Entrevista: Uganga

entrevista por Paulo Pontes

Mais de 25 anos de carreira, cinco discos de estúdio, um álbum ao vivo gravado na Alemanha e um DVD resumem a carreira do Uganga, banda mineira liderada pelo experiente vocalista Manu Joker. E como o próprio Manu disse no bate papo com o Scream & Yell que você confere abaixo, a banda “segue evoluindo e se adaptando”.

A evolução é nítida no mais recente trabalho dos caras, “Servus”, lançado este ano com apoio da Wacken Foundation, organização alemã sem fins lucrativos idealizada em 2008 pelos produtores do Wacken Open Air, de longe o maior e mais icônico festival de heavy metal do planeta, e também pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PMIC) de Uberlândia.

Além de ser o primeiro disco a contar com três guitarristas na formação da banda, “Servus” vem com muito mais experimentações e nuances que seu antecessor, “Opressor” (2014). O disco conta com participações inusitadas, como a dançarina e cantora pernambucana Flaira Ferro, o músico Luiz Salgado, o grupo chileno de rap Lexico na faixa “Hienas” e o espiritualista Sr. Waldir, entre outros, mostrando a amplitude que a sonoridade do Uganga pode atingir.

Neste bate papo com Manu Joker e o baterista Marco Henriques, falamos sobre os detalhes desta nova fase da banda, as inspirações para as temáticas abordadas nas letras de “Servus” — como, por exemplo, o “governo golpista do vampiro” —, a atual situação política e cultural do Brasil e as diferenças e mudanças vividas por quem está na estrada há tanto tempo. Confira!

“Servus” é o primeiro disco de estúdio do Uganga gravado como sexteto, ou seja, com três guitarristas. Como vocês trabalharam na pré-produção e na produção do disco com esta nova configuração?
Manu Joker – Eu sempre me envolvi na produção dos nossos álbuns e diria que no “Servus” esse envolvimento foi ainda maior. Quando decidimos que a banda seguiria como sexteto, estávamos no início da pré-produção e já nas conversas iniciais a proposta era clara: “Não precisamos de mais uma guitarra fazendo a mesma coisa que as outras”. A ideia foi abrir nosso leque de possibilidades, trabalhar detalhes, novas texturas, ir por outros caminhos… Alguns desses caminhos foram trilhas novas e outras trilhas antigas por onde passamos nos primeiros dias do Uganga. Voltamos a essas trilhas mais experientes. Certas coisas do pós punk, do funk e do rock anos 60-70 e até do doom estão espalhadas no “Servus”, graças a essa abordagem. É claro que em determinadas partes viramos um bloco e tocamos mais colados, afinal, em essência, somos uma banda de rock pesado com muito de thrash metal e a ideia é que as pessoas batam cabeça (risos). Porém, mesmo nessas horas, evitamos nos prender a eventuais regras. O Thiago teve um papel muito importante nesse processo por ser o guitarrista base. Nos momentos mais thrash, em muitas ocasiões, ele toca riffs que colam com as outras duas guitarras e em outros com a cozinha, ou só com a bateria. Isso trouxe mais peso, porém, também trouxe mais groove às composições. O Murcego é um solador por excelência, tem aquela manha do classic rock, de caras como Hendrix ou Ritchie Blackmore, e trouxe isso pro Uganga, fazendo um balanço interessante com a guitarra do Christian, que tem uma pegada mais mão direita, mais anos 90, inclusive nos solos. Mas um disco não vive só de solos, ao menos não um disco do Uganga. Então foi necessário organizar tudo na pré-produção, trabalhar pela composição e não pela execução individual. Em determinadas partes foi necessário simplificar e diversificar, e creio que tive um papel importante nessa hora como produtor, freando um pouco os excessos. A meu ver, no álbum temos três guitarras com personalidades distintas que se completam de maneira perfeita e procurei realçar essas qualidades ao invés de lotar nosso álbum de floreios e fritações. Tive o aval da banda nesse processo e acredito que fomos além do resultado esperado. Recentemente, o Murcego teve que deixar a banda e agora contamos com Lucas “Carcaça” Simon (ex-Krow) na terceira guitarra e ele, com certeza, também deixará sua marca.

