Esse você precisa ouvir: “Disintegration”, o ápice do The Cure

texto por Luciano Ferreira

Num espaço de 10 anos, do lançamento de “Three Imaginary Boys” (1979) até “Disintegration” (1989), Robert Smith lançou oito álbuns de estúdio com o seu The Cure, além de duas compilações – uma de singles (“Japanese Whispers”) e uma de hits (“Standing on a Beach”, cuja versão em cassete trazia no lado A as 13 faixas do best of e no lado b nada menos do que 12 b-sides raríssimos na época) – e um disco ao vivo, “Concert”. Paralelamente, excursionou e gravou um álbum com Siouxsie and the Banshees e outro com o The Glove, projeto em parceria com Severin (baixista dos Banshees).

Engana-se, no entanto, quem pensa que Smith estava determinado a manter sua banda sob os holofotes com todo esse esforço discográfico, pois em muitos momentos ele pensou em acabar com ela. Robert sentia-se mais “confortável” como guitarrista dos Banshees do que como líder do The Cure. Com sua banda principal, ele tinha o peso e a responsabilidade de carregar o grupo, tendo que lidar com gravadora, saídas e entradas de integrantes, além do clima barra pesada que havia se instalado ao redor do conjunto nos álbuns “Faith” e “Pornography” (1981 e 1982, respectivamente), com a banda sendo reduzida a ele e Tolhurst após a turnê do último disco.

Mas em 1988, época em que Smith começou a pensar no próximo álbum, muitas coisas tinham mudado. “The Head on the Door” (1985) e “Kiss Me Kiss Me Kiss Me” (1987), junto com a coletânea “Standing on a Beach” (1986), haviam catapultado o The Cure a um patamar jamais imaginado pelo próprio Smith, exacerbando a “curemania” e levando a banda às vendagens de milhares de cópias (se “Faith” tinha sido disco de prata no Reino Unido com 60 mil cópias vendidas, “The Head on the Door” bateu nas 500 mil cópias só nos EUA!). O Cure havia conquistado o público americano e de boa parte do mundo. Eram os queridinhos da MTV, com seus videoclipes, produzidos por Tim Pope em alta rotação. Álbuns de ouro e de platina se tornaram comuns na rotina da banda. Os shows agora eram não mais para algumas centenas de pessoas, mas para dezenas de milhares.

Como músicos, a banda havia se estabelecido com um núcleo central desde então com: Smith, Simon Gallup (baixo), Porl Thompson (guitarra e teclados), Boris Williams (bateria) e Lol Tolhurst (teclados) – formação que veio ao Brasil para uma turnê histórica em 1987. Finalmente, tudo parecia caminhar bem com o The Cure. Smith chegou a afirmar que “tudo que eu tinha sonhado em fazer estava dando frutos. De repente percebi que havia um número infinito de coisas que poderia fazer com a banda”.

Apesar de tudo isso, Smith não se sentia confortável com a proporção gigantesca que o Cure havia alcançado, transformando-se em megabanda, daquelas que precisam abandonar os pequenos teatros para tocar em estádios. Ele também não estava à vontade com os 30 anos se aproximando (ele nasceu em 21 de abril de 1959) e sentia que deveria lançar um álbum que “definisse a trajetória do Cure”, mesmo que fosse o último. E, diante das pressões, voltou a usar drogas alucinógenas.

Dentro desse contexto todo, Robert se sentiu praticamente obrigado a demitir o tecladista Lol Tolhurst, que o acompanhara em todos os trabalhos da banda desde o começo, devido a sérios problemas com álcool e de relacionamento com os outros integrantes da banda. O Cure, que até então funcionava como um sexteto, efetiva o tecladista Roger O’Donnell (Psychedellic Furs) em plena turnê de divulgação de “Kiss Me Kiss Me Kiss Me”, e ele será responsável pelo intenso trabalho de teclados do vindouro “Disintegration”.

