Um lugar de agonias & sons: entrevista com Vina, do Throe

entrevista por Homero Pivotto Jr.

Existe um lugar da existência que é só nosso. Que nos pertence e nos traz senso de pertencimento. Conecta-nos, seja lá com o que for. Embora o caminho para tal ponto esteja em nós, nem sempre é fácil encontrá-lo. Pelo contrário: é fácil perder-se nessa busca. E também existe uma trajetória coletiva, o caminhar com a massa, que enseja um passo a passo com o contexto sociocultural coletivo de cada época. É na encruzilhada dessas estradas de vida que o Throe se materializa, tornando-se a manifestação das vivências, e das referências, de seu criador: o músico e jornalista Vinícius Castro, o Vina. Nesse contexto, o trabalho mais recente da empreitada de um homem só, mas resultado também de um pensar colaborativo, é veículo de expressão para uma mente que buscar entender o próprio tempo sem receio de sentir emoções díspares e necessárias.

Composto em meio à pandemia, “Throematism” (2021) traz ecos das inúmeras sonoridades que seu autor assimilou desde o fim anos 1980, do peso ao experimentalismo, e o que há de possível entre esses universos. Fora as reminiscências de outras formas de arte, como a literatura. Não esqueçamos, ainda, das subjetividades, daquilo que não se vê nem se ouve, mas que deixa marcas e cicatrizes de alguma forma pouco tangível, porém concreta. No Throe, os barulhos — e longe, bem longe, de usar o termo em sentido pejorativo — que saem de algum instrumento ou traquitanas eletrônicas começam a ser compostos antes, num percurso que vem da alma e passa pelo cérebro e pelas entranhas. Praticamente todos os temas são pensados e arquitetados dessa forma por Vina.

O press release adianta: trata-se de “um disco íntimo da dor. Um registro dedicado a todo coração que bate fora de seu tempo por ter perdido alguém que amava”. O material de divulgação complementa que há “influências que esbarram no post-rock de bandas como Red Sparowes e Mogwai, no shoegaze do My Bloody Valentine, no post-punk/gótico do The Cure e Fields of the Nephilim, e nas variações do metal, passando por nomes como Celtic Frost, Paradise Lost, Godflesh, entre outros”. Uma viagem que pode ser terapêutica, mas que não exclui os solavancos de alguns traumas. Enfim, um álbum que sintetiza 2021 sem pronunciar uma palavra.

Para compreender melhor essa loucura que nos acerta o âmago e torna mandatório devolver ao mundo em forma de arte o que ele nos transmite, conversamos com Vina — que também é guitarrista do Huey e um dos idealizadores/mantenedores do site independente sobre música Sounds Like Us.

