Música: Dulce Quental exalta o silêncio em “Sob o Signo do Amor”, um disco de enamoramento e resistência

texto por Marcelo Costa

Silêncio. Dulce Quental tem algo para revelar: “Voltei pra mim / Estou de volta”, ela canta em “A Pele do Amor”, faixa que acena para John Lennon (“Hold On”) e também traz o título de seu sexto disco solo, “Sob o Signo do Amor” (Cafezinho Edições, 2022), primeiro disco de inéditas desde “Beleza Roubada” (Sony/BMG, 2004) – nesse intervalo, Dulce lançou o vinil “Música e Maresia” (Discosaoleo/Cafezinho Edições, 2016), resgatando canções “perdidas” gravadas nos anos 90, e o DVD homônimo gravado ao vivo e em parceria com o Canal Brasil em 2017, além de compor e ser gravada por diversos parceiros. A espinha dorsal de “Sob o Signo do Amor”, porém, foi composta num autoexílio involuntário e mágico em Angra dos Reis em 2020 em meio a pandemia, quando Dulce, refugiada numa casinha selvagem à beira mar, compôs e registrou a maioria das canções no formato violão e voz em seu pro-tools enquanto dividia o espaço com a natureza, com o céu, a lua e os morcegos, e golfinhos, pescadores e tartarugas que dividiam o oceano com ela. São canções novas, frescas, emocionais e repletas de silêncios que convidam o ouvinte a entrar num universo tão pessoal quanto social.

Sob o Signo do Amor nasce de um contraponto”, observa Dulce. “De um lado temos esse estado de terror, a indignação pelo desgoverno Bolsonaro bombardeando as redes sociais com o seu terrorismo e os números de mortes na pandemia aumentando… De outro, a urgência em viver o amor e uma sexualidade aos 60 anos, rica de enamoramento e erotismo, o desejo de afirmar a própria experiência num mundo que está desabando, apesar de tudo vale a pena apostar nas nossas próprias ficções. A resistência se faz dessas pequenas histórias”, acredita a artista. E são 11 pequenas histórias que compõem esse novo trabalho de Dulce, atestados de maturidade de uma artista que surgiu como diva no grupo Sempre Livre, nos anos 80, cantando sucessos como “Eu Sou Free”, “Esse Seu Jeito Sexy De Ser” e “Fui Eu”, saiu para a carreira solo – no mesmo momento em que Lobão deixava Os Ronaldos e Cazuza saia do Barão Vermelho – cravando sucessos como “Natureza Humana” (1986), “Caleidoscópio” (1987) e “O Poeta Está Vivo” (parceria com Frejat e enorme sucesso do Barão Vermelho em 1990) e, com 40 anos de carreira (a serem completados em 2024), está muito mais interessada em colaborar com as novas gerações do que viver do passado.

Não é à toa que quem assina a produção de “Sob o Signo do Amor” são os irmãos (da nova geração) Jonas e Pedro Sá, e Dulce Quental faz questão de pontuar: “Esse é um disco feito a seis mãos”. Jonas já lançou três discos elogiados em carreira solo, sendo que o mais recente, “Puber” (2018), conquistou Dulce, que o conheceu no show de lançamento, e depois, aos poucos, foi estreitando relações. “Jonas é um artista fabuloso. Fiquei impressionada com os multitalentos dele. Aprendi muito com a forma empírica de ele trabalhar. Confiei que ele não ia largar a minha mão e chegaríamos lá, e chegamos”. Foi Jonas quem trouxe Pedro: ele integrou a BandaCê, que acompanhou Caetano, e é um estudioso da guitarra que lançou em 2021 seu primeiro disco solo. “Pedro é uma pessoa muito musical”, conta Dulce, revelando: “Ele não tem ego nem preconceito. Não julga. Ele tem um interesse genuíno pelo que você tem pra falar, e captura isso”. Juntos, Dulce, Pedro e Jonas fizeram cinco encontros e “já tínhamos um disco. Voz e violão já era uma coisa forte. Esse é um disco de guitarra e voz na frente, com a bateria pequenininha e os barulhinhos de MPC, lá atrás”, explica Dulce, que fez apenas dois pedidos para os irmãos Sá: “Me tirem dos anos 80 e… respeitem as pausas e os silêncios das canções”.