Já perto de seu lançamento, em 02 de maio de 1989, os executivos da gravadora Fiction, subsidiária da Universal Music, reuniram-se para a audição do álbum e não ficaram nada satisfeitos. A percepção geral foi de que Robert Smith estava cometendo “suicídio comercial”. Apesar do exagero, havia certa razão na preocupação, dado o contexto musical da época, dominado pela dance music e pelas raves, e que acrescentaria a barulheira intensa de nomes como Faith no More (que lançaria “The Real Thing” no mês seguinte) e Nine Inch Nails (“Pretty Hate Machine”) ao pacote. Some-se a isso o fato de foram com a pegada pop e os climas menos “carregados” dos álbuns anteriores (a partir de “The Top”) que a banda havia alargado bastante seu público. Pisar no freio e mergulhar na introspecção não parecia a atitude mais correta para o Cure.

Entre obra-prima e suicídio comercial, o tempo tratou de mostrar que Robert Smith estava certo e conhecia seu público mais do que qualquer um. “Disintegration” não só manteve o status do The Cure intacto como conseguiu ampliá-lo ainda mais. “Lullaby”, o primeiro single do álbum, alcançou a melhor posição para a banda nas paradas até então, e o álbum vendeu mais de um milhão de cópias em pouco tempo de lançado. O tamanho que o The Cure havia chegado ficou mais evidente com a longa e desgastante turnê “The Prayer Tour”, que quase dissolveu a banda.

“Disintegration” foi gravado entre dezembro de 1988 e fevereiro de 1989 no Hookend Recording Studios em Oxfordshire, contando com a produção, mais uma vez de Dave Allen. Embora muitos vejam o álbum como uma ruptura em relação aos seus antecessores, olhando de perto, muito do que se ouve ali já havia, de alguma forma, sido apresentado tanto em “The Head on the Door” quanto em “Kiss Me”, não no todo, mas em partes, em faixas como “Sinking” e “One More Time”, com longos instrumentais e texturas de teclados densos. A diferença é que Smith resolveu em “Disintegration” tornar esse lado mais denso o foco principal de todo o disco.

A ideia, na verdade, era retomar ainda mais para trás na discografia da banda, voltando à fase mais claustrofóbica do conjunto, aquela de “Pornography”, que esfacelou a banda psicologicamente, preparando o terreno para uma futura trilogia, que seria completa só em 2000 com o álbum “Bloodflowers” –o Cure viria até a fazer uma turnê chamada “Trilogy” com os três álbuns tocados na integra. A diferença é que para “Disintegration” ele estava cercado de mais músicos, inclusive tecnicamente melhores. A despeito de seu humor difícil à época, o próprio Smith estava com domínio maior de seu instrumento. Mas foi a presença de O’Donnell um dos pontos chaves que permitiu que o álbum soasse tão gélido, graças as camadas de teclados criando uma grande massa espessa recobrindo boa parte das canções e sendo praticamente o centro das atenções em boa parte do álbum, juntamente com o baixo em primeiro plano de Gallup.

Certamente que “Disintegration” não é um álbum fácil, e não atrai numa primeira audição, pelo contrário, é como se a banda tivesse construído em torno de si uma grande e impenetrável muralha, requerendo do ouvinte muitas audições. A abertura quase sinfônica com “Plainsong” e seus versos sobre escuridão, frio, velhice e o fim do mundo fornecem uma antevisão do que está por vir ao longo das faixas. Para quem se acostumou com aquela banda de guitarras, o início pode assustar e até afastar num primeiro momento.

Já em “Pictures of You”, a segunda faixa, retorna o The Cure guitarreiro num belo diálogo entre a guitarra de Porl Thompson e o baixo de seis cordas (afinado como guitarra) de Robert Smith tocando uma terceira melodia de fundo. Ele também também assume os teclados ao lado de Roger O’Donnell, com um criando uma gama de efeitos de fundo e outro seguindo mais discreto em seu papel de dar certa densidade. Smith canta sobre arrependimento enquanto olha pra fotos e avalia decisões que poderiam ter sido diferentes.

“Closedown” retoma os ambientes densos de teclados climáticos com batidas tribais e o baixo acentuado de Gallup. Aqui percebe-se o quão melodioso o The Cure se tornou em “Disintegration”, com as guitarras límpidas fazendo progressões de notas dedilhadas. “Love Song” (terceiro single do álbum), composta especialmente para Mary, foge ao padrão do disco e marca uma quebra nos climas quase sufocantes, posicionada de forma a dar o ouvinte um tempo para o respiro depois das sinfonias densas de “Plainsong” e “Closedown” e da melancólica “Pictures of You”.

