência para fazer o mesmo que os homens. Eu tenho trabalhado como técnica de som num clube de jazz em Lisboa (Avenew) e quando as pessoas vêm uma mulher na mesa de som perguntam: “Você consegue?” e eu respondo: “Sim, todas nós conseguimos” (risos).

Para além do show de lançamento do álbum no seu canal do YouTube e da publicação do clipe de “Mandinga” em várias plataformas, a promoção do disco vai se resumir a estes eventos?
Numa primeira fase sim. Eu peguei a mota há poucas semanas, enchi a mochila de discos, fui nas rádios entregá-los às pessoas que tinham programas com os quais me identificava e levei esse miniálbum com o press release. Gostaria que me ajudassem a divulgar, mas eu também quero fazer alguns shows. Com banda é um sonho, mas é um desígnio que não está muito próximo. Não sei se é uma questão daqui ou minha. Quando chamo alguém para participar de um trabalho que leva o meu nome, acho que é um serviço que a pessoa está me prestando. Essa tarefa tem de ser paga e eu ainda não tenho possibilidades de ter uma banda para fazer um show. Por isso, fiz aquele modo cirquinho com as loop stations e outras coisinhas, para conseguir colocar a minha sonoridade dentro do Logic e montar as músicas. Eu tento trazer isso para o palco, mesmo estando sozinha. Para além dessas canções tenho várias outras novas e estou a ponderar no momento, mas pretendo dar algumas voltas e mostrar o meu trabalho. Quando fiz esse disquinho senti que ninguém ia colocá-lo num leitor de cd, mas é um objeto e vem com as letras e pensei em fazer discos com uma, duas ou três faixas, bem como criar uma mini editora para mim. Tenho muita coisa guardada e até um disco pronto que foi remasterizado e mixado pelo John Ulhoa, mas que ainda não tive oportunidade de lançar. Uma das músicas que está pronta há mais de um ano chama-se “Se Joga”, que eu gravei durante a pandemia, quando ficava muito tempo no Facebook. Eu vi cada imbecil emitindo opiniões e piadas preconceituosas e pensei: “Tanto fascista que apareceu na minha rede de um dia para a noite”. Não sou propriamente ligada nas redes sociais mas, durante esse período, muita gente fez coisas online e eu aproximei-me desse universo. Ao fim de algum período no Facebook, não aguentei mais, desliguei e fiz o “Se Joga”. O tema tem a seguinte letra: “Se eu podia espalhar mais amor preferi uma anedota senil / era só para abençoar o esplendor por ser tão redondamente imbecil / Se eu podia meditar faz tão bem ser do tipo inteligente e gentil / Já não estou para te aturar faz favor, quer saber vou bloquear o seu perfil”. E o refrão reza assim: “Vai se joga vê que o mundo é um lugar bem maior / Vai se joga deve haver um precipício ao seu redor” (risos). É uma letra que fará muito sentido se eu lançar em setembro, que é a época de pré-eleições no Brasil. Acho que vou fazer um single com esse pop boa vibe.

Qual é a sua mensagem para o público do Scream & Yell?
A minha mensagem para o público do Scream & Yell é que o mundo ficou demasiado pequeno e é muito fácil ter acesso às coisas. Se puder perder quatro minutos do seu tempo e conhecer esse miniálbum, “Devastei o Meu Jardim por Você”, eu ficaria muito honrada e agradecida porque eu não o fiz só para mim. A partir do momento em que coloco isso no público indica que eu estava pensando nas pessoas. Se elas escutarem o disco, sentirei que cumpri o meu objetivo de ter feito essa música para compartilhar. A partir de agora, em que está nas plataformas, já não é minha, mas sim do mundo e com várias leituras possíveis. Espero mesmo poder apresentar bem mais o meu trabalho tanto em Portugal quanto no Brasil. Agora que as coisas abriram de novo pretendo manter a ponte entre os dois países, trazendo coisas de lá para cá como daqui para lá. Sinto que um dos maiores ganhos para mim é que posso aumentar o meu vocabulário, tanto para compor como para entender a língua portuguesa. Eu coloco palavras de Portugal e do Brasil nas minhas canções e é exatamente para que outras pessoas possam entender a imensidão e a satisfação que resulta de aprender uma palavra nova.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.

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