Entrevista: Ricardo Alexandre

entrevista por Leonardo Vinhas 

Dois livros lançados ao mesmo tempo, dialogando entre si. Não, o jornalista e escritor Ricardo Alexandre não fez o equivalente literário de “Use Your Illusion”, o megalomaníaco par de álbuns duplos do Guns ‘n’ Roses. “Tudo É Música” e “Nem Tudo É Música”, ambos publicados pela Arquipélago Editorial, são coletâneas de textos do autor que, em sua maioria, já haviam sido publicados em seus blogs nos portais MSN e R7, além de algumas reportagens incluídas nas muitas revistas que ele trabalhou, como BIZZ, Trip e a efêmera revista do Fantástico (sim, o programa dominical da Rede Globo).

Apesar dessas exceções “reporteiras”, ambos os livros trazem o lado mais articulista do autor, até então inédito em seus livros anteriores: “Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos Anos 80” (2002), “Nem Vem que Não Tem: A Vida e o Veneno de Wilson Simonal” (2009) e “Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar” (2013). OK, este último misturava suas memórias a pensatas e dados jornalísticos, e tem uma ligação mais próxima em linguagem e, de certa forma, temática com esses dois novos projetos. “De certa forma”, porque “Cheguei Bem a Tempo…” já traz, ainda que mais discretamente, reflexões sobre a vacuidade da busca pela fama, a espiritualidade no meio da arte, a negação do pensamento crítico no ambiente das redes sociais e a desvalorização da música numa era em que ela é abundantemente presente – todos temas esmiuçados com mais profundidade nesses novos livros.

Muitos desses tópicos foram retomados e ampliados, ou vistos por outro viés, nessa entrevista, realizada na primeira quinzena de maio de 2019. E por conta dessa conversa, na qual falamos também sobre a embromação disfarçada de verniz literário (ruim), não será gasto tempo dando mais detalhes sobre a carreira do entrevistado, já que a informação pode ser facilmente conhecida em seu site, tampouco descrevendo a confeitaria jundiaiense onde a entrevista aconteceu (porque, francamente, não importa). A conversa é boa, então pegue seu doce e seu café onde quiser, e se junte a ela.

No “Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar”, você aconselha os repórteres a não se colocarem em papeis, como o “indie”, o “crítico impiedoso” etc. Mas nesses dois livros, está claro que você assumiu um papel, que é o de falar sobre o mundo de uma ótica cristã sem fazer proselitismo cristão. Isso não contradiz um pouco seu próprio conselho?
Tem duas formas de responder isso e espero que ambas sejam honestas. A primeira é que esses dois livros reúnem pela primeira vez um trabalho de articulismo, que é diferente de todos os trabalhos que fiz antes e mesmo dos que fiz depois. Nesse trabalho, me parece importante que o articulista se coloque como um provocador, um estimulador, a partir do seu ponto de vista subjetivo e particular. Pela primeira vez eu me dei ao direito de desempenhar esse papel. Nesse episódio do livro anterior, eu estava evidentemente falando para repórteres, e meu conselho, “não se deixe rotular”, era para o desempenho dessa função, porque isso será um abreviador da carreira, um encurtador do campo de ação. Por isso, acho que essas duas realidades não se contrariam, aparentemente. A outra forma de responder essa pergunta é dizer do meu entendimento de espiritualidade, que é o de um atributo humano tão… (hesita) tão claro quanto a materialidade. Nesse sentido, acho que sempre fiz isso. Quando você faz a crítica de um disco ou faz um jornalismo que não é baseado em métricas objetivas, você está sendo espiritual. Quando o Gay Talese diz que há realidades que não são quantificáveis, isso é espiritualidade. Quando um sanfoneiro diz: “quando olhei a terra ardendo qual fogueira de São João, eu perguntei a Deus do Céu porque tamanha judiação”, isso é espiritualidade. Quando você diz que um artista novo é mais interessante que aquele que lota o Carnegie Hall e que está no topo das paradas, você está falando de uma realidade não quantificável, e isso é espiritualidade. Penso que sempre fiz isso, porque uma das funções desse jornalismo de rock é olhar para a produção artística por um viés que não é o hit parade nem o da celebridade, é acreditar que há outras discussões possíveis ali. É curioso porque eu estava falando com o Liminha, e ele me disse que não estaria presente (na reunião dos Mutantes) porque a Rita [Lee] não estaria, e para ele Mutantes são Arnaldo [Baptista], Sérgio [Dias] e Rita. Eu disse que, do ponto de vista da lógica, isso não faz nenhum sentido, porque ele é parte daquilo, é autor de parte do repertório. Mas do ponto de vista espiritual, não-material, faz todo o sentido, e é uma coisa linda alguém acreditar nisso. E isso sempre esteve no meu radar.

