O cinquentenário de Flavio Basso

Texto por Leonardo Vinhas 

Em janeiro de 2019, Flavio Basso teria completado 51 anos de idade. Antes disso, aos 47, faleceu, vitimado por um infarto agudo do miocárdio. Deixou, como artista, um legado sob as alcunhas de Júpiter Maçã e Jupiter Apple. É um corpo de obra amplo em musicalidade, ainda que reduzido em número de discos, considerado por muitos músicos, críticos e fãs como um dos melhores dos últimos 30 anos.

Recentemente, parte significativa dessa obra vem sendo reapresentada ao público. No ano passado, a Monstro Discos lançou o vinil de “A Sétima Efervescência” (pela primeira vez no formato), álbum de estreia de Júpiter Maçã, unanimemente apontado como o melhor de sua carreira (e cujo CD, raríssimo, é vendido a preço de ouro em sites de revenda – assim como ‘Rock’A’ula’, o disco do Cascavelletes). Agora em 2019, é seu último álbum, “Uma Tarde na Fruteira”, que ganha edição ainda mais caprichada, pela mesma gravadora: um vinil duplo, com as versões espanhola e brasileira do disco (que traziam faixas e capas diferentes nos lançamentos originais). Além disso, foi lançado “Júpiter Maçã: A Efervescente Vida & Obra”, extensa biografia de Flavio Basso escrita pelos jornalistas Pedro Brandt e Cristiano Bastos.

A efeméride do cinquentenário certamente é um bom pretexto comercial para tais relançamentos, e pretexto melhor ainda para reavaliar a obra. Mas o fato é que as edições em vinil já vinham de antes. Leo Razuk, um dos sócios da Monstro!, conta que “a ideia de lançar a obra do Júpiter em vinil começou quando ele ainda estava vivo, mas por muitas circunstâncias do momento, acabou não dando certo”. Para Razuk, a maior importância desse relançamento é “mantê-lo vivo. Não deixar que um artista do tamanho do Júpiter seja esquecido ou cultuado apenas em nichos. Ele merece isso, e esses lançamentos estão fazendo a obra dele chegar a uma nova geração, sim”.

Essa obra tem admiradores fiéis entre alguns diversos músicos do cenário brasileiro. Kassin, possivelmente o produtor mais influente na estética do pop brasileiro dos anos 00 (e também compositor e ex-integrante do Acabou La Tequila), diz que “Júpiter é o único artista que, se eu sentar em casa e pegar o violão, sei tocar todas as músicas”. Tanto ele como o também carioca Marcelo Callado já declararam ver Flavio como “o último grande compositor pop do rock brasileiro”, opinião compartilhada por Razuk.

O jornalista e editor do Scream & Yell, Marcelo Costa, acha a afirmação um pouco exagerada. “Não vejo uma característica tão pop assim no Júpiter. Há, claro, elementos, mas a verve é total rock and roll selvagem, ainda que cantarolável. E se a gente pensar que lá se vão 22 anos do ‘A Sétima Efervescência’, acho arriscado cravar que não houve ninguém depois dele – eu mesmo acho que surgiram uns três ou quatro. O lance é que o personagem Júpiter Maçã era muito forte, e dai eu concordo: talvez não tenha surgido um personagem tão forte quanto ele”.

De fato, o personagem era marcante. Dé Palmeira, hoje apresentador do programa Estação Roquenrou (Canal Brasil) e diretor musical do programa Conversa com Bial (Globo), produziu o segundo LP dos Cascavelletes, banda na qual Flavio Basso despontou (após uma passagem pelo TNT). Perdeu o contato com os músicos pouco após a conclusão do disco, e quando foi apresentado ao “Sétima Efervescência” por sua então namorada (hoje esposa), demorou a reconhecer em Júpiter o garoto que havia produzido.

“O trabalho era outro, muito maior”, conta Palmeira. “Quando eu produzi o ‘Rock A’ula’, ele ainda era o Flavio. Mas já dava para sentir muito mais nele. Uma lembrança forte é ele e o Nei [Van Soria] compondo como profissionais, apesar da pouca idade que tinham. Eles já tinham material para gravar o álbum, mesmo assim não paravam de compor”.

