Entrevista: Constantina festeja 10 anos do álbum “Haveno”

entrevista por Victor de Almeida

Em 2011, os mineiros da banda Constantina lançaram “Haveno”, seu quarto álbum de estúdio. Um disco que, sem dúvida, é divisor de águas na trajetória da banda. Esse marco não se deve apenas pela projeção que a banda teve dentro e fora do cenário independente do Brasil na década de 2010, das excursões com shows pelos Estados Unidos e pela Europa, mas, sobretudo, por uma mudança estética.

Em “Haveno”, a Constantina mesclou às melodias das guitarras – que, desde 2004, guiavam as estruturas das composições dos três primeiros álbuns – elementos percussivos, instrumentos de sopro, camadas e beats eletrônicos em uma sonoridade que destoava do que se ouvia no rock instrumental ou no que se convencionou a chamar de post-rock no Brasil.

Longe das camadas de distorção, delay e reverb que deram cara ao gênero, a crueza e a simplicidade dos arranjos da banda, agora enriquecidos de vibrafone, trompete e de intervenções eletrônicas marcaram a paisagem sonora de “Haveno”. Um disco que dialoga com a calmaria e sofisticação da tradição musical de Minas Gerais, ao mesmo tempo que traz elementos de um experimentalismo sonoro através dos glitches musicais e texturas que compõe as faixas do disco.

Para voltar a esse disco em seu aniversário de 10 anos, com direito a uma versão digital do álbum remasterizada juntamente com uma série de versões inéditas, ao vivo e acústicas, capturadas entre 2012 e 2013 e disponível no Bandcamp da banda (e nos principais portais de streaming), o Scream & Yell conversou com Daniel Nunes, baterista da banda refletindo sobre música e memória. Aqui, memória não diz respeito apenas a uma questão meramente nostálgica, mas também da recordação como revisão da obra e, até, de fazer artístico.

Além disso, falamos sobre os rumos que o grupo tem seguido após o lançamento de “Atrópico” (2019), o processo de repensar sua atuação, mercado da música e como o show deixou de ser um elemento central na produção do Constantina, que agora assume compromissos semanais em um programa de assinatura mensal junto a fãs por meio da plataforma Apoia.se.

Estamos em 2021. Acho que tem um quê de simbólico celebrar 10 anos de “Haveno”, mas para quem não conhece ou não acompanhou a banda durante esse tempo, esse é o quarto disco de vocês. Seis anos depois do “Constantina”, primeiro álbum. O que levou a banda a pensar uma reedição e uma comemoração para esse disco? O que o ciclo de “Haveno” significa?
Acho que a primeira coisa que poderia dizer é que essa comemoração não se restringe apenas ao aniversário do álbum, mas também à existência desse grupo de pessoas. “Haveno” remete a isso, a um momento de descobertas. Da vida… Como foi um álbum que nos provocou muitos deslocamentos, acabou sendo natural chegar em 2021 e o Bruno (Nunes, guitarra) nos recordar que em setembro o álbum faria 10 anos. Nesse sentido, o sentimento de “descobertas” e “deslocamentos” nos fez olhar para a época e efetivamente (re)descobrir materiais que não tínhamos dado muita atenção. Rever isso significa nos escutar ontem para entender o porquê estamos fazendo a música de hoje, que é completamente distinta da música feita há 10 anos.

Revisitar “Haveno” dez anos depois me leva a pensar o caminho da banda até esse disco. Se a gente pega o primeiro (2005), o “Jaburu” (2006) e o “Hola, Amigos” (2008) é possível notar um certo caminho sendo trilhado. Sem dúvida, em termos de sonoridade, “Haveno” é um momento de mudança de rumos e de uma certa ruptura para o Constantina, né? Olhando para trás, o que esse momento de concepção e composição do álbum significou para a trajetória da banda? Como foi sair do quarteto de “Hola, Amigos” e chegar num septeto para esse disco?
Realmente tivemos uma ruptura em “Haveno”. A entrada de Tulio, Lucas, Thiago e Gustavo trouxe novas perspectivas e referências que até então não faziam parte do coletivo. Lembro que Tulio escutava muito Hermeto Pascoal… Sempre! Isso de alguma maneira nos influenciou ao longo dos nossos encontros. Além de referências, todos eles trouxeram novas sonoridades. Tulio levou adiante a história do vibrafone e percussão, Lucas efetivou um desejo antigo do trompete. Gustavo com suas melodias e rítmicas muito peculiares na guitarra. Thiago no contrabaixo construindo harmonias e rítmicas muito desafiadoras para mim, pois meio que estávamos ali juntos, baixo e bateria. E com essa entrada deles as energias acabaram se renovando também. Estávamos ali há alguns anos, eu, Bruno e André e ter novos sentidos e vontades fez com que esse processo fosse tão proveitoso.