O que me chama a atenção nessa postura, especialmente a questão cristã, é que não é a mais popular nem a mais comumente encontrada no universo do jornalismo cultural. Dentro desse universo – caprichemos nas aspas – “intelectual” brasileiro, o cristianismo é até mesmo mal visto. Você, por outro lado, desde o começo da carreira assumiu essa postura. Em algum momento, essa condição de “peça rara” te deixou em posição desagradável?
Falando de articulismo, especialmente no período da campanha eleitoral de 2014, com a ascensão da Marina Silva como potencial presidente da República, havia muita discussão sobre o papel da igreja, desse contingente chamado “evangélico”, e isso sempre me incomodou muito. Como você mesmo disse, há muito pouca gente na imprensa que tem uma visão de dentro desse universo, e pouca gente com uma visão crítica. Eu distingo com muita facilidade o que é religião e o que é espiritualidade. Muito embora eu use da religião como ferramenta para minha disciplina, há um esforço para distinguir uma coisa da outra. E eu comecei a ver esse sentimento religioso se espalhando para todas as relações. A forma como as pessoas abraçaram o Bolsonaro é totalmente religiosa. A forma como as pessoas abraçaram o “Lula livre” é completamente religiosa. É dogmático, divisionista. É um perigo! E eu comecei a acreditar que, com uma tribuna de artigos, eu era uma das poucas pessoas que podia olhar aquilo com uma experiência real de dentro da instituição organizada, e que essa seria uma das formas com a qual eu poderia contribuir para o debate, por vários motivos. E um deles é minha visão crítica, e vejo isso com muita naturalidade, porque Jesus era muito crítico da religião. Inclusive os vilões do Novo Testamento são os religiosos. Por isso não vejo contradição nisso. Mas também porque vi essa postura religiosa ser transferida para outros departamentos da sociedade como se fosse uma boa troca, e não era. Na verdade, as pessoas estavam trocando a má religião por outras más religiões. Como diz o Peter Hitchens, a alternativa à má religião é a boa religião. Mas sim, já passei por várias experiências de desprezo por conta disso. E tudo bem, eu acho que as pessoas são preconceituosas, cara. Todos somos preconceituosos. Eu luto contra isso tudo dia, para que eu seja menos preconceituoso. Mas voltando um pouco, eu acho curioso notar que até os anos 60, fazia parte da civilização ocidental o conhecimento da religião. Era uma coisa cool. Você pega, por exemplo, o especial de Natal do Charlie Brown (“A Charlie Brown Christmas”, de 1965) em que tem aquela cena final com o Linus explicando o sentido do Natal, aquela frase era um atestado da erudição do Linus em relação aos demais personagens (nota: o personagem cita Lucas 2: 8-14, para explicar a razão de ser da celebração). Fazia parte da formação da pessoa conhecer os fundamentos do manejo da sociedade ocidental, que é a religião judaico-cristã. Mas as pessoas começam a fechar os olhos para o lado espiritual, o que eu considero um erro! A espiritualidade é um atributo humano, e quando a gente fala em desumanidade, na verdade estamos querendo dizer “ausência de um entendimento espiritual”. Quando a gente diz que tem um presidente que é desumano, é porque ele só entende o mundo por números e cifras, ou por meio do seu preconceito, da sua impiedade. E isso é o que a gente chama de uma visão não-espiritual. A ausência da discussão pública da espiritualidade nos deixa nas mãos ou de uma racionalidade fria ou da superstição. Quando eu vejo nossos ministros e nosso presidente falando, eles me parecem pessoas bastante supersticiosas e bastante aguerridas a dogmas, ocupação de espaços, conquistas religiosas. Não tem nada a ver com espiritualidade. E acho que isso deveria ser trazido dentro da discussão pública, como respeito, como um elemento a mais.

