Três HQs: “A Infância do Brasil”, “O Homem Rabiscado” e “Pussey!”

Textos por Leonardo Tissot

“A Infância do Brasil”, de José Aguiar (Nemo)
Uma bela HQ, apesar do tom professoral

Lançada originalmente em 2017, “A Infância do Brasil”, de José Aguiar, ganha nova edição ampliada pela Nemo. A obra mostra o desenvolvimento do país a partir de um olhar bem específico: a forma como a sociedade lidava com o nascimento de crianças a cada século. Desde os idos de 1500, quando ter uma filha era considerado um “desperdício” pelos colonizadores europeus, passando pelo processo de catequização forçado vivido pelos indígenas no século XVII e pelo nascimento de crianças escravas nos períodos seguintes, percebe-se como o Brasil mudou ao longo dos anos, ainda que os pequenos continuem a ser tratados de forma desumana em muitos casos. Nos séculos XX e XXI, o contraste entre crianças que nascem dentro de presídios ou que vivem trabalhando nas ruas, com aquelas que têm seus ultrassons gravados para serem assistidos na TV de casa — privilegiadas antes mesmo de deixarem o útero —, diz muito a respeito do quanto ainda precisa ser feito pela infância desse país. Com arte e roteiro primorosos (destaque para as viradas de página ao final de cada capítulo), “A Infância do Brasil” foi finalista do Jabuti em 2018 e levou prêmios como o LeBlanc e o Minuano de Literatura, além do troféu HQMIX na categoria “Adaptação Para Outras Linguagens”. Ainda assim, cabe destacar o tom professoral da obra — reforçado pelos textos complementares da nova edição, altamente recomendáveis para uso em sala de aula —, que pode incomodar o leitor mais casual.

Página de “A Infância do Brasil”, de José Aguiar

“O Homem Rabiscado”, de Serge Lehman e Frederik Peeters (Nemo)
Quadrinho para quem não tem preguiça de ler

“Tem gente que só não gosta de ler porque tem preguiça, e pra quem tem preguiça recomendo ler quadrinhos”. A frase é de uma menina entrevistada em matéria publicada recentemente na Folhinha, página do jornal Folha de S.Paulo dedicada às crianças. Quando chegar à idade adulta, caso se depare com obras como “O Homem Rabiscado”, é provável que a garota mude de ideia. O trabalho de Serge Lehman e Frederik Peeters, publicado originalmente em 2018 e que chega agora ao Brasil pela editora Nemo, é uma intrincada HQ que envolve as mulheres da família Singer. Mais especificamente, Betty Couvreur (é preciso ler a HQ para entender por que o humilde redator se referiu a uma família com outro sobrenome), sua mãe Maud (uma escritora de livros infantis que há anos é chantageada por uma figura estranha) e sua filha Clara (a personagem mais cativante do livro). O que começa como uma história urbana em uma Paris tomada pela chuva, desemboca em um conto fantástico que envolve um golem, um pássaro gigante e um mistério que, pouco a pouco, é revelado a cada página — além de um gato e pessoas fumando, é claro. Afinal, trata-se de um quadrinho francês. É difícil escrever sobre “O Homem Rabiscado” sem entregar detalhes importantes da história — e tirar toda a graça de ler as mais de 300 páginas da HQ. O que se pode dizer sem medo de dar spoilers é que os leitores vão se deparar com um trabalho de alto nível, desenhado por um Frederik Peeters (de “Pílulas Azuis” e “Oleg”) inspirado, e uma história de mulheres fortes que deve ser lida com atenção total para que todas as suas minúcias sejam perfeitamente compreendidas. Em resumo: é quadrinho para quem não tem preguiça de ler, viu, garotinha da Folha? Um dia você vai entender. A tradução é de Scheibe & Castro.

Página de “O Homem Rabiscado”, de Serge Lehman e Frederik Peeters

“Pussey!”, de Daniel Clowes (Skript Editora)
Ironizando o mercado de quadrinhos

Autor de pelo menos um clássico dos quadrinhos, “Ghost World”, Daniel Clowes talvez seja mais conhecido dos leitores de Scream & Yell pelo videoclipe de “I Don’t Want To Grow Up”, dos Ramones, pelas artes criadas para a gravadora Sub Pop e por “Paciência“, que chegou a figurar na lista de Melhores Livros de 2017 no Melhores do Ano Scream & Yell. Após um bem-sucedido crowdfunding realizado em 2021, a Skript Editora conseguiu trazer para o mercado nacional no começo deste ano “Pussey!”, uma das mais ácidas obras do quadrinista estadunidense. Nas pouco mais de 50 páginas da HQ — publicadas originalmente entre 1989 e 1994 na sua revista independente, a “Eightball” —, Clowes destila seu veneno em direção ao mercado de quadrinhos. Manipulado pelo editor Doutor Infinito, Dan Pussey é um quadrinista com pouco senso de ridículo que acredita ser capaz de se tornar um grande nome do mercado editorial desenhando histórias de super-heróis. E ele até que se dá bem, pelo menos até ser influenciado por uma professora de escrita criativa, que o inspira a procurar uma editora de quadrinhos de arte — já que, pelo preço das antologias do segmento, “elas devem pagar mais por página”. Ao mesmo tempo que abusa do sarcasmo para retratar o dia a dia do mercado, Clowes deixa transparecer em “Pussey!” uma certa mágoa com a dinâmica entre fãs, editoras e demais colegas quadrinistas. É importante lembrar que essas histórias foram publicadas antes do artista ter algum reconhecimento no mainstream, com a adaptação de obras como “Wilson”, além da própria “Ghost World”, para o cinema. Difícil dizer que “Pussey!” não é um grande quadrinho, mas ele funciona melhor para iniciados no universo das HQs indies e interessados nos bastidores do mercado editorial. Se nunca leu Clowes na vida, começar por outro título talvez seja mais recomendado. “Pussey!” tem tradução de Márcio Rodrigues.

Página de “Pussey!”, de Daniel Clowes

– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo

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