“Haveno” é um disco que teve muitos desdobramentos, né? As faixas instrumentais ganharam muito com a colaboração de outros compositores em “Pacífico” (2012). Colaborações que nasceram para o palco viraram um segundo disco ou, melhor, uma continuação, se dá para dizer assim. Compositores como Franny Glass (Uruguai), Matéria Prima (MG), Wado (AL) compuseram letras e deram um outro colorido para “Haveno”. Essa ideia de algo meio “em processo” já era uma questão para vocês? O que esses intercâmbios trouxeram para a banda?
Na verdade, eu nuca me debrucei sobre isso. Mas olhando hoje acho que “Pacífico” foi mais uma ressonância de tudo que foi vivido no período do “Haveno”. Estávamos abertos aos encontros com pessoas que traziam novas perspectivas. O “Pacífico” acabou sendo uma espécie de eco das propostas que realizamos no festival que organizo em Belo Horizonte, “Pequenas Sessões”. Como promovíamos intercâmbios sempre abertos a experimentações, a voz também foi um dos elementos que decidimos experimentar em 2011. Os intercâmbios nos fizeram sair do lugar comum, né!? Amplificaram sonoridades. Nos fizeram entender que podíamos visitar outros territórios sonoros. Navegar outros mares e chegar a lugares que anos antes nos pareciam ser impossíveis. Isso foi muito legal, pois abriu possibilidades de tocarmos para públicos que jamais chegaríamos. Mas sobretudo, fez com que tivéssemos amigos para a vida! Este para mim é o principal aspecto.

Eu sempre achei que o Constantina sempre teve um modo muito particular de trabalhar memória. Não que isso tenha a ver com nostalgia, mas, talvez, um modo interessante de olhar para o passado com outra perspectiva, anos depois. Isso me veio a cabeça quando comprei “Jaburu”, na época lançado pela Peligro. De como vocês retrabalharam músicas e passagens que ficaram de fora do primeiro disco para transformar em algo “novo”. Coisa que também aconteceu em “Pelicano” (2014) e “Codorna” (2017). Faz sentido? O que você pensa sobre? Qual o lugar da memória na música e nos processos de composição de vocês?
Acho que concordo. Esta é uma excelente pergunta. Difícil de ser respondida. Ao citar a memória e todos esses álbuns me recordei de uma passagem de Walter Benjamin que diz: “a maneira como a percepção humana se organiza, o meio no qual ela é alcançada, é determinada não só pela natureza humana, mas também por circunstâncias históricas”. Todos os álbuns citados partem de momentos que foram registrados muito antes de serem lançados. Registro e lançamento não são contemporâneos. Acontece que muitos desses registros só foram absorvidos e aceitos após anos de escuta. Nesse sentido, a memória enquanto arquivo conduziu parte do nosso processo, guardando os fonogramas em arquivos digitais. Por outro nos deparamos com a ideia de memória enquanto recordar… “Voltar a viver”, ruptura de uma temporalidade que era linear, mas que em determinados momentos pôde ser ressignificada. Esses momentos ganharam outros contornos, renovaram nossas percepções aproximando, de alguma maneira, o passado ao presente e nos apontando sentidos que antes não eram percebidos. Esses discos de alguma maneira nos ressoam dessa maneira.