E do outro lado: no universo da igreja, que você frequenta, você também passa longe da ortodoxia. Muitos dos seus artigos questionam pesadamente o mercado gospel, por outro lado você diz que o cristianismo é a coisa mais rock’n’roll dos dias atuais, pensando que a vivência da mensagem altruísta de Jesus é o oposto completo da sociedade atual. E a própria crítica a pastores e televangelistas. Isso não te rendeu problemas junto a igreja?
(pausa longa) Na verdade, é assim: eu nunca tive compromisso com o universo religioso. Talvez se eu fosse uma figura com um trânsito… Eu preciso dizer isso com cuidado: se eu fosse uma pessoa com algum papel no universo religioso, talvez isso me trouxesse algum tipo de cobrança. Mas escolhi lá atrás não tê-lo. Primeiro porque nunca me senti chamado para um papel no ambiente eclesiástico, ou paraeclesiástico. Respeito quem foi, quem é chamado, mas eu mesmo nunca me senti assim. Por outro lado, eu achava que estar envolvido nesse universo diminuiria meu espaço de influência e de manobra. Nunca me interessei por isso de fato: seja pelo mercado gospel, seja pelo jornalismo cristão ou por revistas de nicho ou mesmo por papeis dentro da estrutura organizacional da igreja… (longa pausa). Por outro lado, eu faço parte de uma comunidade que não é semelhante… (hesita) eu to indo bem devagarzinho, e não como eu normalmente falo, porque tem que tomar cuidado… mas é uma comunidade peculiar em relação ao que se entende por igreja evangélica brasileira. É uma comunidade onde se valoriza o trânsito de ideias, o fórum de debates, a informação. Eu não quero com isso dizer que é uma comunidade mais ou menos cristã que outras, até porque uma das marcas do cristianismo é justamente o acolhimento. A espiritualidade segundo Jesus ter sido tão inclusiva é a grande marca do cristianismo histórico, e o preço a se pagar por isso é essa grande confusão que a gente vê até hoje. Mas é o preço a se pagar justamente pela inclusão. Respondi? (risos)

Ambos os livros são de artigos, mas há reportagens nos dois. Uma delas é a matéria de capa que você fez para a última Bizz, a que cobria a turnê dos Los Hermanos antes da primeira “pausa” anunciada. Outras são uma para a Trip sobre as novas formas de emprego e um perfil do Caco Barcellos. A do Los Hermanos tem uma carga simbólica forte, e no texto introdutório você explica claramente por quê a escolheu. Mas e as outras?
Porque… (ri) Primeiro porque a matéria sobre o trabalho para a Trip era bastante editorializada. Embora houvesse dados e aspas, era bastante editorializada. A do Caco Barcellos foi uma onde aprendi muito sobre jornalismo e sobre comunicação, que são temas que atravessam os dois livros, era quase bastidores desses temas. E eu nunca tinha publicado essa do Caco na íntegra em papel. Seria, então, uma forma de reunir o melhor do meu trabalho não publicado em livro. Eu cheguei a cogitar incluir alguma coisa do meu trabalho no Estadão no começo dos anos 1990, mas confesso que não gostei de quase nada do que eu li. Achei tudo muito datado e mal escrito. Achei que fazia sentido falar do século XXI.

