Entrevista: Roger Deff fala de hip hop e de seu segundo álbum, “Pra Romper Fronteiras”

entrevista por Bruno Lisboa

Após o lançamento do ótimo “Etnografia Suburbana”, em 2019, Roger Deff volta à cena com “Pra Romper Fronteiras” (2021), seu segundo disco solo. Mas muito se engana quem acha que o rapper mineiro não esteve na ativa na pandemia. Em 2020, Deff se dedicou aos trabalhos em parcerias estabelecendo conexões com artistas de universos musicais distintos, a exemplo do single “Reflexões do Isolamento”, produzido em parceria com o músico Barulhista e o remix “Pro Combate”, com a participação do DJ Hamilton Jr e produção do Poliphônicos.

Pra Romper Fronteiras” é, segundo Roger, uma homenagem à cultura hip hop, em suas bases conceituais, mantendo as críticas sociais que são inerentes ao seu fazer artístico. Com artes desenvolvidas pelo grafiteiro e ilustrador Binho Barreto, musicalmente o álbum presta homenagem a “era de ouro do rap” ao unir as linguagens ligadas ao jazz, ao soul e ao rap.

Composto por oito faixas, o álbum foi produzido e gravado por Sérgio Giffoni e Fernando Macaco. No hall das participações especiais constam as presenças de Sérgio Pererê, Michelle Oliveira e os DJs Flávio Machado e Hamilton Júnior. O poeta e ensaísta belo horizontino Flávio Boave aparece como co-autor da música “A Pior Pobreza”.

Na entrevista abaixo, Roger Deff fala sobre a sua entrada no universo da cultura hip hop, a sua verve como pesquisador universitário, o rap (seu legado e evolução), o auge vivido pelo gênero em terras brasileiras, o processo de composição e gravação do novo álbum, planos futuros e muito mais. Confira.

Dando continuidade ao papo que tivemos a época do seu disco anterior, “Etnografia Suburbana”, gostaria de saber como se dera a sua entrada no universo da cultura hip hop. E em que momento você se identificou como MC?
Primeiro, é uma satisfação bater esse papo com você, e dar continuidade àquela conversa. Vamos lá… Minha entrada no universo das rimas se deu nos anos 90. Várias coisas contribuíram para que eu quisesse ser um MC. A afinidade pela música que rolava nos bailes, como Afrika Bambaataa e Soul Sonic Force, Kraftwerk… E veio também o rap brasileiro, e artistas como Gabriel o Pensador, Racionais, Thaíde e DJ Hum, Gog, Câmbio Negro, Black Soul e Retrato Radical (os dois últimos de BH) foram a minha porta de entrada neste universo. Eu procurava formas de me expressar e, mesmo muito tímido, encontrei no rap este lugar. Foi uma escolha que mudou minha vida de várias formas, não só no sentido de me tornar um artista, mas foi o que me deu noção de cidadania, de que a cidade também me pertencia, o que não é pouca coisa vindo do contexto de um jovem negro da periferia de Belo Horizonte. Isso abriu minha cabeça para outras possibilidades, me tornei jornalista por ter me tornado MC antes, e hoje pesquiso um pouco da história do hip hop de Belo Horizonte no mestrado.

Ainda falando sobre sua pesquisa a quantas anda este projeto? Qual o recorte você adotou para o mesmo?
Então, estou pesquisando sobre o BH Canta e Dança, que foi um evento realizado na Praça da Estação, centro de BH, por quase uma década, por pessoas como MC Pelé, Flávio Pereira, Dulcineia do Carmo e DJ a Coisa, referências desta construção. Estudar este evento me permite analisar os primeiros dias do hip hop por aqui, que teve início em 1983. Parto deste evento para apresentar toda uma cadeia produtiva do hip hop naquele momento, e falo da ocupação do centro da cidade a partir da arte produzida por pessoas oriundas da periferia, negras em sua maioria.