Além de um material ao vivo, a edição nova de “Haveno” vem com uma faixa bônus. Essa nova música é da época ou composição nova? Teve algum episódio que você queira compartilhar sobre esse exercício de revisitar esse material para ser lançado? Como se deu esses processos de escolha?
Essa faixa bônus foi feita logo em seguida ao lançamento do álbum. Para mim, o processo de selecionar o material foi um movimento bem legal. Revisitar as coisas que se fez há muito tempo denuncia muito como pensávamos. Nos mostra que hoje já não estamos no mesmo lugar, apesar de sermos a “mesma” banda. E isso é muito legal porque esse exercício me perceber a potência do que estamos fazendo hoje. As músicas que foram lançadas (ao vivo e acústicas) foram escolhidas por tratarem de registros que temos carinho e consideramos ter uma boa qualidade para compartilharmos com o público. Temos muitas gravações dessa época de “Haveno”, mas com qualidade que não considero ser legal para compartilhamento. Talvez existam notas e esboços que tenham de ficar apenas com a gente.

Dez anos atrás, o mercado de shows e festivais independentes estava em um momento de expansão, embora se mostrasse desde aquela época profundamente desigual. Acho também que deve ter sido a época que vocês mais tocaram em Minas Gerais e fora. Como alguém que se manteve tocando e trabalhando como produtor em várias edições do festival Pequenas Sessões, que diferenças você enxerga em relação a hoje em dia? Os desafios mudaram? O que ter significa “ter uma banda” e “produzir um festival” mais de 10 anos depois?
Para mim a maior transformação é sempre saber escutar o coração. Porque muitas vezes ele é agitado, pulsa, faz a gente sair demasiado do lugar. Nesse sentido nossas cabeças foram transformando, assim como nossas sonoridades. O festival foi transformado e ganhou novas direções, curadorias, apesar de achar que o sentido permanece o mesmo, claro, um pouco mais cansado. Mas ainda feito com cuidado. Acho que para mim este é o ponto. Continuar fazer com cuidado o que nos propusemos e sermos surpreendidos a cada material criado. A cada edição, álbum… Bom, não sei se logramos, mas é o que nos conduz. Olhando os desafios, sinto que o maior deles é continuar fazendo e sentindo-se bem com isso.

Se não me engano, a banda teve duas experiências excursionando pelos Estados Unidos e uma pela Europa, correto? O que essas experiências agregaram para a banda? Mesmo tendo circulado fora, acredito que o Constantina não chegou a circular tanto no Brasil. É um desejo ainda para o pós-pandemia? O show ao vivo ainda é uma questão central para vocês?
Duas excursões nos Estados Unidos e uma na Europa (o diário da última foi publicado no Scream & Yell). Confesso que não temos planos para um retorno aos palcos. Acho que o show deixou de ser um ponto central que conduz a banda faz um bom tempo. Talvez pensar em criações como as que estamos elaborando hoje seja algo mais pulsante para nós no momento.

Interessante você mencionar que os shows não são mais um ponto central para o Constantina. Durante muito tempo, ficamos muito centrados na importância do show na carreira do artista. Se até os anos 90, fazíamos shows para divulgar discos, nos anos 2000 – com o desenvolvimento do mercado musical digital – fazemos discos para vender novos shows, novas turnês. O que esse foco em outras coisas que não a performance musical ao vivo diz para vocês sobre o momento do Constantina?
Diz que já estamos velhos. (risos) À parte disso, sinto que o desejo é fazer músicas e compartilhar da maneira como for. Pode ser show, streaming, programa de assinatura mensal etc. Sinto que deixa de ser show porque acho que já não nos ajustamos a algumas condições que acredito serem mais presentes para grupos como o nosso. Para mim já não há possibilidade de realizar show sem termos um mínimo suporte. nesse sentido, ao vislumbrar o território que estamos, compreendo que nossas circunstâncias para shows será bem menos efetiva em nosso dia a dia do que estar em um pequeno quarto ou sala compondo um novo material. Mas, claro, que ainda acredito que o show ainda seja o principal meio de difusão da música.

