Entrevista – Pitty: “NADA substitui a experiência de um show ao vivo”

entrevista por Bruno Lisboa

Na luta dentro do cenário underground desde 1998, quando fazia parte do grupo de hardcore Inkoma, Pitty conseguiu nas duas últimas décadas desbravar o terreno machista do rock nacional. E o árduo trabalho recompensado hoje a coloca numa cômoda posição de ícone e referência para artistas de ontem e de hoje. Mas muito se engana quem acha que isto faça com que ela esteja em uma zona de conforto.

Movida pela inquietude, a cantora baiana segue trabalhando constantemente, mesmo no período da pandemia. Prova disso é que Pitty lançou recentemente a compilação “Video Trackz” onde, de maneira artesanal, produziu (com a ajuda do editor/ diretor Otavio Sousa) vídeos caseiros para cada das faixas de “Matriz” (2019), seu mais recente trabalho. Não obstante, ela agora mantém um canal na Twitch.tv, o qual alimenta semanalmente com conteúdos inéditos.

Nesta (segunda) conversa com o Scream & Yell, Pitty fala sobre inquietude artística, o processo de criação de “Video Trackz”, o retorno às raízes de “Matriz”, música e politização, o exercício da maternidade, exposição midiática, a parceria com a gravadora Deck, a luta por espaço num cenário musical machista e desequilibrado, a sua participação no programa “Saia Justa”, a arte em tempos de pandemia e muito mais. Confira!

Em entrevista aqui mesmo para o S&Y (em 2010) você declarou ser uma pessoa inquieta. Nesse sentido, como você tem lidado com estes tempos de isolamento social?
A inquietude, que é interna, continua. Tanto é que acabei até produzindo mais do que imaginava nesse período, e isso sem forçar nada, apenas porque foram surgindo vontades. Outras inquietudes referentes à idade, estágio de vida, essas vão mudando com a maturidade e as experiências. Ser mãe dá uma bela mudada no aspecto impaciência. Mas considero inquietude uma outra coisa de forma geral: é uma vontade de sempre caminhar, descobrir, ir adiante. É prezar mais pelo trajeto do que pelo final.

Acredito que o “VídeoTracks” tenha nascido justamente para sanar esta necessidade de estar em movimento. Como foi o processo criação deste projeto?
Pois é, exatamente. Eu queria continuar falando sobre meu último disco, “Matriz”. A gente estava numa fase super especial, turnê bombando, shows lotados, ótima repercussão do disco… e aí veio a pandemia. Fiquei a fim de produzir algo que reavivasse a história contada no álbum, pelo sentimento de que o assunto ainda não havia se encerrado. Pensei no conceito do ‘do it yourself’, do isolamento, de usar o espaço e equipamentos à mão para criar micro vídeos para cada faixa. Escrevi pequenos roteiros baseados na sensação de cada música e fui me filmando. Pensando em texturas, cores, uma coisa mais sinestésica mesmo. O desafio da auto filmagem, o uso de recursos acessíveis, tudo isso estava no plano. Aprendi bastante, e me arrisquei também, sem muita pretensão. E aí fui mandando o (material) bruto para Otavio Sousa que editou e fez a finalização. A ideia era mesmo criar uma minissérie onde cada música é um capítulo do “Matriz”, com começo, meio e fim. Fiz pensando na linguagem de Stories, e depois compilei tudo para um vídeo só que está no Youtube.

