Cinema: Passagem dos Beatles pela Índia é esmiuçada em novo documentário

texto de João Paulo Barreto

Em “Get Back” (2021), documentário dirigido por Peter Jackson e lançado em dezembro de 2021, há dois momentos específicos nos quais a Índia, lugar visitado pelos Beatles em 1966 e 1968, é citada. Em um deles, o baterista Ringo Starr é perguntado sobre se gosta ou não do país no qual passou alguns dias acompanhando os amigos durante o retiro espiritual proposto por George Harrison na tentativa de aprofundar a si mesmo e os outros membros da banda na prática da meditação transcendental. A reposta é direta: “não muito, na verdade”. Ringo, claro, temia por sua problemática saúde, em questões atreladas à alimentação precária (temendo não se adaptar, ele levou consigo na viagem uma mala cheia com feijões enlatados) e as alergias constantes que requisitavam dele cuidados extremamente aborrecedores durante sua estadia.

O outro momento no qual o país de Ravi Shankar surge durante as conversas dos quatro músicos nas gravações de “Let it Be” é quando Paul McCartney comenta que, na noite anterior, passara algumas horas visitando rolos de vídeo dos registros daquelas viagens. As imagens são magnéticas. Nelas, vemos John tocando violão enquanto caminha pela mata. “Você parecia um estudante de filosofia caminhando pelo campus”, brinca Macca ao comentar com John. Em outro take, lá estão todos eles em volta do guru Maharishi Mahesh Yogi, cujas palestras e convite foram a razão para a ida dos jovens músicos ao lugar colonizado controversamente pela Inglaterra. Já na sequência, Lennon embarca em um passeio de helicoptero junto ao próprio Maharishi. As cenas são um vislumbre de uma fase conturbada na vida dos quatro, que buscavam um equilíbrio mental a partir doa hábitos advindos da meditação.

Ao vermos aqueles frames de imagens que datam de mais de 50 anos – e que, fãs dos Beatles, mesmo já conhecendo de diversas outras fontes, incluindo o documentário “Anthology” (1995), que fez um apanhado considerável de toda a fase transcendental da banda – fica uma vontade de querer saber mais sobre aquela fase. De entender melhor como se deu o encontro de George com Ravi Shankar. De saber algo que vá além do disse-me-disse acusatório acerca do assédio causado pelo Maharishi e que levou John a compor “Sexy Sadie”. De saber como aquela aproximação, que ia desde a cítara em “Norwegian Wood”, começando por um interesse magnético de George por aquela cultura, teve inicio e se proliferou no modo da banda agir, pensar e compor. “Os Beatles e a Índia” (2021), documentário de Ajoy Bose, que está disponível na plataforma HBO Max, surge justamente como algo a preencher essa lacuna.

Há outros trabalhos acerca do período, como aquele com narração de Morgan Freeman (!) e dirigido por Paul Saltzman, “Meeting the Beatles in India” (2020), cujo foco é centrado nos registros fotográficos feitos na ocasião. Mas, pela primeira vez, um filme resolve se aprofundar de maneira mais específica no aspecto transcendental daquele período, suas origens e ecos na trajetória do fenômeno cultural representado pela banda de Liverpool e em como esse contato ecoou, também, na cultura indiana. O resultado, além de didático (no melhor sentido da palavra), mesmo seguindo uma convencional estrutura de talking heads, imagens com drones, e ausência de músicas da banda na trilha (caro demais, claro), consegue cativar e emocionar. E digo isso não como fã e pesquisador da história dos Beatles, mas de modo a pontuar o esmero da busca realizada por Bose, que, além de cineasta, é jornalista e escritor.