Apesar de serem uma banda com uma certa estrada, me parece muito interessante os caminhos que o Constantina tem trilhado nos últimos anos. Apesar de terem um público considerável nas redes sociais, de uns tempos para cá vocês têm investido bastante em conteúdo gerado para assinantes por meio da plataforma Apoia.se. Em tempos que falamos tanto sobre problemas de remuneração das plataformas digitais de streaming e das filtragens de conteúdos feito pelos algoritmos das redes sociais, qual o lugar de iniciativas como essas? Como tem sido a experiência? Essa troca com um público reduzido que paga pelo conteúdo que vocês têm produzido com exclusividades tem transformado o modo a banda funciona? Isso foi algum reflexo da pandemia para a banda?
Outro dia conversava com meu irmão Bruno sobre isso. Como demoramos para tanto tempo para fazer isso? A experiência é bem interessante. Ainda estamos aprendendo e entendendo constantemente como dar seguimento a esse programa de assinatura mensal. É um aprendizado cotidiano e também um desafio, por nos colocar em uma relação efetiva de trabalho coletivo. É realmente uma mixagem de várias coisas. A pandemia de alguma maneira potencializou essa ideia, mas acho que de alguma maneira ela já estava, só que não tínhamos levado adiante. O estado de silêncio vivido em 2020 nos fez movimentar em direção a ela de maneira a colocá-la no ar. Para mim, a mudança surgiu quando tive que voltar a pensar quase cotidianamente na coisa toda, pois a maneira como estabelecemos o programa nos solicita um trabalho constante. Isso mudou. Sinto que antes disso estávamos menos presentes cotidianamente no Constantina. Eu entendo que é um trabalho entre os outros trabalhos que tenho em meu dia a dia. Nesse sentido ele precisa ser exercido em algum momento do meu dia. Assim como estou fazendo agora ao redigir estas linhas.

Essa sua resposta me fez pensar em algumas coisas. A primeira delas de certa maneira tem a ver com as redes sociais e plataformas de streaming, mas principalmente a centralidade que o algoritmo tem na filtragem dos conteúdos que produzimos, né? Às vezes, vemos que temos algumas centenas ou alguns milhares de seguidores, mas muito dificilmente conseguimos falar com todo mundo. Pelo menos não de forma direta. Vocês acreditam que em tempos de tanta valorização dos números de seguidores, o trabalho com audiências menores e fidelizadas pode ser um caminho para bandas independentes?
Faz tempo que acredito nos microterritórios como uma das possibilidades de um presente e futuro para a música de pequeno mercado. Nessas pequenas cartografias, encontramos aspectos positivos e negativos e o importante é ter a sensibilidade para navegar em distintos contextos. Vislumbrar as possibilidades de um macroterritório mas jamais deixar de lado os microterritórios, pois estes são parte do cotidiano de um pequeno/médio grupo. E é aí que habita o programa de assinatura mensal. Ele é parte desse nosso cotidiano que acaba atravessando um público bastante reduzido, mas que em contraponto tem gerado parte significativa do sustento cotidiano do grupo.

Por falar em pandemia, como vocês tem lidado com esse período? Apesar da edição virtual do Pequenas Sessões de 2021, vocês não participaram como banda, né? Como tem sido esses últimos dois anos para o Constantina?
Durante esse período nos dedicamos ao programa de assinatura mensal e a exercitar alguns registros remotos que estão gerando um novo, inspirador e lindo material. Nos debruçamos também sobre essa comemoração de 10 anos do “Haveno”. Mas estamos lentos, mas ainda em caminhada.

Em 2019, no final do ano, já ouvíamos falar de COVID-19 quando saiu a edição em vinil de “Atrópico” (2019). Sei que está tudo muito em suspenso agora, mesmo que as coisas tenham algum indicativo de melhora. Mas existe algum plano ou alguma perspectiva para a banda de agora em diante? Existe algo que continua motivando vocês a produzir e pensar para frente?
O que consigo elaborar hoje é realizar a manutenção do programa de assinatura mensal. Isso é o que consigo elaborar hoje aqui, mas as coisas estão em constante movimento. Por vezes é necessário aprender a escutar o silêncio, por mais que seja angustiante.

– Victor de Almeida (@Victoranpires) é jornalista, Doutor em Comunicação pela UFPE e professor da Universidade Federal de Alagoas. Autor dos livros “Além do Pós-Rock” (2015) e “Circuitos Urbanos e Palcos Midiáticos” (2017). 

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