https://throeband.bandcamp.com/

O Throe tem uma característica que considero virtude: é difícil encontrar outra banda para fazer comparações, dizer que se parecem. Talvez um Mogwai da vida ou coisa assim. Mas não é só isso: a sonoridade mistura muitas referências e acaba criando algo próprio. De uns anos pra cá tem sido comum essa cruza de influências. Mas, no passado – principalmente para quem curtia som mais pesado -, sair do lugar comum, driblar a cartilha, nem sempre era visto como algo positivo. Acredita que esse lance de ‘troozismo’ tem perdido força e a galera do meio tem se sentido mais livre para experimentar, para flertar com elementos que não tem a ver só com peso? Como foi pra ti trabalhar essa gama de musicalidades que criam uma estética sonora em que se percebe diversidade na unidade?
Muito legal esse lance de diversidade e unidade. Eu sempre fui mais atraído por bandas com algum tipo de assinatura e, ao mesmo tempo em que isso pode ser visto de forma positiva, também fica retido a um lugar meio sem nome. Mas esse lugar “meio sem nome” pra mim é bom, porque meio que vira o meu lugar. Talvez seja esse lugar que soa como “algo próprio”, como você falou, e acho que sempre procuro por isso. Concordo que no metal driblar a tal cartilha não era algo bem aceito, mas isso foi mudando, ainda que lentamente, já no final dos anos 1980. Tudo bem que as coisas ainda eram mais segmentadas, não só na música, mas também nas lojas, baladas, bares, casas de show, mas no meio dos anos 80 o Kerry King gravou com o Beastie Boys, o Anthrax lançou “I’m The Man” e depois apareceu o Faith No More, Fishbone, o Mordred misturando thrash com scratch e até a “zuera” do Anal Cunt com o EMF… Isso foi dando uma perspectiva de que era legal misturar sonoridades e criar coisas diferentes. Com o tempo esse “fora da cartilha” foi virando algo natural e, sei lá, ouvir Carnage, Portishead, Armagedom ou Living Colour no mesmo dia deixou de ser uma questão. Essa mistureba, que ficou ainda mais evidente nos anos 1990, influenciou uma galera a experimentar sonoridades, se libertar criativamente e não ficar só no metal mais clássico. Eu me incluo nisso e acho que, como você disse, essa gama de referências acaba aparecendo no Throe. Mesmo o lance do peso, que pra mim pode estar também nas intenções e não só no timbre grave ou atolado de distorção. Sabe, “Some Kind of a Stranger”, do Sisters of Mercy é tão pesada quanto “Hell Awaits”, do Slayer; “God of Emptiness”, do Morbid Angel ou “Deus lhe Pague”, do Chico Buarque.

Outra situação que me agrada bastante nessa linha de som do Throe é que há uma tensão constante, mesmo nos momentos mais calmos. Às vezes isso descamba em alguma explosão, um crescendo que vai dando lugar a algo mais barulhento. E, mesmo quando isso não rola, a intensidade parece sempre presente. Acho que a versão de “Último Céu” do “Throematism” é um exemplo. A faixa vem naquele pique sossegado, com beats e toques eletrônicos, pra eclodir numa parte mais “heavy”, com aquela linha de guitarra meio black metal que parece que te chama para um passeio pelo inferno da própria existência. Por que acreditas que isso acontece?
Eu gosto dessa tensão, do sobressalto, e essa ideia que você trouxe de um passeio pelo inferno da própria existência é uma leitura interessante sobre o disco, não tinha pensado nisso. Acho que essa tensão dá um certo descontrole para as músicas e tem uma imprevisibilidade que eu acho legal porque cria uma conversa entre as músicas e quem tá ali ouvindo e que vai interpretar tudo aquilo livremente. Eu tentei transmitir essas sensações do jeito mais transparente possível porque eram elas que estavam comigo no momento das composições. O riff black metal da “Último Céu” é algo engraçado, porque originalmente ele era mais uma tentativa de My Bloody Valentine. Aí um dia eu estava tocando esse riff e comecei a acelerar a forma de palhetar e abri ainda mais as notas até que virou o que virou. A partir dali eu não mexi mais porque o riff me deu esse sentido claustrofóbico que eu queria antes da última parte da música.

Aliás, como tu costumas criar as composições? Onde começa e como é o processo de se ir trabalhando as diversas camadas?
Não tenho um método muito definido, mas geralmente começa por uma melodia de guitarra, mesmo. Aí eu toco aquilo várias e várias vezes, em diferentes velocidades, palhetadas, dedilhado, e vou experimentando até entender como ele pode funcionar para o que eu quero transmitir e se ele pede camadas, dobras, synths, ruídos, voz… As linhas de bateria meio que aparecem quase que ao mesmo tempo. Eu fui criado numa casa onde se ouvia muito samba tradicional, samba canção, então a coisa do batuque sempre foi algo próximo e ainda que as composições comecem pela guitarra, na minha cabeça sempre vem uma linha de bateria junto. Eu tenho tentado não limitar muito as criações e o Throe é sobre isso. Tem sido legal limitar menos e lapidar só o necessário.