A começar pela apresentação do fato de que Louise Harrison, mãe de George, costumava ouvir música indiana no rádio em Liverpool durante a gestação de seu filho no intuito de acalmá-lo no útero e de acalmar a si mesma diante do terror da Segunda Guerra Mundial que ainda assolava a cidade portuária. Aquela música estava destinada a encontrá-lo. Anos depois, o telefone em Londres de um comerciante de origem indiana tocava e quem falava era “um tal de Ringo”. “Ringo who?”, perguntou o homem, impaciente. Mal sabia o humilde dono de uma loja de instrumentos que se tratava de alguém que, a pedido de George Harrison, entrou em contato para encomendar um conjunto de novas cordas de cítara para a gravação da faixa dois de “Rubber Soul”. Encomenda essa que foi entregue prontamente não somente pelo dono do estabelecimento, mas por toda sua família, que acompanhou o patriarca em sua ida a Abbey Road para que ele pudesse afinar o instrumento indiano pertencente ao futuro compositor de “Here Comes the Sun” e que começou, ainda dentro da barriga da mãe, a ouvir acordes de cítaras.

George, aliás, apesar de não ser o destaque central do filme, tem sua ligação com a Índia esmiuçada de modo considerável. E não era para menos. Maior entusiasta daquela cultura e de sua música entre os quatro Beatles, Harrison retornou ao país diversas vezes, criando um vínculo afetivo e religioso com o lugar, estudando a cítara a partir dos ensinamentos de Ravi Shankar, seu mentor, e se convertendo ao Hare Krishna. Em um tenro momento, vemos uma das frequentadoras dos locais de ensinamento de Maharishi lembrar uma cortesia de cavalheiro que o jovem George lhe concedeu naquela distante década de 1960. Na sua figura madura, e ainda muito bela, a mulher lamenta ter sido rude com Harrison quando ele lhe ofereceu um cobertor e um abraço acalentador no frio daquele dia, perguntando-se qual teria sido sua vida nos anos seguintes se tivesse cedido aos galanteios do beatle.

Sobre a relação dos músicos com o guru indiano, o documentário traz mais detalhes referentes à acusação feita contra Maharish e sua conduta com as mulheres presentes no grupo. Ao se desvencilharem de qualquer amizade com o professor de meditação, os quatro focaram em suas próprias vidas e seguiram em frente como banda, deixando claro em entrevistas da época que não mais mantinham contato com ele. O documentário traz o fato de que não somente o suposto comportamento vexatório do homem foi o estopim para o corte de relação, mas, também, a autorização dada por ele para que uma equipe de cinema fizesse um documentário focado na presença dos Beatles em seu retiro espiritual, o que ajudou a azedar as relações e criou uma desilusão entre a banda e ele.

A verdade, segundo depoimento de Patty Boyd no documentário, é que apenas John, de fato, se sentiu incomodado com tudo de forma mais enérgica, levando George e Paul consigo no processo. Mas isso se deveu muito à influência, naquele momento, de Magic Alex, mais um vigarista a circular os Beatles com interesses escusos. Para quem não o conhece, tratava-se de um técnico de TVs com boa lábia e que cativou Lennon naquele período conturbado, ganhou um emprego na recém-criada Apple Electronics e encheu os bolsos com a grana que jorrava das contas dos quatro rapazes após a morte de Brian Epstein.

Pouco tempo depois, porém, George procurou o guru lhe desculpando por tudo. Para ele, a desilusão aconteceu com a fase da banda na cidade de Rishikesh, mas a Índia não era apenas uma fase. Para George, a Índia era algo que fazia parte de sua existência.

Viajando entre o agora, quando entrevista pessoas com quem os Beatles tiveram contato em sua passagem pela Índia, e a fase na qual os rapazes realmente caminharam pelos locais de paz e natureza livre de Rishikesh, o filme de Bose carrega um pouco de tristeza quando compara geograficamente os períodos da década de 1960 e o atual. Na imagens, traz uma fase tão repleta de vida nas décadas passadas em comparação à frieza e ao aspecto de abandono dos lugares atualmente, que cria uma rima visual que, apesar de não apelar dramaticamente ou manipular o espectador para tal constatação, lhe concede esse modo de observar aquela passagem dos anos para um aspecto puramente simbólico daquele local.

Quase como se a passagem daqueles quatro músicos pouco representasse para a milenar existência da região em si. Isso, claro, sendo algo que levaria o mais místico dos quatro rapazes e seu olhar voltado para a eternidade e ao efêmero das coisas a concordar. Mas, representou, claro. E muito.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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