Quase todos esses textos do livro estão disponíveis online. Você incluiu textos introdutórios para cada um deles, o que já muda bastante o produto final, mas ainda assim: a quem se dedica um livro impresso, considerando que, como você mesmo coloca, temos hoje uma mentalidade que reza não fazer sentido pagar por nada que se encontra na web.
Eu diria que a maioria esmagadora do livro não está mais disponível na web, e por isso eu quis reuni-los. Os blogs do MSN e do R7 foram perdidos, e comecei a achar isso curioso, porque o espaço da internet é literalmente virtual, então não teria porque fazerem isso com seus ex-blogueiros, mas o fato é que… fizeram. A ideia original era só publicar em e-book, que eles nascessem virtuais e assim morressem. Mas aí houve interesse da editora Arquipélago Editorial e virou livro físico. A piada da capa era por causa da ideia do e-book: eu queria que a pessoa comprasse um livro que só existisse no digital, mas que ele viesse amarelado (risos). No papel, a piada se perde um pouco, mas apesar disso ficou muito charmoso. Acho que eles são uma “biografia paralela” de meus livros de reportagem. A ideia é que eles tivessem o formato o mais paperback possível, que fossem o mais barato possível, para pessoas que acompanham o meu trabalho e têm interesse nesses bastidores do jornalismo. No decorrer da preparação do livro, comecei a ver que havia um sentido: o de propor uma discussão não-raivosa, de que é preciso considerar outros pontos de vista para que a gente se aproxime da verdade ou tenha uma perspectiva civilizada de sociedade. Comecei a ver que todos os textos dos livros falam disso: de lançar outros pontos de vista sobre assuntos que estiveram no noticiário nos últimos anos. Os livros acabaram virando uma peça de resistência sobre isso: de que é gostoso falar sobre música. Que a música não é só um arquivo digital ou uma ferramenta com a qual os artistas fazem campanha pro Doritos. É legal discutir música, e é legal discutir para além do “gosto” e “não gosto”. É possível discutir cultura e política e sociedade e religião sem cair nos clichês. Me incomoda muito, muito, muito mesmo que a gente esteja perdendo a capacidade argumentativa, de articulação de ideias, que as pessoas estejam realmente começando a dialogar a partir de jargões de internet e clichês e emoticons. Eu acho que o livro acabou sendo sobre isso, no final das contas.

São sobre isso, mas não só. Eles tratam de coisas supermateriais por uma ótica espiritual, ou vice-versa. E me parece que, se formos olhar seus livros como uma sequência lógica – o que não são, é mais uma questão de projetos que se apresentam e você vai desenvolvendo – parece que esses dois realmente marcam um momento diferente na sua carreira. Como se o que foi apresentado aqui tivesse uma grande importância para o que virá.
(longa pausa) Interessante isso que você falou. Eu preciso admitir que sou uma pessoa obcecada com a administração de biografia – da minha própria, no caso. Eu adoro a ideia de que os livros possam ficar um do lado do outro na prateleira, e que possam ter mais ou menos o mesmo layout. Me irritava demais bandas que tinham discografias muito dispersas, porque eu achava que os discos deveriam estar identificados pela lombada (risos). Eu gosto de revistas que não ficavam mudando muito de tamanho, odiei quando a Mojo mudou de formato porque ela tornava impura minha prateleira de Mojos. Então eu penso nos meus livros, mas não nesse nível de obsessão que pode parecer. O que aconteceu é que eu tive uma experiência muito gratificante como articulista e eu gostaria de continuar exercendo isso. A questão é que não há espaço para isso: os blogs morreram, não é um espaço que existe ainda. Os livros foram uma maneira de reunir um tipo de trabalho que não vejo perspectiva de retomar, pelo menos não sistematicamente. Eu já estava trabalhando no meu próximo livro, que é um livro-reportagem, e eu achava que era importante fechar esse capítulo de articulismo antes de abrir o próximo. (pausa) Eu não acredito que os próximos serão derivados desse, porque não vejo perspectiva de executar. Eu adoraria receber um convite, especialmente de algum lugar legal, mas os lugares legais estão cada vez menores e mais raros.