Podemos perceber que “Opressor”, disco anterior da banda, é mais direto em termos sonoros do que “Servus”, que possui claramente maiores influências e experimentações. A o que vocês atribuem esse direcionamento na sonoridade da banda?
Manu – O advento da terceira guitarra por si só já potencializou isso, mas não foi o único motivo. De maneira geral, trabalhamos com mais calma, mais “atentos aos sinais” como diz o grande Ney Matogrosso, atentos aos detalhes e com tempo para experimentar. Cada nova pré-produção do Uganga acaba sendo mais detalhada que a anterior. Mas essa, apesar de longa, foi leve. Ou ao menos mais leve que as outras (risos). Todos nossos álbuns têm uma dose razoável de experimentalismo, assim como músicas diferentes entre si, isso desde as primeiras demos, já que nossas influências são amplas e todos compomos. Isso naturalmente faz nossa música ser mais variada, mas acho que no “Servus” essas diferenças interagiram de maneira mais harmoniosa. Especificamente sobre os vocais, esse foi o primeiro trabalho onde gravei minha parte em separado, num outro momento, em outro estúdio, perto da minha casa, e isso me possibilitou colocar em prática ideias que vinha maturando há algum tempo. O suporte financeiro que tivemos da Wacken Foundation e da PMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura) de Uberlândia também ajudou, pois possibilitou melhores condições de gravação e mais tempo no estúdio. Recomendo uma olhada na ficha técnica, foram sete estúdios envolvidos no “Servus”! Tudo foi finalizado no Rocklab em Goiânia com o Gustavo Vazquez que co-produziu o álbum comigo e o trabalho foi enorme. Por outro lado, a banda chegou pronta pra gravar, eu queria que a banda chegasse no estúdio com o álbum fechado e pronto pra tocar ao vivo e foi assim que rolou. Então tivemos tempo para maturar e focar nos detalhes, mixar com calma etc.

Como você comentou, o novo álbum contou com apoio do Wacken Foundation e do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PMIC) de Uberlândia, dois importantes meios que auxiliaram vocês na produção, correto? Comentem um pouco sobre.
Marco Henriques – Exato. Sempre estamos ligados em iniciativas que podem ajudar a banda, como o PMIC. O governo tem essa verba pra ser destinada à cultura, então, por que não aproveitar, não é mesmo? Antes que seja destinada para algum artista que já possui uma mega estrutura e nem precisa desse apoio — como já vimos acontecer várias vezes. No caso do Wacken Foundation, foi não só uma super ajuda como uma honra pra gente ter sido aprovado nesse projeto, que tem por trás um dos maiores festivais de metal do mundo. Só de ter a logo do Wacken no álbum já seria demais. Termos sido escolhidos pela curadoria da fundação, em meio a bandas de todo o mundo, só nos fez ver ainda mais que estamos no caminho certo. Quem sabe o próximo passo não é tocar nesse festival?

Pegando o gancho: a cultura no nosso país, de certa forma, nunca recebeu a devida atenção, principalmente dos governantes, mas, atualmente, essa falta de interesse em algo indiscutivelmente importante para o desenvolvimento de uma nação tem se intensificado. Como vocês avaliam nosso atual momento relacionado à cultura?
Marco – Vivemos um momento tenso. Ao mesmo tempo em que temos uma grande quantidade de artistas, bandas, festivais acontecendo, movimentando a cultura nacional, temos de outro lado um governo que parece não se importar muito com isso. Mas pra quem vive no underground, a luta continua, a correria segue e não temos outra opção a não ser tocar o foda-se e continuar nadando contra a corrente.

Manu – Somos um país modista e entre as novas modinhas está essa de culpar a classe artística pela nossa triste realidade. Só rindo, né, mano?

Comente um pouco sobre a escolha da faixa-título como single e primeiro videoclipe do novo álbum.
Manu – Gostamos de abrir nossos álbuns com faixas mais diretas e “Servus” é uma delas. Ela tem o thrashcore que nos caracteriza, tem um refrão melódico e mais lento, que remete aos nossos primeiros trabalhos, e referências tanto ao metal mineiro dos anos 80 quanto ao ragga. Parece improvável? É só ouvir com atenção, pois está tudo lá (risos).

Marco – Sempre tem aquelas faixas que, após serem compostas, chamam a atenção pela sua força e dão aquela cara de abertura de disco. E foi assim com esse som. Tem uma intro marcante, riffs poderosos, mostra diferentes pegadas da banda e tem uma letra foda que casa muito com o momento que estamos vivendo. Nem sempre é fácil escolher qual música vai abrir um trabalho, mas dessa vez não tivemos dúvidas que “Servus” seria a melhor opção.