O rap, enquanto manifestação cultural / artística, celebrou recentemente 50 anos de história. Como pesquisador, como você vê a evolução do gênero? Acredita que as promessas de outrora se concretizaram na atualidade?
O rap é hoje um dos gêneros musicais mais relevantes do planeta, tanto por sua presença em todos os territórios, quanto por sua capacidade de agregar influências diversas para a sua construção. No Brasil o rap alcançou um status inimaginável há anos atrás, com reconhecimento do seu papel cultural e artístico, a exemplo da trajetória do Racionais, com discos que hoje figuram em qualquer lista séria de clássicos da música brasileira, Emicida reconhecido por seu papel como intelectual e referência para toda uma geração… Então eu digo isso pra pontuar que essa música, que não era considerada “música” por alguns círculos há anos atrás, foi além do que qualquer um poderia prever. Não quer dizer que as coisas estejam resolvidas, ainda há muito preconceito, há toda uma produção que permanece ignorada pela grande mídia, mas o fato é que o rap, assim como o funk, anda com as próprias pernas, sem precisar de qualquer aval.

Falando sobre a cena brasileira atual é impressionante observar os números alcançados em redes como Spotify e Youtube por vários artistas atuais como César MC, Matuê, Djonga (só para citar alguns exemplos). Mas acredito que estes números não consigam dar a real dimensão do momento que rap vive no país. Você acredita que, talvez, este seja o melhor momento que o gênero vive por estas bandas?
Não tenho dúvidas de que este seja o melhor momento do rap no Brasil em anos. Djonga, Fabrício FBC (ambos de BH) e o César MC (de Vitória/ES) ultrapassam as nossas fronteiras e chegam a outros públicos de uma forma que não era possível antes. O Renegado, que é um cara da minha geração, alcançou espaços notáveis também. BH sempre teve uma cena de rap muito rica, mas é marcante o que estes nomes que citei alcançaram em termo de visibilidade. Belo Horizonte é hoje reconhecida como um dos polos do rap no Brasil.

Já entrando um pouco no universo do novo disco, na faixa “Um MC” você presta homenagem aos mestres de cerimônias de ontem e de hoje. Analisando o cenário atual como você vê a figura quase onipresente do MC que está presente em diversas manifestações culturais, indo além da esfera do rap?
O MC tornou-se a referência de maior visibilidade no hip hop e vem ocupando papeis múltiplos. Vejo o MC como um griot moderno, alguém que narra as histórias, registra pontos de vista, de maneira oral.

Seu novo disco, “Pra Romper Fronteiras”, soa, para mim, como um disco irmão do anterior, mas com personalidade própria, que tem uma sonoridade mais orgânica, tendo a tida “era de ouro do rap” (90’s) como referência. Como foi o processo de composição e gravação do álbum?
Engraçado que eu não tinha pensado no novo álbum (“Pra Romper Fronteiras”) como um irmão do “Etnografia Suburbana”, mas essas características que você citou são pertinentes e são conexões reais que dão unidade aos dois trabalhos. O Boombap, o jazz, os elementos orgânicos, tudo isso está neste trabalho. Este novo tem mais características do Boombap que o anterior, porque o “Etnografia” é um álbum 100% orgânico, tudo foi tocado, e neste novo trabalho há elementos programados, embora tenham instrumentos também. Acho que isso é algo que está se tornando minha assinatura sonora, porque são características musicais que me agradam, muito baseado nos discos que ouvi e ouço (The Pharcyde, Guru, Digable Planets…). O processo de composição foi meio solitário, foquei muito no desenvolvimento da minha escrita e tentei refletir este momento que pra mim é de muita reflexão, até por isso é um disco que traz letras mais contemplativas, mais introspectivas de uma forma geral. Por conta da pandemia gravei as vozes em casa, com recursos mais simples. O processo de produção todo feito à distância, com o Sérgio Giffoni e o Fernando Macaco criando as bases do estúdio e enviando pra mim, e eu devolvia as vozes para que eles finalizassem. Então criamos tudo dessa forma. Eu dando as referências de como imaginava as músicas, e eles desenvolvendo lá. As participações também foram gravadas a partir das suas casas ou estúdios. Foi um trabalho que nasceu praticamente sem que nos encontrássemos para criá-lo, mas é o que foi possível para o momento. Gostei do resultado, embora prefira a produção em que conseguimos interagir presencialmente.