Você termina o “Cheguei Bem a Tempo…” falando da alegria que era voltar a ouvir música sem ter a preocupação de pensar nela como um jornalista musical: uma “obrigação”. E que isso era algo que você não queria retomar. Pelo “Tudo É Música”, dá para ver claramente que a promessa não foi cumprida. Qual o papel que a música desempenha hoje para você?
(breve pausa) Ah, central. Acho que a música sempre é um filtro impressionante pra vida. Ela é uma maquete para as discussões importantes da vida. Por isso que a música que não é passível de discussão não me interessa. A música bem executada não me interessa, a não ser nos meus momentos de lazer. Como exercício de pensamento, a música que me leva a pensar, a discutir, é muito melhor. E por ser tão portátil – você não precisa nem de instrumento para fazer música, só precisa estar vivo – é uma coisa muito bela, muito linda. O que acontece é que depois do “Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar”, que é um livro de 2013, eu tive uma experiência na [rádio] 89 FM bastante decorrente daquela discussão do último capítulo do livro. O [André] Forastieri me provocava dizendo que boa parte do que eu fazia era voltado pro passado. Aquilo me incomodou bastante e eu criei um projeto para a 89 voltado exclusivamente para artistas novos, que era o [programa] “Ouve Essa”. O Zeca Camargo chamou de “espaço de resistência” (ri). Mas vi que aquele projeto ia contra um dos valores que eu prezo como profissional da comunicação, que é respeitar o público, e a verdade é que o público não quer banda nova. Por mais que me seja doloroso dizer, porque boa parte do meu caráter foi formado buscando coisas novas (ri), a verdade é que esse público repele bandas novas. Inclusive as bandas novas se repelem. Elas não têm interesse em um espaço para elas próprias. Aconteceu algumas vezes – e sempre conto isso – de algumas bandas novas passarem semanas, meses até, insistindo para que eu tocasse material delas, e depois descobri que elas não ouviam o programa, porque continuavam pedindo depois de eu ter tocado. Chegou ao ponto de eu dizer: “se meu programa não tem importância para você, por que você quer tocar nele?” Será que é só porque ele acha que merece um espaço na rádio? Eu me vi dentro dessa situação, o que me levou ao projeto do “Superbacana”, que é um livro no qual estou trabalhando sobre o período de 1968-1972, quando se tentou criar uma identidade contracultura, de música elétrica, música jovem, rock, com cara definitivamente brasileira. Eu vi que precisava voltar muito no tempo para poder entender e explicar essa história toda. Porque a experiência com o “Ouve Essa” me desestimulou muito.

Ouvir bandas novas é algo que para você exige disciplina ou é natural, hoje em dia?
Acho que pelo fato de eu não estar trabalhando com uma demanda, eu não me imponho essa disciplina, mas ela acaba surgindo de uma maneira natural. Por exemplo, gosto de ouvir rádio, gosto de ouvir a Radio X, e embora ele toque muito midback é impossível você passar horas nela e não ouvir uma música muito boa de um artista que você não conhece. E pop, porque ela é uma rádio pop, mainstream. Eu continuo descobrindo muita coisa boa de ouvir no Brasil, mas vejo muita banda desarticulada do ponto de vista da comunicação. Não tenho essa disciplina, portanto, mas tenho esse interesse. E quando me impus essa disciplina, que foi na época do “Ouve Essa”, foi muito ruim porque fiquei frustrado ao ver o desprezo que os artistas brasileiros têm pelas oportunidades oferecidas a eles. Era mais fácil os artistas gringos repercutirem o programa que os brasileiros. Mas hoje não, hoje tô de boa (risos).

O fato é que a música está cada vez mais irrelevante, ainda que quase onipresente. Como está em toda parte, tem cada vez menos valor, e não só monetário. Isso só vai se intensificar, ou você acha que uma hora a entropia vai se fazer valer e algum fator pode mudar a situação toda?
Eu acho que a gente não pode jamais desprezar um elemento que está longe de ter seus efeitos medidos, que são as redes sociais. Acho que a gente não tem a distância necessária para avaliar o tamanho do mal que as redes sociais têm causado nessa geração. Eu começo a ver alguns pontos de reflexão sobre isso, pessoas saindo das redes sociais porque estão entendendo que é um ambiente insalubre. O que sei é que, quando vejo as manchetes nos jornais, se eu aplicar a seguinte pergunta: “sem as redes sociais, isso sobreviveria?”, a resposta é alarmante. A começar pelo nosso presidente da República. E eu acho que daqui a alguns anos a gente vai olhar para a era das redes sociais como quem olha para o cigarro ou para o refrigerante. “Cara, as crianças davam refrigerante na mamadeira para as crianças”, “cara, em 2019 as pessoas davam redes sociais pras crianças”. Isso é algo claro para mim. E acho que a gente já deixou a fase em que as redes sociais eram um simulacro das relações verdadeiras num ambiente virtual, e entramos em outra fase, na qual as relações reais são baseadas nas relações das redes sociais. As pessoas passam a se comunicar no offline como elas se comunicam no online. Elas começam a raciocinar no offline como elas raciocinam no online. E o online é um lugar de ostentação. (repete) É um lugar de ostentação. Não é um lugar onde você mostra trabalho, e sim mostra opinião. Veja a família Bolsonaro: por que nossa “família real” se importa tanto em ser uma espécie de ombudsman da velha mídia? Por que políticos passam os dias preocupados com as opiniões que eles precisam dar sobre as coisas em vez de trabalhar? Porque é o raciocínio das redes sociais transplantado para o mundo real, no qual mais importante que meu trabalho é minha opinião. E isso vale tanto para o presidente da República quanto para uma banda de rock. Tipo: “eu não tenho trabalho nenhum, eu sou um soulman que canta mal, mas eu tenho opiniões muito relevantes a dar”. Eu acho que isso… Deixa eu avançar um pouquinho nesse raciocínio: acho que isso é a materialização do mundo das redes sociais. E para quem ama música, isso é muito doloroso ver artistas de música que não têm música. E não estou falando só do circuito alternativo lacrador, não. Estou falando da Anitta também. A Anitta é uma artista, uma estrela infinitamente maior que os hits dela.