Algumas faixas do Throe têm colaboração de parceiros teus. Mas, na essência, és tu que cria e executa praticamente tudo. Por que essa opção de tocar a empreitada nessa pegada meio solo?
O Throe é pessoal, mas não é algo sozinho. Pra mim é meio desconfortável dizer projeto solo, sei lá… Eu sempre gostei de colaborações e de ter por perto pessoas que eu admiro pra criar algo junto. “Throematism” foi composto e gravado por mim, mas o disco tem o Marco Nunes comigo na produção e ele também fez a mix e a masterização. O Marco também toca no Chaosfear e gravou baixo na faixa título. O Minoru, que toca comigo no Huey, faz todas as artes das capas do Thore. Em “Throematism” a foto da capa é da Claudia Tavares e as de divulgação são do Régis Bezerra. Sem essas pessoas o disco não seria o mesmo.

A Throe é uma ideia antiga, certo? Mas registros mesmo só rolaram a partir de 2020. Tem a ver com a pandemia, que nos desestabilizou e fez com que repensássemos várias questões? Serviu também como ferramenta terapêutica, algo que permitiu colocar pra fora sentimentos/dores que nem se sabe bem o que são? Caso sim, nesse sentido, lembrou um pouco do Shane Embury (Napalm Death) com o Dark Sky Burial, que ele disse ter tido como gatilho a passagem do pai – entre outras questões. O cara contou que ficar ‘brincando’ com loopings ajudou ele a colocar um pouco das ideias em ordem.
Tem a ver sim, e seria inevitável não ter porque é a época que estamos vivendo. O disco foi composto e gerado em um contexto traumático, sem precedentes, em um ambiente de muita tristeza, perdas irreparáveis, além de uma sensação de ódio, angústia e revolta muito grande. Concordo que tem algo terapêutico pelo fato da música ser uma espécie de canal de expurgo para um tanto de sentimentos que não caberiam em palavras, mas acho que com “Throematism” eu quis mais remoer e bagunçar as ideias do que colocar essas mesmas ideias em ordem. Acho que em um sentido subjetivo, a desordem foi uma coisa interessante nesse disco.

O próprio título “Throematism” remete à traumatism (traumatismo), no sentido mais subjetivo de uma lesão ou ferida que nos machuca, nos perturba. Tem algum sentido isso pra ti? Caso sim, fazer esse trampo teve algo de curador?
Faz total sentido! A palavra Throematism veio de outro neologismo. Minha companheira, a Amanda, que criou o Sounds Like Us comigo, é psicanalista e um dia ela me mostrou esse neologismo, criado pelo psicanalista Lacan, que ela leu em um livro onde ele juntava as palavras “trou” (buraco, em francês), e “traumatisme” (traumatismo). A sonoridade de “trou” e Throe são muito próximas e aí quando ela me disse isso, já apontando a semelhança entre as palavras, me veio a ideia de formar essa outra palavra juntando Throe e “matism” e batizar o disco dessa forma. Foi bem louco porque foi como poder nomear aquele lugar “sem nome” que comentei no início da entrevista e essa nova palavra representava muito o sentimento dolorido do disco e aí amarrou toda a ideia. Mas não sei te dizer se o disco me curou de algo. Acho que é um processo e ele é parte disso.