Flavio se empenhou na construção dessa persona criativa, e se isso trouxe bons resultados artísticos, especialmente no imprescindível álbum de estreia, cobrou um preço em vida e na posteridade. O Júpiter “loucão” é lembrado por muita gente, em especial pelo público gaúcho, para o bem e para o mal, e após sua morte surgiram várias acusações de violência doméstica contra ele. A biografia escrita por Brandt e Bastos reconhece esse caráter, mas o foco dos autores era ir mais além do que o “folclore” oferecia.

“Acho essa coisa de mito muito boba, então a proposta da biografia sempre foi ir além e mostrar o ser humano Flávio Basso, com seus defeitos e qualidades. E tentar, na medida do possível, apresentar pistas – com depoimentos de familiares, mulheres, músicos, amigos, etc. – para o leitor entender como se deram os acontecimentos mais importantes da vida dele e tirar as próprias conclusões”, conta Pedro Brandt. E completa: “ao longo dos capítulos, temos um biografado que pode ser resignado ou cheio de ímpeto, inconsequente ou determinado, autoconsciente e confiante ou ingênuo e equivocado. Um cara mutante e cheio de contradições”.

O autor desse texto tinha o projeto de um tributo a Júpiter Maçã. Ele nunca chegou a ser concretizado justamente por ter esbarrado em muitas das contradições e dos elementos “mitológicos” de Júpiter. Pessoas próximas contrárias à homenagem, outras extremamente receptivas, alguns colegas de geração querendo interferir diretamente no tributo, artistas jovens entusiasmados com a ideia, ativistas dizendo que “um machista não merece homenagem”… As reações, para o bem e para o mal, eram sempre passionais, e muitas delas acompanhadas de “condições” que inviabilizariam o projeto tal como foi concebido.

A questão do machismo era especialmente notável na banda inicial de Basso. “Na intensa luta diária contra o machismo, que abusa e mata, e o patriarcado, a putaria do Cascavelletes ficou datada, assim como Raimundos e cookies industrializados, sinais de uma época em que não havia limites, o tal século passado – ainda que, nesse fragmento de tempo que é o hoje no Brasil, pareça que infelizmente estejamos voltando alguns séculos no país”, pontua Marcelo Costa. “Mas, ainda assim, há coisas lindas ali no repertório do Cascavelletes, como ‘Sob Um Céu de Blues’ e ‘Sorte no Jogo’. Flávio criou seu próprio lugar no tempo / espaço, e dentro dele ele foi rei”, afirma o jornalista.

Olhando o legado em retrospectiva, Pedro Brandt tem uma posição parecida. “Desde Cascavelletes até Júpiter Maçã, percebe-se uma obra muito criativa e divertida, dona de uma personalidade muito forte. Acho que a importância reside aí, em apresentar ou reapresentar, para quem se interessar, um artista brasileiro sui generis. Arrisco dizer que a obra do Flávio/Júpiter acaba chegando, mais cedo ou mais tarde, aos ouvidos de quem realmente se interessa por rock brasileiro, seja essa pessoa jovem ou nem tanto, pelo fato de suas músicas serem muito originais e carregarem algo de inusitado, de absurdo, com vários elementos-surpresa e, ao mesmo tempo, muita informação ‘clássica’, o que facilita sua absorção e fruição”.

“Júpiter fez verdadeiros hinos, como ‘Um Lugar do Caralho’, ‘Beatle George’, ‘Miss Lexotan’… canções que têm uma pegada pop muito forte, tocam em rádio, mas são de uma ousadia absurda”, opina Leonardo Razuk. “’Um Lugar do Caralho’ é tão sensacional que tem gente que acha que é do Raul Seixas! (risos) É só olhar no YouTube que você encontra posts de pessoas se referindo a ela como se fosse do Raul”.