Capa do álbum “Sob o Signo do Amor”, de Dulce Quental

A preocupação da artista quanto ao silêncio é genuína, pois vivemos em um período histórico histriônico e verborrágico, em que tudo chega gritado e mastigado para o consumidor, que se vê “livre” de pensar para consumir. Dulce Quental, no entanto, quer convidar o ouvinte para refletir esse silêncio penetrando nas camadas de suas canções: “Quando você deixa vazio na música, deixa pausa, espaço para o outro, para a escuta e interpretação”, explica, levantando também outra das bandeiras de “Sob o Signo do Amor”, que nasceu inspirado em leituras do livro “Sobrevivência dos Vagalumes”, do filósofo e historiador de arte George Didi-Huberman, ao analisar os “Escritos Corsários” de Pasolini, onde o cineasta italiano antecipa o estrago que a sociedade do espetáculo viria a causar na cultura. E diz não ser mais possível ser inocente e livre diante do terror e da destruição. “Parece hoje”, comenta Dulce. “É uma visão premonitória. Estamos presenciando que não é preciso fazer um golpe de estado para vivermos numa ditadura, basta corromper as instituições. Walter Benjamin e Hannah Arendt também cantaram tudo o que viria a acontecer. Eles previram toda essa destruição. Mas quem diria que iria acontecer tão rápido”.

Sob o Signo do Amor” respira poesia, filosofia e o ar marinho e também Caetano (“Alegria, Alegria” é citada de passagem em “Poeta Assaltante”, que ainda traz trechos do poema “Washington D.C.” de George Iso declamados por Alan Riding), Astor Piazzolla (o tango “Vagalumes Fugidios” conta com um arranjo de Cellos concebido e executado por Jaques Morelenbaum, mais Mariano González no Bandoneón e Itamar Assiere ao Piano), Paris, Merleau Ponty, Pasolini, Nietzsche e o filme “Melancolia”, de Lars Von Trier, entre muitas outras coisas. Dulce assina nove composições sozinha (a maioria da safra produzida na casinha em Angra em 2020), divide uma com o pianista pernambucano Zé Manoel (“A arte não é uma jovem mulher”), e outra com o produtor e baterista paraense Arthur Kunz, das bandas Strobo e Os Amantes (“Amor Profano”). O disco novo também se conecta com “Délica“, primeiro disco solo de Dulce lançado em 1986: “’Sob o Signo do Amor’ é um disco que sonhei lá atrás”, revela. “’Délica’ é uma carta que enviei para o futuro… para mim mesma, uma mensagem que me ajudasse a encontrar o que eu encontrei agora. Esse disco é a realização daquela mensagem. Ela chegou. Tive que retrabalhar essa mensagem, mas ela finalmente chegou”, acredita Dulce.

Falar sobre filosofia, política e amor em um disco em 2022 pode soar arriscado, algo que Dulce não teme, muito pelo contrário. “Todo artista tem que arriscar, experimentar, se expor. Para poder acertar tem que errar”, acredita. “Esse disco é uma conversa ao pé do ouvido, sussuradinho, sabe”, resume, mas logo acrescenta: “É o disco mais musical da minha carreira, mais sensorial, num sentido geral. Os tempos estão mais pesados, mas as palavras estão mais leves”, pontua. O barulho do mundo preocupa, mas “quando você silencia esse burburinho das vozes contemporâneas e se permite escutar a tua herança, as vozes com quem apreendeu e que ressoam em você, a sua obra ganha uma dimensão muito maior porque ela não é mais só você. São todas essas camadas das quais você faz parte. Esse encontro dos tempos é muito poderoso quando acontece nas canções. E eu acho que isso aconteceu em ‘Sob o Signo do Amor’, que quer dizer ‘sob a regência do amor’, na confluência das estrelas, debaixo de um céu grego, na sincronicidade de um presente que encontra o passado e seu eterno retorno”, finaliza Dulce.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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