Falando ainda da faixa “Servus”, a letra traz um tema que, infelizmente, ainda é muito atual nos mais diversos âmbitos em nosso país, com trechos como, por exemplo, “escravos coniventes, massa de manobra, não mais que servos”, referindo-se à grande parcela da população brasileira, enquanto “assassinos de terno e gravata” faz alusão à política, certo? Na opinião de vocês, o que é preciso para mudarmos tal situação?
Manu – Você está correto em sua interpretação. O momento atual do Brasil foi a inspiração para essa letra. Não só a eleição do Bozo e toda a polarização ridícula que resultou da mesma, essa letra veio antes disso, ainda no governo golpista do vampiro. A meu ver, o Brasil vive um momento ideologicamente medíocre já há algum tempo, e essa eleição só foi a cereja do bolo. Enquanto povo somos massa de manobra defendendo lados opostos de uma mesma moeda e seguiremos assim brigando por migalhas até identificarmos o verdadeiro inimigo comum. “Servus”, o álbum, trata disso: do Brasil no futuro, quando esse inimigo comum será julgado pela lei do carma. Os hindus chamam esse momento de Idade do Ouro, onde o leão e o servo bebem água no mesmo riacho. Se “Opressor” era sobre o momento atual, a Idade do Ferro, “Servus” olha pra Idade do Ouro, depois da seleção cármica e do renascimento da terra e, consequentemente, do Brasil.

Pensando que o Uganga está na estrada há mais de 25 anos, o que mudou em relação à cena do metal no Brasil na opinião de vocês? Quais as principais diferenças que identificaram durante esse período?
Manu – Algumas mudanças são gritantes e óbvias. Nossa primeira demo saiu em fita K7, cara, e não era algo tipo retrô, era o formato para espalhar seu som naqueles dias. Parece outro planeta (risos)! As gravadoras ainda ditavam as regras do mercado e a internet dava seus primeiros passos. Época do release xerocado, troca de cartas e união. Muita coisa mudou, mas muita coisa permanece igual. O rock ainda trava uma batalha desigual com a música descartável de cada época, que, com certeza, recebe muito mais investimento e atenção dos meios de comunicação. Ainda somos contracultura, mesmo que tentem — e muitas vezes consigam —, nos pasteurizar. O Uganga segue evoluindo e se adaptando.

O que nos chama muito a atenção no disco são as participações especiais, alguns nomes peculiares e que trouxeram elementos bem interessantes para o som do Uganga, como, a dançarina e cantora pernambucana Flaira Ferro, o músico Luiz Salgado, o grupo chileno de rap Lexico na faixa “Hienas”, o espiritualista Sr. Waldir, entre outros. Como foi trabalhar com esse pessoal e como vocês avaliam a colaboração de cada um para a música e sonoridade do Uganga?
Manu – Sempre tivemos em nossos álbuns participações de convidados que vão muito além das cenas rock e metal, e esses que você citou representam muito bem isso. São artistas que admiramos e que foram inseridos em nosso universo musical sem perder sua característica original, ou sem modificar a nossa. Em alguns casos gravamos com eles aqui em Araguari no Mundo da Lua Estúdio, e em outros eles gravaram e nos enviaram. Pessoas, vivências e lugares diferentes ajudaram a pintar esse quadro musical. Acho que o Uganga é uma banda que consegue fazer isso muito bem, dar unidade ao trabalho sem soar como uma colcha de retalhos musical. Além dessas participações mais improváveis que você citou, é claro que também tivemos convidados do “clã dos camisas preta” como Casito, do Witchhammer, ou o BT, do John No Arms, e todos, sem exceção, detonaram.

Na primeira tour pela Europa realizada pelo Uganga vocês gravaram um disco ao vivo por 60 euros, que posteriormente foi mixado pelo Vulcano da banda Hellish War, é isso mesmo? Falem um pouco sobre essa experiência e sobre como tem sido a receptividade do público europeu nas turnês realizadas pelo Uganga.
Marco – Isso mesmo! A nossa primeira tour na Europa aconteceu em 2010 e entre outros shows, participamos do Razorblade, um festival muito massa na Alemanha. Após o show o técnico de som nos ofereceu o show gravado em multipistas por 60 euros. Não tivemos dúvidas em adquirir, porque foi um puta show, o lugar estava bem cheio e seria uma ótima recordação dessa viagem. Mas não esperávamos que o resultado ficaria tão bom. Quando ouvimos não tivemos dúvidas que o material merecia ser lançado. Na época ele saiu em uma tiragem limitada acompanhada de um livreto contando como foi a tour. Temos muito carinho por esse trabalho. Em ambas as turnês que fizemos na Europa (2010 e 2013) a receptividade sempre foi muito boa. Mesmo cantando em português o público interagiu muito, comprou material, vinha trocar ideia após os shows… O retorno foi 100% positivo. Provavelmente em 2020 a gente volte para nossa terceira tour no velho mundo.