No time de convidados você trouxe de volta parcerias firmadas no disco anterior (DJ Flávio Machado e Michelle Oliveira), mas promove novos encontros, como é percebido na luminosa participação do grande Sergio Pererê na faixa “Conexões”. Qual a importância em se estabelecer diálogos no seu fazer artístico?
Acho que os diálogos são essenciais para que a gente evolua, não só artisticamente, mas como seres humanos também. Essa troca com o Sérgio Pererê foi muito bonita, é um artista que admiro muito e um amigo com quem eu já queria fazer um trabalho há tempos. Ele conseguiu trazer algo de espiritual para a música, que é uma característica muito forte nele. Eu apresentei uma ideia e ele criou algo que fez o tema crescer muito. Enfim, fiquei muito feliz por fazer essa música com ele. Destaco também os trabalhos do Sérgio Giffoni e do Fernando Macaco, que trouxeram outros olhares para o disco, respeitando minha identidade, mas acrescentando muito com a visão deles. Ainda falando sobre as participações, veio também o DJ Hamilton Jr, que é um velho parceiro do início do Julgamento. Trazê-lo reforça essa conexão com as bases do Hip Hop, na figura do DJ, e é uma pessoa que esteve comigo no começo de tudo também. As capas, dos singles e do álbum, foram assinadas pelo Binho Barreto, que traduziu de forma gráfico essa atmosfera mais clássica do hip hop, que ganhou reforço através da linguagem do grafitti.

Habitualmente você promove um olhar para o quotidiano para escrever suas rimas, numa ótica pessoal e pontual. Quais foram as motivações / inspirações você alimentou para escrever este álbum?
Com certeza o disco reflete muito do que a gente vive hoje. Inevitavelmente, falo deste momento em que a gente vive o caos, num país à deriva nas mãos de um governo negacionista em plena pandemia, da violência instaurada pelo racismo, do ataque à diversidade, de uma censura que se coloca de forma cada vez menos sutil, da falta de acesso à informação, à uma vida digna. Tudo isso está lá, mas também quis falar daquilo que é potência, então falo do hip hop, do que ele significa pra gente também. Em “Um MC”, por exemplo, eu quis retratar o processo de descoberta dessa cultura pra mim, desta arte, e de como isso me transformou, de um jovem acuado a alguém que acreditava poder fazer parte das soluções, ou pelo menos contribuir para que as coisas melhorassem de alguma maneira. Em “Conexões” que assino junto com o Sérgio Pererê, falo sobre como estamos todos ligados uns aos outros, de como não existe um sem o coletivo. A música “Que Ilumina” é uma homenagem à minha tia avó, dona Luzia, que era minha mãe, amiga, avó, enfim. Ela realizou sua passagem para o outro plano em 2020 e eu precisava registrar a importância que ela tem pra gente em versos. São vários os temas e vivências que influenciam as letras deste álbum, e o que une as faixas, como temática, é uma atitude ou narrativas que vem da própria vivência no Hip Hop. Costumo dizer que este trabalho é uma declaração de amor a tudo o que essa cultura significa.

Com álbum novo na praça quais são os planos futuros? Com o mercado das apresentações musicais em aquecimento está nos planos um volta aos palcos em breve?
Há planos para uma apresentação presencial, com público reduzido, dentro dos protocolos, para celebrar o disco. Mas não posso dizer muita coisa ainda. A vontade de voltar aos palcos é grande. É essencial poder dialogar diretamente com as pessoas através da música.

– Bruno Lisboa  é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.

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