Entrevista: “Manda notícias”, pede andre L.R. mendes

entrevista por Leonardo Vinhas 

Manda notícias”, pede andre L.R. mendes na faixa-título do seu novo disco. Uma expressão que vai adquirindo significados diferentes conforme a pandemia avança. Antes, em meio ao isolamento, era um pedido para manter contato. Hoje, com boa parte da população ignorando as medidas de segurança sanitárias apesar de mais de 200 mil mortos, é quase uma súplica para saber se a pessoa está viva. Mas o músico e compositor baiano consegue tratar esse pedido com delicadeza e esperança, qualidades que permeiam quase todo o álbum e que andam em falta no dia a dia dessa década sinistra.

“Manda Notícias”, o álbum, foi lançado no final de 2020. É o sexto “disco cheio” de mendes e o primeiro desde 2016, quando lançou “Todas as Cores”. Como na maior parte de sua carreira solo, foi inteiramente feito por ele, da composição à produção. Porém, há uma novidade gritante: o preciosismo ao lapidar as canções, que não aparecia muito desde “Amor Atlântico”.

Não é uma fala leviana: nessa entrevista ao Scream & Yell, andre L. R. mendes conta que realmente usava a primeira ideia que se apresentava para a canção, sem dedicar atenção a explorar mais possibilidades da composição. Isso fazia com que algumas faixas de seus discos fossem mais promessas de boas canções do que, efetivamente, boas canções. Como já se disse, não é o caso aqui, já que “Manda Notícias” apresenta peças mais finamente delineadas, além de um refinamento de detalhes inaudito até então.

Das oito faixas, só uma (“Mana,…”) não havia sido apresentada previamente como single. Porém, ouvidas em conjunto, há uma unidade expressa principalmente nos arranjos e no clima geral das faixas, que mesmo quando inspiradas por raiva, sarcasmo ou solidão, não deixam o astral nem o potencial pop cair.

Por e-mail, andre L.R. mendes respondeu às perguntas do Scream & Yell, que cuidaram também de perguntar sobre a breve volta da Maria Bacana em 2018 e algumas questões inescapáveis no Brasil da insensibilidade e do “pode-quem-grita-mais-alto”. Mas venha tranquilo, que a conversa é sensível e sem berros. mendes, felizmente, não compactua com esse Brasil.

“Manda Notícias” pode ser dissociado do isolamento da Covid-19, ou é um disco que teria sido feito da forma que foi mesmo sem o confinamento?
Tentei fugir do rótulo de “meu disco da pandemia”. Acredito que, assim que esse momento histórico passar, as obras intrinsicamente ligadas a ele vão passar um tempo “no limbo” porque o que todos nós vamos querer é simplesmente seguir em frente, e não ficar lembrando esse tempo de dificuldades. Assim, tentei dar uma boa variada nos temas do álbum, mas assim… Até em musicas como “Teu Doce”, que é uma vassalagem amorosa, tem um traço desse momento: virou uma vassalagem amorosa em tempos de hiperconvivência, entre duas pessoas que estão isoladas, mas uma em companhia da outra. “Agora que o mundo é só nós dois”, como diz uma frase da letra, sabe? Então, por mais que eu tenha tentado deliberadamente fugir do tema “isolamento” em algumas dessas canções, ele está lá, subentendido, em diversos pontos do álbum. Ou, respondendo preto no branco: não, não existiria o disco da forma como ele é, sem o isolamento da pandemia.

O disco tem uma síntese que seus discos anteriores não tinham. Eu sinto que os anteriores tinham uma coisa mais solta, de não burilar tanto a ideia, não extrair tudo o que podia ser extraído da composição. Uma certa… autoindulgência, talvez? Esse já soa bem mais formatado, com arranjos mais trabalhados, mais detalhes. O que mudou?
Eu acho que o termo “autoindulgência” cai como uma luva pra minha produção até a parada que dei após o disco “Todas as Cores” (2016), que foi quando dei uma pausa pra compor e gravar o segundo disco da Maria Bacana. Vou explicar por quê eu concordo com o termo: eu tinha uma forma de lidar com a composição na qual eu escrevia a letra e depois a musicava, e então não mudava uma vírgula. Achava um demérito retrabalhar a letra, tinha um purismo do tipo “essa é a ideia original e nada vai superá-la por ser a mais real, orgânica”. E isso mudou ra-di-cal-men-te pra mim enquanto compositor! Hoje a primeira ideia de texto é mexida, remexida, mexida outra vez e mais um pouco. Eu fiquei tão exigente que, por exemplo, a faixa-título já estava distribuída pras plataformas de streaming, faltavam alguns dias pra estreia, mas eu quis mudar uma frase e regravei a voz, remasterizei o arquivo e substitui o que já estava pra ser lançado! (risos) Hoje estou quase obsessivo em deixar a canção o melhor que eu puder. Além do que, aprendi a usar melhor a ferramenta que tenho, que é o Ipad (nota: desde 2014 mendes grava todos os seus discos solistas no tablet), e enfim “separar” meu eu compositor do eu produtor. São momentos bem diferentes da linha de trabalho: quando estou compondo, quero ser o mais genuíno que eu puder, e também buscar a beleza nas soluções líricas. Mas quando estou produzindo, o que mais quero é “embalar” a ideia e torná-la o mais agradável possível de ouvir pra todo mundo que tenha acesso a ela.

E o que significa tornar uma canção mais acessível? Existe um “limite de acessibilidade”?
Eu não penso nem crio só pra quem tem o mesmo background pra apreciação de música que eu. Quero que minha música seja compreendida por todo mundo, sem elitismo. Aliás, eu acho que, hoje em dia, a música “inteligente” está “inteligente demais”, só se comunicando com nichos de iniciados. Por outro lado, a música popular(esca) está cada vez mais tiktoker… Eu não quero nem um caminho nem outro pra mim: quero fazer canções bonitas e artisticamente consistentes, mas que todo mundo possa apreciar.