O mesmo pode ser dito da Pabllo Vittar.
Sim. A Anitta é uma grande estrela, mas não em pé de igualdade com os hits do imaginário popular dela. No nível “Anna Julia” de imaginário popular, no nível “Mulher de Fases” de imaginário popular, no nível “Como Eu Quero” de imaginário popular, a Anitta deve ter dois hits. Três, talvez. Mas ela é uma estrela de primeira grandeza, graças às redes sociais. O número de likes dela é muito maior que os hits. Onde isso nos leva, um mundo onde a música é só um acessório para que o artista consiga vender campanha para a Vivo ou para a Pantene? A relação com marcas sempre existiu, mas o que eu acho muito louco é que um artista engajado, um artista rompedor, completamente breakthrough, com um ano de carreira já esteja fazendo campanha pro Doritos. Eu sou de um tempo em que “uma banda numa propaganda de refrigerantes” era uma vergonha. As bandas tinham orgulho de dizer: “olha, temos 10 anos e nunca vendemos uma música para publicidade”. Por um tempo, o Roberto Carlos tinha orgulho de não vender as músicas dele para a publicidade. Era uma ética implícita. Hoje a impressão que eu tenho é que os artistas já começam com a etiqueta pendurada no pescoço. Como diz o Arnaldo Branco, desde os bluesmen os artistas estão dispostos a vender a alma pro diabo, só que agora a alma tá em promoção (risos).

É música como acessório, né?
Sim, mas acho que alguma coisa aconteceu de uns 10 anos para cá, e eu ainda não sou capaz de medir. Talvez a ascensão do streaming seja algo importante, porque hoje a música não vale nem o tamanho que ela ocupa na memória do seu celular. Hoje você consome música sem saber quem é o autor. Hoje não é que você não consegue ouvir o álbum inteiro você não consegue ouvir uma música inteira. O botão mais usado no Spotify é o “skip” (passar de faixa). Acho que alguma coisa aconteceu no que tange a essa superdesvalorização imaterial da música, algo que não foi totalmente mensurado. O que eu sei é que quando eu era adolescente, ouvir música era um ritual. Lembro-me de duas situações muito recorrentes: uma era de ouvir sozinho, no quarto, no escuro, com fone de ouvido, deitado na posição mais confortável possível, o álbum todo, eventualmente olhando os detalhes do encarte, as letras… Ou coletivamente, com nossos amigos, para deliberar sobre as letras. Por outro lado, a gente começa a ver algumas coisas curiosas. Em alguns lugares do mundo, há lugares, como um bar em Londres, o Spiritland, onde as pessoas se reúnem para ouvir discos coletivamente – com todo o respeito: o bar para de servir, as luzes baixam… A gente vê audições comentadas acontecendo pelo Brasil, e a gente tem essa ressurreição do vinil. (pausa). Não é ressurreição porque o papel do vinil hoje é diferente do que era há 40 anos, porque as pessoas não precisam do vinil para ouvir a música. Mas elas compram, e pagam caro, quase por um compromisso firmado pelo valor da música para a vida deles, como identidade pessoal para elas. Isso é muito bonito, eu acho, e já deixou de ser um mercado diletante para se tornar um mercado de verdade. Eu gostaria de ter mais tempo e condição de observar essas movimentações, mas acho que temos peças muito interessantes posicionadas aí.

E você ouve como hoje? CD, vinil?
Ouço muito CD ainda, é meu formato preferencial. Mas gosto de ouvir vinil em ocasiões especiais, mas de fato não tenho mais aquele momento do ritual, geralmente ouço música fazendo outra coisa: lendo… Aquele tempo focado na música não tem mais – aliás, tempo focado em qualquer coisa, né?

