HQs: A dupla Michelinie-McFarlane brilha no primeiro Marvel Omnibus do Homem-Aranha lançado no Brasil

texto por Leonardo Tissot

“A vida cotidiana é um troço bem complexo”, costumava dizer Harvey Pekar. Embora detestasse super-heróis, o quadrinista underground e criador de “American Splendor” talvez apreciasse alguns elementos das histórias do Homem-Aranha, se desse uma chance para elas.

Nas mais de 800 páginas de histórias do primeiro Marvel Omnibus (série de edições de grande formato publicada pela Marvel Comics) do herói lançado no Brasil, a vida de recém-casados de Peter Parker e Mary Jane Watson ganha tanto destaque quanto as piruetas do aracnídeo pelos arranha-céus de Nova Iorque. Tretas imobiliárias, falta de grana e até transições de carreira fazem parte das tramas escritas pelo roteirista David Michelinie e desenhadas pelo artista Todd McFarlane.

Com aventuras lançadas nos Estados Unidos em um período de aproximadamente dois anos (de 1988 até o comecinho de 1990) e publicadas no Brasil pela editora Abril Jovem entre 1992 e 1993, o omnibus “Homem-Aranha por David Michelinie e Todd McFarlane” é um prazer para fãs das antigas e uma oportunidade para novos leitores conhecerem a fundo uma fase marcante do cabeça de teia.

Pouco após o casamento de Peter e MJ (em “Amazing Spider-Man Annual 21“), o artista Todd McFarlane — ainda um iniciante na profissão, vindo de uma experiência curta na DC Comics e de uma temporada no gibi do Incrível Hulk — juntou-se à equipe da tradicional “Amazing Spider-Man”, sendo o responsável pela arte da edição comemorativa de número 300 da publicação iniciada por Stan Lee e Steve Ditko 25 anos antes.

Após um “aquecimento” nos números 298 e 299, o desenhista — que mais tarde deixaria a Marvel para fundar a Image Comics, criaria o popular personagem Spawn, faria clipes de Korn e Pearl Jam e se tornaria multimilionário com a McFarlane Toys, entre outros empreendimentos — deixou sua marca logo de cara: ao lado de Michelinie, criou Venom, um dos mais mortais inimigos do Aranha, e fez o herói voltar a usar seu clássico uniforme vermelho e azul, após alguns anos vestindo preto. Mais do que isso, McFarlane renovou o visual de Peter e, principalmente, MJ, transformando sua cabeleira ruiva e trazendo mais movimento e sensualidade à personagem.

Seu traço se tornou o novo padrão do aracnídeo por muitos anos — olhos grandes, teia mais detalhada e cenários sujos, em uma abordagem que, pela primeira vez, rompia com o estilo criado por Ditko (e aprimorado por nomes como John Romita, Sal Buscema e Ross Andru ao longo das décadas). Neste omnibus, a arte de McFarlane em Amazing Spider-Man finalmente pode ser apreciada como se deve, já que as edições brasileiras originais saíram em formatinho e papel comum nos anos 90, e agora ganham uma caprichada republicação em formato americano e papel especial.

É como se os personagens realmente pulassem da página, fruto de um trabalho não apenas de ilustração, mas também de diagramação, com quadros em formatos pouco comuns para a época, que aceleravam a narrativa e davam dinamismo às histórias. Já a quantidade absurda de teias em volta do personagem explica por que Peter estava sempre com a conta bancária no negativo.

O lançamento dá aos leitores antigos a oportunidade de vivenciar o dia a dia de Peter Parker sob um novo olhar: se na época em que as histórias saíram o grande barato era curtir o Aranha enfrentando vilões clássicos como o Lagarto e o Duende Verde, ou ver o herói trabalhando ao lado de Silver Sable e do Capitão América, hoje o que mais chama a atenção são os perrengues financeiros, a busca por sair da vida de fotógrafo freelancer e voltar a trabalhar como cientista, e até algumas oportunidades de bicos heroicos remunerados que aparecem pelo caminho. A vida de casado e falta de grana ganham destaque nas histórias.

E é aí que surge a força de Mary Jane na vida de Peter. Como o próprio Michelinie escreve em texto publicado ao final do volume, havia dúvidas sobre a ideia de ver a rotina de marido e mulher nas páginas da HQ. Mas é justamente a união e a cumplicidade entre os dois que tornam a dinâmica interessante.

É claro que dificuldades surgem e o casal passa por situações que abalam a relação, mas o casamento não corre riscos. Mesmo quando o clichê dos clichês aparece — o sequestro de Mary Jane por um admirador obcecado, Jonathan Caesar — é ela mesma que resolve a situação. Outro ponto para Michelinie.

Se o casamento de Peter e MJ parecia indestrutível, o mesmo não se pode dizer da união entre roteirista e desenhista que criavam suas histórias. O grande sucesso da série na época foi, justamente, o que acabou desfazendo a parceria entre Michelinie e McFarlane. O desenhista — ambicioso — sentia a necessidade de ter mais liberdade para criar, e conseguiu uma publicação do Aranha exclusiva para ele: a revista Spider-Man estreou em 1990 com uma aventura escrita e ilustrada por Todd, “Tormento”, um fenômeno de vendas (não incluída neste omnibus).

Apesar do impacto visual das páginas, que traziam um ar mais dark às histórias do aracnídeo, com o uniforme rasgado, muito sangue e sofrimento — dizem que a ideia original de McFarlane era que Peter perdesse um braço em suas lutas com o Lagarto, o que teria sido vetado pelos editores da Marvel —, a crítica e os fãs não apreciaram os talentos do desenhista como escritor.

De fato, embora a nova revista impressionasse pela arte, os roteiros de McFarlane eram confusos ou simplesmente sem sentido — pareciam uma desculpa para colocar o Aranha em situações-limite ou para desenhá-lo em páginas estouradas e posições ainda não exploradas anteriormente.

Em 1991, McFarlane saiu da Marvel e fundou a Image Comics ao lado de outros nomes de peso como Jim Lee, Erik Larsen e Rob Liefeld. No entanto, sua marca na história do Homem-Aranha ficaria para sempre e, mais de 30 anos depois, novas gerações de leitores de quadrinhos ainda vêm descobrindo e admirando uma das fases mais divertidas da trajetória do escalador de paredes.

– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo

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