“Desabafo” é uma canção muito forte, mais ainda que o título sugere. A quem a raiva dela é destinada?
A raiva é completamente destinada ao “mito” Essa música foi composta num momento de muita raiva, logo depois do pronunciamento em rede nacional em que o rastejante ser que muito infelizmente ocupa a cadeira presidencial, no meio de uma peste altamente transmissível, pedia pro povo “viver a vida normalmente” que a covid “seria uma gripezinha”. Foi um ato de extrema irresponsabilidade, desumanidade explícita, um dos muitos atos obscurantistas, negacionistas e psicopatas desse sujeito. Foram tantos crimes de responsabilidade nesse período que espero vê-los julgados em tribunais nacionais ou internacionais. Isso ajudou muita gente a desacreditar da gravidade do vírus, e consequentemente se infectar e passar o vírus pra frente… Hoje (9 de janeiro, data dessa entrevista) já passamos de 200 mil mortos no país. O negacionismo e a irresponsabilidade do “mito”, seu governo e seus apoiadores, têm fundamental culpa em parte dessas mortes e famílias enlutadas.

Temos também “Insubmissão aos Urubus”, uma canção bastante direta em seus alvos. Mas acho que cabe perguntar: para além dos urubus que vemos todos os dias nos noticiários, quem são os farejadores de carniça entre os artistas? Existem urubus dentro do próprio meio artístico?
Os urubus hoje tem dominado a cena nacional, né? Em todos os âmbitos sociais. Parece que quem tem papel proeminente, com raras exceções, pode se encaixar nessa designação de “urubu”, que dou a quem nega os valores humanistas. No meio artístico – que, no caso deles, de arte não tem nada…é somente “indústria cultural” – não tem nada que seja tão representante desse momento obscurantista quanto o sertanejo agronegócio. É o fundo do poço da música brasileira, trilha sonora perfeita pra esse triste momento nacional.

Você também é artista plástico, uma atividade que demanda certa solidão. Também compõe e grava sozinho. Qual o espaço para a criação coletiva na sua vida hoje? Ou não há esse espaço?
Tem um mantra em minha vida já há um tempo que é o “faça você mesmo”. Eu adoro ter essa liberdade de começar e terminar projetos no meu tempo e visão. Eu acho que eu trabalho meio como um escritor: sozinho, pensando o tempo todo no objeto artístico que estou criando. Não fecho as portas pra uma criação coletiva que possa vir no futuro, mas o normal é meu norte ser esse caminho “solo” no sentido mais radical da palavra.

A Maria Bacana se reformou para mais um disco, mas a repercussão foi menor do que vocês esperavam. Se não te incomodar, gostaria que você falasse um pouco sobre esse processo – o constante pedido das pessoas por vocês voltarem e, quando a volta acontece, não ter a adesão esperada. Todo o processo da banda já havia sido muito doloroso na primeira encarnação dela, e imagino que essa volta tenha mexido com muita coisa.
Sabe que, pra mim, não teve surpresa alguma? Eu tinha a exata noção do que a Maria Bacana representava. Vinte anos depois de “roçar” o sucesso, eu sabia que pouca gente realmente se importaria com essa volta. Isso inclusive gerou algum atrito na condução do projeto do segundo disco, porque os outros caras da banda (o baixista Lelê Martins e o baterista Marcello Medeiros) estavam afastados do meio artístico durante muito tempo, e achavam que o tamanho da banda se manteria inalterado mesmo com o hiato. Eu, já ligado na memória curta da enorme maioria das pessoas e no poder de descarte da informação, sabia que o interesse seria restrito. Por outro lado, foi uma experiência de grande importância em nossas vidas, porque o final da banda, que se deu aos poucos no final dos anos 1990 e início dos 2000, deixava um gosto suspenso. Era uma história mal resolvida que teve, finalmente, um desfecho com o segundo disco. Por perceber tudo isso, eu curti muito cada ensaio, cada show, cada dia de gravação, porque sabia se tratar de um bônus feliz na nossa história, uma forma de terminá-la positivamente. Eu sabia que [a volta] não ia durar muito, porque somos, à despeito de uma química artística muito boa, disfuncionais enquanto grupo de trabalho. Mas ficou um disco pelo qual tenho muito carinho, “A Vida Boa Que Tem os Dias Que Brincam Leves”.

Com um 2021 começando sem muitas definições de vacina, um governo genocida e insensível, a ausência de espaços para mostrar a arte, é imprescindível perguntar: o que você espera para esse ano? E o que você já está planejando fazer para que sua expectativa se concretize?
Eu já comecei os trabalhos de 2021 no dia 2 de janeiro! Comecei a gravar meu próximo disco. A ideia é dar continuidade ao trabalho, tentar fazer diferente do que já fiz, tentar fazer melhor. Eu sou dono da minha cadeia de produção, aprendi a fazer da canção ao clipe, e essa liberdade artística do “faça você mesmo” vai continuar me guiando. Enquanto não estivermos vacinados vou fazer shows online. Quando estivermos vacinados, vou utilizar essa reinvenção imposta pelas lives de me apresentar sozinho, com voz e guitarra. Virou mais um elemento “faça você mesmo” na minha carreira, que vai permitir levar o meu show mais facilmente pro maior número de lugares. A música é meu trabalho e não existe vontade de tirar férias…muito, muito pelo contrário!

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. Foto de Cintia M.

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