“Matriz” foi lançado há pouco mais de um ano. Nesse disco você promove um retorno às suas raízes. Para muitas pessoas, olhar para trás é um exercício hercúleo, assombroso, e para outras é um ato necessário para a evolução pessoal. Como foi para você lidar com este retrospecto?
Foi um chamado que veio nesse momento. Quando vi, eu estava nessa situação reflexiva. Não saudosista, mas um olhar crítico e uma análise sobre essa vivência. O que ficou, o que passou, o que está presente e que eu nunca tinha reconhecido de fato… usando o exemplo que você deu, sinto como um passo de evolução pessoal. Autoconhecimento, que apesar de singular, se volta, em resultado, para o coletivo. Porque é o disco que tem mais participações, parcerias e interferências externas. Inclusive de outros estilos musicais. É um disco amplo em termos de cores e cheiros, mas fiel à uma essência, à um chão. Eu fui me deixando levar por esse processo, sem querer guiá-lo. Fui indo, fui indo, e quando vi estava mergulhada nessa Bahia que me pariu, provavelmente não a que as pessoas conhecem do cartão postal, mas a terra-mãe mesmo. E deixei rolar, e pintar os sons que tivessem de pintar, sem ficar viajando no que eu deveria ser. Só sendo e sentindo. Psicanálise das brabas, bicho (risos).

Faixas como “Bicho Solto” e “Noite Inteira” mostram uma Pitty politizada, postura essa que você adotou por toda carreira. Mas recentemente você postou no Twitter sobre ser uma ANTIFA e isto lhe causou uma enorme série de ataques por parte da oposição Bolsonarista, que não entende que você sempre defendeu pautas progressistas. Em tempos reacionários, se posicionar contra ao fascismo é um exercício essencial?
Com certeza. Isso sempre esteve presente no meu som, postura, falas e ações. Mas parece que tem uma pá de gente que agora está se dando conta do que significa. E tem também um monte de gente que absolutamente não sabe o que quer dizer ser antifascista, que recebe informações truncadas da tia do zap, cards com frases que Churchill nunca disse, isso que a gente tem visto aí. Uma desinformação geral, que, apoiada pelo viés de confirmação, se propagava loucamente. O fato de algumas pessoas demonizarem a luta antifascista, antirracista, ou qualquer movimento pró democracia e contra preconceitos e discriminação é algo incompreensível pra mim.

Seu mais novo single, “Submersa”, é uma ode à maternidade e ao puerpério. Nesta faixa, você, de forma geral, desaromatiza a função de ser mãe, expondo as dificuldades inerentes a este exercício de grande responsabilidade. Nesse sentido, o quão transformadora é esta fase?
Profundamente transformadora. É um rito de passagem muito importante nesse jogo da vida. Deixar de ser filha para ser mãe, ver o ciclo se completar, ter uma relação com alguém que não é você, mas vem de você, é muito doido e lindo. Cada fase tem sua dor e delícia, e para cada uma pode ser diferente. Esse começo, para mim, foi de muita reflexão, um sentimento de solidão mesmo cercada de apoio, muito cansaço físico; e aí as mudanças corporais também, o se reconhecer num novo corpo, numa nova pele.

Tempos atrás uma foto publicada em suas redes sociais com a Madalena, sua filha, causou uma enorme comoção do público e da imprensa. Mas em contrapartida você tem apostado em ser mais discreta quanto a exposição dela, postura esta que tenho tentado seguir com os meus filhos também, por mais difícil que isto seja. Como figura pública, é dificultoso lidar com o fato de que as pessoas acham que a sua vida tenha que ser um livro aberto?
É, mas acho que quem tem que dar esse limite é a gente mesmo. É assim em tudo na vida, né? Em todas as relações. Temos que refletir e escolher o que achamos melhor pra nossa vida – e claro, não sem arcar com bônus e ônus dessas escolhas. Eu botei na balança e sempre senti que preservar essa parte diz respeito não só a mim, mas às pessoas que convivem comigo. Ninguém é obrigado (risos). E nesse caso, é principalmente respeitar a privacidade de um ser humano que ainda não tem como escolher se quer ou não aparecer. Uma vez que postou, já era, fica ali pra sempre. E se um dia ela não curtir, se sentir invadida? Prefiro deixar que ela escolha, um dia: os registros e as lembranças estarão aqui se ela quiser compartilhar. Para além disso, mesmo antes da maternidade, minha vida privada sempre foi algo preservado. Acho bom assim para não bagunçar as fronteiras entre o que é meu e o que é público, que é minha arte. Eu não sou de ninguém além de mim mesma. E também acho que fortalece a arte em detrimento da persona, quebra um pouco a objetificação, mantém na cabeça das pessoas espaço para imaginação sobre o artista.