Sobre essa obra chegar a artistas mais recentes, as visões diferem. Marcelo Costa acha curioso que “boa parte da cena new psicodélica brasileira beba mais no Tame Impala do que no Júpiter Maçã”, e acredita que os lançamentos em vinil, especialmente do “A Sétima Efervescência”, “talvez coloquem as coisas no lugar e influencie muita gente, afinal ele é um disco para ser colocado num pedestal ao lado dos cinco primeiros discos dos Mutantes. Esse é o nível”. Costa não vê nenhum herdeiro direto, mas pontua que “talvez o rock rural da Joe Silhueta, de Brasília, traga um pouco desse sentimento, que é muito mais genuíno do que o escracho da Cachorro Grande, não sei. O fato é que há material aqui para influenciar 30 gerações”.

Já Leo Razuk acredita que “o rock gaúcho sempre faz reverências a Júpiter” e que “muita dessa nova geração psicodélica brasileira já deu suas mordidas na Maçã”. Pedro Brandt, por sua vez, não vê o som jupiteriano reverberando de forma direta atualmente, “talvez porque isso tenha acontecido mais intensamente há alguns anos – acho que os artistas que mais foram influenciados por ele, e que ainda estão em atividade, já estão por aí há muito tempo de forma que essa influência foi deglutida e, talvez nem seja tão perceptível assim hoje”, opina. Apesar disso, ele aponta os primeiros anos dos Boogarins como um exemplo de “notória influência” da sonoridade criada pelo gaúcho.

De fato, não só eles citam-no com o referência (tanto que Benke Ferraz, guitarrista dos Boogarins, foi um dos que recebeu entusiasticamente a proposta do tributo), como também André Prando, Tagore, BIKE e outros já se manifestaram assumindo a presença da música de Júpiter Maçã (ou a sua versão mais hermética, em inglês, Jupiter Apple) como uma das principais em seu universo de referências musicais. Seja pela biografia, pelos relançamentos ou pelo que ainda está por ser recuperado, a obra (e Flavio Basso) merecem um olhar mais atento. “Júpiter é um artista genial e, por isso, atemporal. Seus discos são ousados, criativos, instigantes… Só sentimos que ele não esteja mais conosco, produzindo novas e lindas loucuras”, finaliza Leonardo Razuk.

Discografia simplificada (apenas LPs e EPs oficiais):

Com TNT:
EP Você me Deixa Insano/Tá na Lona (1993)

Com Os Cascavelletes:
Os Cascavelletes (1988)
Rock’a’ula (1989)

Como Júpiter Maçã:
A Sétima Efervescência (1997)
Uma Tarde na Fruteira (Versão Espanhola) (2006)
Uma Tarde na Fruteira (Versão Brasileira) (2008)

Como Jupiter Apple:
Plastic Soda (1999)
Hisscivilization (2002)
Jupiter Apple and Bibmo Presents: Bitter (2007)

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

7 thoughts on “O cinquentenário de Flavio Basso

  1. Ótima matéria! Fiquei em dúvida quanto ao valor atual de Plastic Soda. Será que estão pagando bem por ele?

  2. O Flávio marcou muito minha adolescência, o som dele é incrível. O álbum “A sétima efervescência” foi a trilha sonora de muitas tardes na Floppy (lan house em que eu matava aula pra jogar Max Payne). Anos mais tarde já adulto, montei uma banda e o hit As tortas e as cucas nunca saiu do repertório. Quem não conhecia se interessava e quem já conhecia achava doido.

  3. Posso estar enganado, mas vendo os vídeos antigos e ouvindo as músicas, me parece um cara com o ego maior que o talento. Bastante incensado e quase folclórico, mas comparar com os Mutantes é de uma heresia ultrajante, pois tá mais para Mamonas ou Raimundos (que acho até melhor). Mas deu o recado, com boas sacadas na linha “pop brega cachaceiro universitário”, chegando a assassinar o vernáculo em “Eu preciso encontrar um lugar legal pra mim (sic) dançar”… Mim Tarzan, you Jane…

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