“Disintegration” é um álbum longo (59 minutos e 57 segundos lançado em vinil simples na época e relançado em vinil duplo com três faixas bônus em 2010) e de longos instrumentais introdutórios, algo que a banda havia experimentado em “Kiss Me Kiss Me Kiss Me” (“The Kiss”), e apresenta , até então, a canção mais longa já composta pelo The Cure, a hipnótica e invernal “The Same Deep Water As You” com seus barulhos de chuva e trovões. Na versão CD (repassada ao streaming) ele se torna maior ainda (aproximando-se dos 72 minutos!), com a inclusão das faixas “Last Dance” e “Homesick”.

No oitavo álbum de estúdio do The Cure, o ouvinte se vê conduzido por uma longa viagem pelos pesadelos de Smith expostos em suas letras, e “Lullaby” (o primeiro single), apesar do clima sedutor, retrata justamente isso: uma canção de ninar transformada em pesadelo: “E sinto como se estivesse sendo comido por cem milhões de trêmulos buracos peludos”. O videoclipe de Tim Pope conseguiu capturar de forma precisa o conceito da música. Tanto que foi eleito o British Video of the Year at the 1990 no Brit Awards.

“Fascination Street” (segundo single) retoma o diálogo entre o baixo de linhas circulares (um dos mais emblemáticos criados por Gallup) e as guitarras de Robert Smith (lead) e Porl Thompson (efeitos), agora recheadas de efeitos viajados. O lado lírico de Smith, que se aproxima do quase poético, está expresso em versos como “Because I feel it all fading and paling and I’m begging to drag you down with me to kick the last nail in”. A próxima, “Prayers for Rain”, retoma o lado mais sinfônico do álbum enquanto um Smith desesperado desfia versos sobre sensações que parecem saídas de um pesadelo induzido por alucinógenos: “Você me despedaça, seu poder sobre mim, um agarrão em mim, um domínio tão possessivo que mata”.

Se Smith exigiu bastante de seus companheiros de banda, também impôs a si alguns desafios, principalmente diversificando o seu modo de cantar, indo do vocal sussurrado ao desesperado, do melancólico ao resfolegante na épica faixa que dá nome ao álbum. De forma quase desesperada ele vai entoando os versos de uma forma sobreposta como se estivesse prestes a sufocar com os versos, algo que nem sempre conseguiu reproduzir ao vivo, sobre um arranjo de base das mais simples e repetitivas do álbum.

O encerramento com “Untitled” é calmo, com direito a sons de acordeom emulados no teclado. Uma canção cujo tom é mesmo de encerramento, com o vocal de Smith cantado de forma sóbria. Dentre as várias canções cuja letra cita a questão do tempo, obsessão do vocalista na época, essa é uma delas. Mas a letra fala também sobre arrependimentos, pesadelos, falta de esperança, finalizando com alguns dos versos mais pesados do álbum: ” Sem esperança de lutar contra a futilidade do demônio, sentindo o monstro escalar mais profundamente dentro de mim, sentindo-o roer esfomeadamente todo o meu coração, eu nunca vou perder esta dor, nunca vou sonhar com você outra vez”.

Com “Disintegration”, Robert Smith afirmou ter percebido que, apesar dos seus esforços, o The Cure tinha se tornado tudo aquilo que eles não queriam que fossem: uma banda de estádios. Foi o preço por ter construído uma discografia respeitável ao longo de uma década, e também pela criação de sua obra-prima antes de completar os 30 anos. Marca uma divisão clara na discografia do The Cure, um ápice que a banda não conseguiu alcançar em nenhum dos álbuns posteriores, e que apesar de seus mais de 30 anos, “envelheceu saudável”, um clássico. Esse você precisa ouvir.

Ps. na reedição caprichada da discografia clássica da banda, “Disintegration” ganhou uma versão tripla em CD com um segundo disco bônus com 20 raridades (de home demos de Robert Smith até demos com a banda inteira e primeiros rascunhos de mix) e um terceiro que incluia “Entreat”, raro disco ao vivo que trazia as 12 canções da versão em CD retiradas de um show no Wembley Arena em 1989.

Ps2. No aniversário de 30 anos do álbum, em 2019, o site Sound Like Us publicou uma deliciosa reportagem especial.

Ps3. Conheça todos os discos do Cure na discografia comentada especial do Scream & Yell.

Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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