Literatura: “Os anos”, de Annie Ernaux, é um livro brilhante que beira o inclassificável

texto por Gabriel Pinheiro

Annie Ernaux propõe algo novo em “Os anos” (“Les Années”, 2008). Para escrever esta sua “autobiografia impessoal”, ela aposta numa criativa e surpreendente voz narrativa que mergulha a sua história pessoal no fluxo contínuo e veloz da História, aquela com “H” maiúsculo. Com tradução de Marília Garcia, o livro, talvez a obra máxima da autora francesa, foi lançado por aqui em 2021 pela Fósforo Editora.

“Todas as imagens vão desaparecer” diz Annie Ernaux logo na primeira frase do livro. Seguimos, a partir daí, uma sucessão de imagens tanto de um mundo quanto de um indivíduo em transformação ao longo dos anos. De sua infância, no pós-Guerra, até a velhice, Annie cobre seis décadas de sua própria história, de seu país e do mundo. Neste roteiro, ela cria retratos de fôlego das diferentes gerações que foram se substituindo ao longo do tempo: onde estava e como agia cada geração frente às transformações locais e globais que testemunharam.

Na infância, na França após a Segunda Guerra Mundial, os encontros familiares eram pautados pelo passado. A fome, o medo, a doença e a morte eram trazidos à mesa pelo discurso dos mais velhos. “Eles nunca se cansavam de contar daquele inverno de 1942, glacial, a fome e o nabo (…) as vítimas vasculhando os escombros à procura de suas fotografias e de seu dinheiro”. Se não viveu aquele período sombrio da Europa, “a memória dos outros fazia com que também fizéssemos parte do mundo”.

Muitos são os conflitos que se seguem, então, na narrativa de “Os anos”. A guerra da Argélia, “uma terra queimada de sol e sangue”; maio de 1968 na França, “eles se vingavam por nós de toda a contenção da nossa adolescência”; ou a guerra norte-americana ao terror pós-11/09, “não podíamos mais dormir, era preciso ficar alerta até o fim dos tempos”. A história da humanidade no século XX e início do século XXI parece alternar entre ciclos de revolta e conflitos, seguidos por períodos de euforia e liberdade, aos quais se segue uma sensação de apatia e descontentamento. Um ciclo que se repete.

O fio narrativo de Ernaux tem como pontos que norteiam sua memória uma série de fotografias que a autora observa e descreve para os leitores. A primeira delas é uma foto sépia de um bebê gorducho fazendo beicinho. Datada, provavelmente, de 1941, “é impossível ler outra coisa além do ritual pequeno burguês de encenar a chegada ao mundo”. Na última, uma mulher de certa idade está em uma grande poltrona abraçando uma menina sentada sobre seus joelhos. A data: 25 de dezembro de 2006. Annie Ernaux mergulha em seu arquivo de registros íntimos, familiares, de afeto e seleciona uma série de imagens seguindo o tempo cronológico. Se não vemos estas fotografias, que não são impressas no livro, as construímos de maneira vívida, através da descrição detalhada da autora. Além disso, reconhecemos nossos próprios costumes e de nossos antepassados naqueles registros familiares – gestos e poses compartilhados na memória coletiva.

Grande parte do livro é narrado na primeira pessoa do plural. Annie Ernaux constrói um narrador que é coletivo, que é “nós”. Sob seu olhar, que se insere na ação, observamos transformações políticas, sociais, culturais, religiosas, sexuais, tecnológicas e de costumes na França e no mundo ao longo de décadas. Mas, ao dizer de suas fotografias pessoais, a voz narrativa muda para a terceira pessoa do singular. Até os últimos momentos do livro, a criança, a adolescente e a mulher que Annie Ernaux descreve nas fotografias que observa nunca é “eu”, mas sempre “ela”: “O uso do ‘ela’ na escrita vai corresponder, em espelho, ao caráter fugidio das fotos, nas quais ela é ‘constantemente outra’”.

“Os anos” é um livro que beira o inclassificável. Caminha entre o ensaio, a autobiografia, a sociologia e o diário, para inventar uma nova maneira de contar. Daqueles trabalhos que, com poucas páginas (224), sabemos ter em mãos algo especial e singular. Uma ode à memória e ao tempo: este que atravessamos e, sobretudo, nos atravessa de maneira irremediável. Cabe à Annie Ernaux “salvar alguma coisa deste tempo no qual nunca mais estaremos”. Brilhante.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.

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