Como você contou, a turnê “Matriz” foi interrompida devido à pandemia. A gente viu o show no Scream & Yell e nele você apostou em novos formatos ao dividi-la em duas etapas (antes e após lançamento do disco) e na criação do projeto “Palco Aberto”, onde você realizou uma curadoria para selecionar bandas de abertura. O quão desafiadora foram estas apresentações?
Ambas foram bastante desafiadoras, por serem inéditas pra mim. Nunca tinha passado por nenhum desses formatos, mas a graça é essa mesmo: ir inventando novos jeitos de fazer. Foi muito interessante esse processo coletivo de criar estando no palco, e poder compartilhar esboços, sentir a reação das pessoas para uma canção absolutamente inédita. E depois, quando veio o disco e turnê “Matriz” foi montada de fato, foi como um encontro com algo que tínhamos construído. Os shows estavam sendo muito, muito especiais. Essa turnê foi montada de forma muito cuidadosa e detalhada, com uma história sendo contada ali. Viajo nessa coisa de roteiro, de espetáculo meio como era montado mais das antigas. Depois o show virou uma coisa que a banda sobe lá, toca as músicas, com a luz piscando desenfreadamente e pronto. Tudo bem também, tudo tem seu contexto. Mas eu tinha vontade de montar uma mistura de peça com show – sem texto, sem dramaturgia – mas com momentos marcados e distintos, com mudança de clima, de luz, de cenário. Isso rolou em “Matriz”. E aí veio essa maledeta pandemia. O Palco Aberto também foi um lance que me deixou muito realizada como artista, como contribuinte para a cena. Sempre pensei num projeto que pudesse trazer visibilidade para artistas novos. Eu estive nesse lugar e sei o quanto é difícil às vezes simplesmente ter um palco pra tocar. Oportunidade de mostrar o som, de tocar pra uma galera, de exercer seu potencial. Era isso que eu queria com o projeto: mostrar o potencial de artistas diversos pelo país todo. E foi lindo! A cada cidade, uma descoberta. Envolver o público nesse processo era requisito primordial pra mim: quem faz a cena é o público. Trazer essa responsa de cada um de nós de alimentar e fomentar os artistas da nossa cidade. Eu sei porque vim de Salvador, muita gente fica de olho nas bandas de fora e nem percebe que ali no bar do lado tem uma banda massa tocando. Contei também com a curadoria do Tony (Aiex), do TMDQA, porque achava importante unir público e crítica. Chegar nesse consenso. E priorizei, nos resultados, artistas e bandas femininas pra equilibrar esse espaço que já é tão masculino.

Assisti recentemente ao documentário “Tudo Pela Música” (2019), que conta a trajetória de 20 anos da gravadora Deck. Acredito que durante a sua carreira você deve ter recebido inúmeras propostas para que assinasse com uma major, mas você optou por continuar apostando num selo independente. A que se deve esta escolha?
Principalmente ao fato de priorizar a liberdade artística e criativa. Eu sabia que numa major eu podia ter mais grana, mas não tinha certeza se conseguiria manter as coisas do jeito que acredito artisticamente. E, também, sabia que estaria competindo com artistas mais populares, e nessa hora a prioridade é quem vende mais, quem está na modinha. Eu não queria ficar refém disso. E encontrei na Deck o ambiente ideal para continuar criando livremente, sem demanda externa, gravando e lançando quando tenho vontade – leia-se, quando vem a inspiração e se faz um disco ou o que o valha! Ali tenho parceria para minhas experiências artísticas mais inusitadas e arriscadas, desde bolar o VideoTracks até fazer remixes, ou o que seja. O que importa é a arte e o amor à música. Nada é mais importante pra mim do que isso.