“Servus” foi lançado no final de março; já deu pra sentir o que os fãs têm achado do trabalho?
Marco – Cara, até o momento todas as resenhas que temos lido têm falado muito bem desse álbum. Tanto no Brasil quanto no exterior já tivemos ótimas respostas. Ainda estamos na fase de divulgação, enviando material para rádios, revistas, sites, ou seja, ainda tem muitas resenhas pra sair. Mas num primeiro momento podemos dizer que a aceitação tem sido 100% positiva. Foi um álbum trabalhado com muito cuidado. O Manu entrou de cabeça na produção e é muito bom ver que todo esse trabalho está sendo reconhecido. Agora é hora de colocar o pé na estrada e mostrar ao vivo as músicas novas.

Vocês consideram “Servus” o melhor trabalho da carreira do Uganga?
Manu – É natural o músico preferir seus trabalhos mais recentes, isso sempre rolou comigo, mas no caso do “Servus” acho que o lance vai além. Eu acredito de verdade que o álbum reúne o que de melhor já criamos, tem o melhor som que já tiramos em estúdio e uma arte soberba. Eu, com certeza, o coloco no topo da discografia do Uganga e da minha em particular. Ao menos até o próximo (risos).

Marco – Cada disco carrega um carinho especial. E sempre procuramos evoluir a cada trabalho. Eu, particularmente, demoro um pouco pra acostumar com os discos. Após a gravação eu ouvi muito pouco essas músicas, agora que o disco chegou que estou voltando a escutar, inclusive pra tirar algumas músicas que não tocamos desde a pré-produção (risos). Mas com certeza o “Servus” mostra um passo a mais na trajetória da banda, buscando sempre evoluir, mas nunca presos a nenhuma fórmula.

Manu, você já disse que a participação do espiritualista Sr. Waldir, na faixa “Depois do Hoje…”, “foi providencial”, já que vivemos em tempos onde religiões afro-brasileiras são atacadas por falsos moralistas. A excelente arte de capa de “Servus” traz elementos e simbolismos das mais diversas religiões. Como vocês trabalham esses conceitos nas composições do Uganga, e como você avalia o atual momento repleto de discursos de ódio em que vivemos?
Manu – Cara, os dias atuais estão muito estranhos. Pra mim é meio que uma volta a Idade Média só que com celular (risos). Sei que posso soar um chato da velha guarda falando isso, algo que devo ser mesmo, mas olho a minha volta e vejo mais pessoas desinteressantes que antes. Acho que nesses tempos ser do rock, do punk, do hardcore, do metal, do rap, das ruas é ainda mais legal. Vou além, é necessário. Dedo do meio em riste! A arte da capa e contracapa foi feita pelo Wendel Araújo, um artista pernambucano muito foda. Trabalhamos o conceito com ele e adoramos o resultado. Ali está um feiticeiro (Uganga significa Feitiçaria em Swahilli) na esplanada dos ministérios em Brasília, com aquele céu lindo do cerrado, animais, vegetação e paz. Nessa figura pode se ver colares do hinduísmo e da umbanda, pinturas Caiapó (referência à Minas Gerais, e claro, ao “Roots” do Sepultura) o fogo dos rituais pagãos e a luz saindo da testa em referência ao Raja Yoga. Tudo junto em harmonia como fazemos com nossas referências musicais. Por fim, pedi para que ele colocasse as araras voando pois é algo muito comum aqui na paisagem do cerrado. Pra falar a verdade, há pouco mais de uma hora, sete delas passaram voando felizes sobre a minha cabeça. Acho que elas já estão na Idade do Ouro (risos). Salve!

– Paulo Pontes é colaborador do Whiplash, assina a Kontratak Kultural e escreve de rock, hard rock e metal no Scream & Yell. É autor do livro “A Arte de Narrar Vidas: histórias além dos biografados“.

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