A questão não é a portabilidade, acredito, porque ela sempre existiu. Mais limitada, é verdade: você tinha lá um walkman e algumas fitas, não podia ficar passando por milhares de faixas. Mas já era portátil. Na minha adolescência em Taubaté, tinha um cara que tinha discos importados, um monte de coisa que a gente só ouvia falar na Bizz, ou nem isso. Ele cobrava pra gravar fitas cassete C60 com esses álbuns, e os amigos circulavam entre si as fitas, para fazer cópias e aumentar a “discografia” de cada um. Era uma outra relação com o objeto físico – de compartilhamento, sim, mas bem outra coisa.
Mas em tudo isso que você tá me falando, tá me fazendo pensar em um traço geracional. Tem diminuído a adesão em tudo que exige comprometimento. Quando você precisava escolher uma ou duas fitas cassetes para levar na mochila, você tinha um compromisso com aquilo. Quando viajava para a praia e precisava escolher 10 CDs – porque era o que cabia no seu case – você tinha um compromisso com esses 10 discos. Você tinha um compromisso com a tua rádio. Hoje você não tem compromisso, e tem uma geração que repele compromisso de qualquer natureza, não só musical. Eu penso nisso como um agravante com relação à música. Mas tem outro ponto que estou começando a desconfiar que é: a gente viveu a era da música. É uma das coisas mais dolorosas de pensar, que aquela frase do Caetano, “the age of music is past” (da canção “Nine Out of Ten”) talvez tenha se concretizado. Assim como a gente viveu a “era dos musicais” ou do que foi, a gente pode começar a falar da “era da música”, que é um período entre 1965 e 1995, que é um período em que a música centralizava as pirações comportamentais dos jovens e dos jovens adultos. O documentário sobre a Tower Records (“All Things Must Pass”, de Colin Hanks) me chamou a atenção para isso: ele crava 1968 como o ano em que a indústria substitui o single pelo álbum como formato principal de manifestação do artista – ou seja, o compromisso passa a ser maior. Você tem que desembolsar mais dinheiro. Tem que ouvir até o fim. Tem que aturar muitos fillers (nota: as faixas para “completar” um álbum que tinha não mais que dois ou três bons singles) para se relacionar com a peça de arte. E o mesmo documentário aponta os anos 80 como um momento de decadência, o que é muito estranho para o brasileiro, porque foi a década do rock brasileiro. Mas ele aponta esse período como marcado pelo surgimento de MTV e uma nova geração de artistas marcadamente visuais, que trazem uma nova geração de consumidores para um universo já estabelecido. E uma nova década se anunciaria com o surgimento do CD, nos anos 90, “obriga” toda uma geração a comprar de novo os discos que já tinha. É quando surge a ideia do classic rock, um circuito de revistas como a Mojo, gêneros como o grunge e o britpop, que são os primeiros movimentos da história do rock a serem autorreferentes, a olhar para trás. Então eu acho que, de alguma maneira, a ideia de que houve uma era da música explica muita coisa. Mas é muito triste também, porque a gente ainda opera mentalmente esperando a renovação.

Curioso você falar isso, que recentemente me dei conta de que muitas das bandas novas que tenho ouvido têm formatos velhos, estéticas velhas. Tenho ouvido muito soul, mas caiu a ficha que, mesmo sendo bandas novas, elas não tocam soul dos anos 10, tocam soul dos anos 60.
Sim. Keep the spirit alive. Eles ficam tentando: “lembra da era da música?” As bandas têm esse costume de tentar criar esse vínculo com a era da música, mas um vínculo com um público que não está interessado.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

5 thoughts on “Entrevista: Ricardo Alexandre

  1. Parabéns pela entrevista. Acompanho o trabalho do Ricardo Alexandre há um bom tempo, lia os blogs do IG e R7 e ouvi os especiais que ele fez pra comemorar o aniversário da Rádio Rock. Sempre vale a pena parar para ler seus textos

  2. Um dos textos mais tocantes do Ricardo Alexandre ,foi sobre a morte do Champignon . Realmente ,seus textos sumiram ,mas esse,felizmente, tinha sido reproduzido por outro blog e acabei salvando-o

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