Acredito que o seu sucesso como cantora e compositora, num país onde o machismo se faz presente em várias esferas, abriu um precedente para que houvesse uma maior presença feminina no cenário musical como vemos hoje. Você acredita nessa afirmação? E, se sim, você sente algum peso em ser uma referência por gerações?
Eu acredito que sim, mas acho que faço parte de um movimento que vem rolando. Pensando em quando lancei meu primeiro disco era realmente um negócio bem exótico ter uma roqueira e ainda por cima baiana – vai vendo! – toda pelo avesso, a bichinha. (risos) Mas as coisas foram mudando, os debates e a lutas sobre direitos das mulheres foram se intensificando, ganhando força e complexidade. E isso tem por maravilhosa consequência mais representatividade. Há que se continuar, pois a balança ainda não está equilibrada…

Num Brasil cada vez mais dividido você acredita que suas canções e a sua postura podem contribuir para um debate franco sobre pautas que estão em voga na atualidade?
Poxa, espero humildemente que sim. Estamos aí pra somar, pra contribuir, pra aprender. Eu adoro trocar. Às vezes eu penso que mais que cantora/ compositora, eu sou mesmo é uma comunicadora. Esse lance de ter uma web Tv na Switch tem me mostrado muito isso também.

Há três temporadas você apresenta o “Saia Justa” junto a Astrid Fontenelle, Mônica Martelli e a Gaby Amarantos. No programa vocês discutem temas variados e que são pertinentes a contemporaneidade. O quão libertador é poder falar semanalmente, de forma aberta, sobre temas que são tidos como tabus para uma boa parcela da sociedade?
É maravilhoso, enriquecedor porque aprendo muito a cada semana. E libertador por poder expor ideias, refletir, discordar também. Rapaz, eu estava pensando outro dia que boca eu já tinha, só me faltava o trombone! (risos)

Um pergunta que sempre faço neste período é que pandemia tem sido um período de grande reflexão em várias esferas da sociedade. A classe artística, por sua vez, tem sofrido arduamente devido a impossibilidade de realizar apresentações que, geralmente, são a principal fonte de renda. As lives (patrocinadas ou não), via Instagram ou Twitch, tem surgido com uma alternativa para os artistas manterem contato com o público. Você acredita que este formato veio pra ficar, mesmo após a pandemia? Qual seria o futuro da música daqui pra frente?
Pense numa pergunta difícil, meu amigo. Tem hora que eu acho que geral vai dar uma saturada desse lance digital. Que quando a pandemia passar a gente vai sair na rua abraçando todo mundo feito doido, dando mosh em show, o escambau. E às vezes eu penso que isso vai demorar a beça e que as pessoas vão passar por um período de ficar meio cabreiro de gente também. Sabe? Um medo, um descostume desse troço de se encontrar. De qualquer jeito, essas alternativas digitais que a gente tem agora para acesso à arte, cultura, entretenimento, são fantásticas. Estão salvando o rolê, mesmo. E acho que muito disso vai ficar, simplesmente porque a gente descobriu que também dá pra fazer várias coisas em casa se quiser. Muitos tipos de trabalho, entrevista, vídeos, será que também a gente não rodava demais, gastava gasolina demais, poluía demais? Gastava tempo demais no trânsito? Acho que vai rolar repensar isso tudo. Mas: nada, e em caps pra valorizar, NADA substitui a experiência de um show ao vivo.

– Bruno Lisboa  é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.

One thought on “Entrevista – Pitty: “NADA substitui a experiência de um show ao vivo”

  1. Eu acho uma pena como a Pitty olha hoje pro seu início de carreira, a única fase realmente relevante. Mal toca e quando toca é só “Equalize” da vida e olhe lá. Fora que destroi os hits da época com versõeszinhas sarau cirandeiro com voz, violão e piano. É aquele clichê que parece que todo mundo que faz rock cai depois dos 40 anos. Acha que guitarra é coisa de adolescente, crescer é tocar MPB. Triste.

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