Disponível no Netflix, série sobre Jimmy Savile apresenta um monstro sob disfarce

texto por Luciano Ferreira

“Foi bom enquanto durou”. Essa foi a frase infame escolhida pelo DJ, apresentador e astro da TV britânica Jimmy Savile para a sua lápide. Falecido em 2011, Savile foi figura quase onipresente na mídia britânica durante algumas décadas, com ligações não só entre artistas, mas também com influência política e até mesmo entre a realeza.

A verdade é que por trás da figura quase folclórica e de atitude aparentemente carismática, que se entregava a campanhas filantrópicas, se escondia um monstro dos mais terríveis, daqueles que estão em nosso cotidiano praticando crueldades sem que sejam percebidos. Daqueles que vestem seu disfarce de cidadão de bem inclusive como forma de mascarar suas atitudes execráveis, sórdidas, executadas nas sombras. É disso que trata “Segredos e Crimes de Jimmy Savile” (Jimmy Savile: A British Horror Story, 2022), minissérie disponível no Netflix Brasil

De mineiro a título de Cavaleiro concedido pela Rainha da Inglaterra, passando por uma carreira meteórica de DJ e apresentador de vários programas de TV da rede BBC, incluindo o lendário Top of The Pops, onde artistas com canções nas paradas apareciam dublando (e que ficou no ar entre 1964 e 2006), e Jimmy Fix It, voltado para o público infantil, que escrevia cartas pedindo que algum sonho fosse realizado pelo programa.

Jimmy Savile foi, durante algumas décadas, uma das celebridades mais presentes na mídia britânica e também no imaginário de uma grande parcela da população. O auge de sua influência foi durante a década de 80, com amizade forte com a primeira-Ministra Margaret Thatcher e com a realeza, principalmente (mas não só) o Príncipe Charles e a Princesa Diana, relação aqui documentada de forma cuidadosa.

Foi como arrecadador de doações para fins filantrópicos que Savile encontrou o refúgio perfeito para: 1 – disfarçar as monstruosidades que cometia; 2 – abusar de pessoas em situação de vulnerabilidade: deficientes, crianças, adolescentes, idosos e até mesmo doentes. Embora esse seu lado nebuloso fosse algo que a partir de determinado momento passou a acompanhá-lo, foi somente a partir da década de 90 e principalmente nos anos 2000, graças ao acesso a informações proporcionado pelo advento da Internet, que a chuva de sujeira finalmente começou a despencar – infelizmente, os fatos só vieram ao grande público após a sua morte.

Dividido em duas partes, o documentário do diretor Rowan Deacon contém vários gatilhos. Ele acompanha ao longo de 170 minutos a trajetória dessa figura grotesca do mundo do entretenimento que conseguiu enganar a milhões de pessoas, ganhar honrarias ainda vivo (como o título de Sir) e ter um velório digno das grandes personalidades.

Importante e necessário, “Segredos e Crimes de Jimmy Savile” é um alerta poderoso sobre como pessoas em posição de poder são capazes de utilizá-lo para fins sórdidos. É muito improvável que suas atitudes (não todas elas) não fossem conhecidas por parte do pessoal da emissora BBC, principalmente aqueles que conviviam mais de perto com ele.

O documentário apresenta a vida de Savile em toda a sua primeira parte e em muitos minutos da segunda, mostrando um ritmo um tanto quanto acelerado nos minutos que adentram nos abusos cometidos por ele. Essa discrepância de ritmo e de foco não diminui o impacto causado pelo que revela, assim como não lhe tira a qualidade de documento valioso, apesar de indigesto. É possível perceber várias pistas das atitudes de abusador de Savile acontecendo durante as gravações dos próprios programas, inclusive uma que não foi ao ar e que corrobora o testemunho de uma das vítimas de como foi levada ao programa e posteriormente abusada.

Nos instantes finais, a perplexidade será um dos sentimentos mais presentes no espectador, que se somará a indignação, raiva e desolação, entre outros. Afinal essa é uma típica história do “lobo em pele de cordeiro” repleta de agravantes, sendo a omissão um dos maiores, explicável pelo temor a autoridade/poder, injustificável ante a gravidade dos ocorridos e pelo longo período em que aconteceram. Revoltante por ficar claro que era algo de conhecimento de muitos e que ninguém teve coragem de expor, ou quando tentou-se expor, aqueles que deveriam se indignar e levar adiante, simplesmente fizeram de tudo para abafar.

E é quando sobem as informações sobre a quantidade de pessoas que sofreram os abusos praticados por Savile que se tem uma real dimensão do quão infame foi a frase escolhida por ele para ilustrar sua lápide (que foi removida), pois apesar de todas as vidas que destruiu, ele morreu sem ter sido responsabilizado pelos seus crimes: “Em 2016, mais de 400 pessoas apresentaram acusações de abuso sexual contra Jimmy Savile. investigações descobriram que os crimes aconteceram na BBC, em escolas, orfanatos e hospitais por toda Grã-Bretanha. as vítimas tinham entre 05 e 75 anos”.

É como diz o título original do documentário, “Uma História de Terror Britânica”. Sabe o que é o pior? É uma história real.

 Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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