Sabendo que tu és um cara ligado às artes: quais referências teve pra criação desse novo registro? Não apenas da música, mas do cinema, da literatura ou seja do que for. Que discos estava ouvindo, que filmes te tocaram, que leituras te causaram inquietação a ponto de talvez terem se refletido nos quatro temas do álbum?
Não sei se foram referências diretas, mas dois livros que eu gostei bastante foi o “Unknown Pleasures”, sobre o Joy Division, da coleção “O Livro do Disco”, da Editora Cobogó; e o “Barbed Wire Kisses”, biografia do Jesus and Mary Chain, da Editora Sapopemba. Acho que foram livros que me pegaram pela coisa da produção, do que você pode experimentar no estúdio e também de que forma uma banda constrói sua identidade sonora e outras coisas mais. Entre os discos, lembro que ouvi muito o “Lost Souls”, do Doves; “To Love is to Live”, da Jehnny Beth; “Ascension”, do Jesu; “Plaguewielder”, do Darkthrone; “Weather Diaries”, do Ride; “Shades of God”, do Paradise Lost… São discos que devem ter esbarrado em “Throematism”, mas eu não saberia te dizer onde isso aconteceu… hahaha.

Tu tens o apoio da Abraxas, selo bacana que tem dado espaço para artistas do underground. Mas, ainda assim, segue na independência. Como percebe esse fazer no submundo, que alegrias e que agruras o músico à margem do mainstream passa?
Não depender de uma gravadora ou de alguém que queira mudar a forma como o Throe deve soar e chegar nas pessoas é uma das partes de ser independente que me agrada. Apesar de ter ganhado mais atenção em certos períodos, a música independente, ou parte dela, sempre esteve à margem e foi nesse circuito que eu aprendi sobre o senso de comunidade na música. Na verdade, acho que isso já tava implícito lá atrás quando comecei a trocar fitas k7. Se eu tivesse um disco em k7 que um amigo não tinha, eu gravava uma fita pra ele e vice-versa. Acho que isso diz muito sobre o quanto não adianta eu ter, o legal é nós termos. Acho que a parte ruim do independente tá muito mais ligada às expectativas em relação ao que é ou não sucesso. E pra mim sucesso é poder me expressar por meio da música e com uma liberdade que não se negocia.

Além de ser músico independente, tu também se dedica ao jornalismo musical alternativo com o nobre Sounds Like Us. Como percebe a importância desses veículos de mídia mais focados no nicho – naquele em que circulamos, ao menos -, que abrem espaço para o que não se vê frequentemente na imprensa tradicional. E pergunto isso porque tu tens essa perspectiva de quem está dos dois lados do balcão.
Obrigado pelo nobre! Eu e a Amanda sempre fomos leitores de mídias de nicho e independentes. Talvez por isso seja inevitável que isso reflita na maneira como a gente direciona o Sounds Like Us e faz com que a gente se preocupe muito mais com a qualidade do que com a quantidade. Mas não por que isso é certo ou errado, mas simplesmente porque escolhemos isso. Como músico e admirador de música, a imprensa independente e de nicho sempre foi muito importante pra mim. O Grito da Rua, Som Pop, Realce que passavam na TV… O próprio Som Pop e o TV Mix que levavam bandas como Garotos Podres, Anthares ou Lobotomia pra tocar ao vivo em TV aberta. Na rádio tinha o Independência ou Morte e o Comando Metal… E as revistas Rock Brigade, Metal, os pôsteres gigantes da Som Três… Esses veículos ajudaram muito na minha formação. Até os álbuns de figurinhas dos anos 80 e começo dos 90, tipo o Rock Attack, Stamp Color, Overdose e Rock Stamp foram uma influência grande pra eu descobrir um monte de banda porque tinha figurinhas de skate e de bandas tipo WASP, Venom, SOD, Uriah Heep, Metal Church, DRI… Tudo isso era fonte pra conhecer novas bandas e saber mais sobre as que a gente curtia. Hoje existem muitos mais selos, podcasts, revistas, zines, programas de rádio web, locais para shows e sites independentes que são resistentes e seguem em atividade, ainda que muitas vezes isso seja uma luta difícil. Eu sou leitor dessas mídias e frequentador desses lugares e acho importante que eles sigam existindo porque são esses veículos e lugares que vão formar novas opiniões, despertar novos gostos, divulgar novas bandas, construir novas memórias e assim criar novas histórias para serem contadas lá na frente.

– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.

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