“Besta Fera”: Kiko Dinucci fala sobre o novo disco de Jards Macalé

entrevista por Carime Elmor

Estamos no início de 2019 quando, em meio ao caos, Jards Macalé entrega “Besta Fera”, seu primeiro disco de inéditas em 20 anos. Gravado no tumultuoso ano de 2018, ele é quem assina e faz a direção musical, com ouvidos tão sensíveis, capazes de escutar até mesmo o pensamento dos outros parceiros de trabalho: Thomas Harres e Kiko Dinucci (que além da carreira solo e diversos outros projetos integra o Metá Metá), convidados para a produção musical, e Rômulo Froés, diretor artístico.

“Besta Fera” é um álbum necessário. É um chamamento de Macalé, que num processo de luta e luto sendo artista no Brasil, surge como luz em um banquete de criaturas animalescas e sanguinárias. Jards que em 2003 cantou “Consolação”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, no álbum “Amor, Ordem & Progresso”, hoje enxerga um buraco, um rasgo, um rompimento. Não há consolação. “Vamos pro fundo do poço / pois não tem mais nada pra você aqui”, canta ao lado de Tim Bernardes na parceria entre os dois, “Buraco da Consolação”.

São 12 canções com participações, também, de Juçara Marçal e Ava Rocha, autora de “Limite”, 11ª faixa do disco. A poesia de Ava costura perfeitamente com os versos “estamos no limite da água mais funda”, cantada por Jards como se estivesse sendo afogado nas “Trevas”, música-mantra escolhida como primeiro single e carta de apresentação do álbum. “O Jards é meio João Gilberto. Ele é muito rigoroso com o repertório dele. Para ele gravar uma música, tem que ser muito o que ele acha. Então essa é a importância, depois de 20 anos ele lança um disco inteiro de inéditas e cada música de Jards é uma pérola”, comenta Gregório Gananian, diretor do primeiro videoclipe do projeto (aqui ele fala mais sobre o vídeo-arte “Trevas”).

O álbum ainda conta com Guilherme Held na guitarra (discípulo do “Inaudito” Lanny Gordin, parceiro de primeira hora de Jards nos anos 70), Pedro Dantas no baixo, Thomas Harres na bateria e Kiko Dinucci no violão, tamborim e sintetizadores além das participações de Rodrigo Campos, Thiago França, da Velha guarda musical da Nenê de Vila Matilde, de Luê (tocando rabeca em “Pacto de Sangue” e “Limite”), Clima e Rômulo Froés, entre outros. No bate papo abaixo, Kiko Dinucci, que assina a produção junto a Thomas Harres, fala sobre “Besta Fera”. Confira.

Como se deu a parceria entre você, Thomas e Jards? Já haviam trabalhado antes em outros projetos?
Acho que o grande catalisador desse projeto todo foi o Thomas Harres, porque ele já toca com o Jards há 7, 8 anos. E ele já conhecia muito o Jards, já tinha muita intimidade artística, musical, e quando surgiu essa ideia, o meio campo foi o Thomas Harres. Eu, particularmente, já tinha trabalhado com o Thomas no Metá Metá, ele já tocou muita bateria em shows do Metá Metá, já fez turnê internacional com a gente. E o Rômulo, já tinha feito as parcerias com ele nos discos da Elza Soares (“A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015, e “Deus é Mulher”, de 2018). Então a gente resolveu fechar esse trio e foi uma parceria ótima, os três muito alinhados, querendo fazer um disco bom. Eu acho que esse disco não seria assim, se não tivesse estas três cabeças. Se fosse só um de nós, ou só outro, seria muito diferente. Foi muito sadio para o disco ter dois produtores musicais e um diretor artístico.

Aliás, é uma obra que reúne não só vocês três, mas Ava Rocha, Tim Bernardes, Juçara Marçal… e outros tantos fortes nomes da música contemporânea brasileira. Trazendo a poesia da Ava, mas também resgatando Oiticica, que está mais atual do que nunca, e até a própria “Odisséia” de Homero, em uma transcriação de Ezra Pound. Como você enxerga essa teia de artistas e pessoas envolvidas, de diferentes épocas/mundos, a fim de produzir uma linha de sentido para “Besta Fera”?
Essas novas parcerias do Jards refletem muito o que ele é. As mil faces dos Jards. Ele nunca foi uma coisa só. Ele não é só experimental. Não é só a Bossa Nova. Não é só o samba. Ele não é só a modernidade. Ele engloba muita coisa, e com o passar dos anos, isso vai ficando mais visível. Ele vai englobando mais coisas ainda no mundo em que ele vive. São parcerias bem distintas, de Tim Bernardes à Ava Rocha. A Ava, por exemplo, já tinha uma aproximação com ele muito forte. Já conhece ele há muitos anos. O Tim foi abrir um show do Jards, e os dois ficaram amigos. O Jards tem muita admiração pelo Tim. E foram entrando outros parceiros, eu, Clima, Thomas, Rodrigo (Campos), Rômulo, muito pela ocasião do disco, de ficar ali trabalhando, procurando sonoridades pro disco, e então foi entrando coisa nossa também. Acho que o Jards ainda vai fazer muita parceria. Ele engloba e agrega muitas coisas.

Falando do álbum de forma geral, quais referências de mixagem vocês utilizaram para nortear o disco?
A gente não usou muita referência de mixagem, até porque os discos do Jards que a gente usou como referência para gravar ‘Besta Fera’ são discos com uma mixagem diferente uma da outra. As referências, menos como sonoridade, e mais como espírito, a gente queria que remetesse muito ao disco de 1972, “Aprender a Nadar”, e ao “Contraste” (1977). A mixagem mesmo, a referência, foi o próprio Gustavo Lenza, a gente gostava de muitos discos que ele tinha mixado, já tínhamos trabalho com ele algumas vezes, e a referência é o som que ele tira. O Gustavo Lenza tira um som muito pessoal, você ouve um disco e sabe que foi ele quem mixou, mas a referência artística, de atitude, de atmosfera, de estética e espírito, foram os três primeiros discos do Jards.

O primeiro single, “Trevas” é uma espécie de mantra para o álbum? Reúne a questão central do disco? Porque foi escolhida como single?
A gente escolheu “Trevas”, primeiramente, por ser uma canção forte, que dialoga com os tempos de hoje. É a música que mais reflete o Brasil atual, a gente ficava no estúdio, enquanto gravava essa música, com aquela tensão da eleição, no ano passado. E a gente ficava falando: “Nossa, já pensou se o Bolsonaro ganha? Essa música vai ter quase uma materialização das imagens apocalípticas”. É uma música que talvez seja um retrato fiel dos tempos atuais deste Brasil doente.

Como surgiu a ideia de Jards gravar uma parte com a boca em um balde de água? Que efeitos queriam provocar?
A coisa de gravar com a boca aconteceu nos últimos dias de gravação, o Jards, sem falar para ninguém, foi no café da Red Bull Stations, e voltou com um pequeno balde cheio de água, pediu para o engenheiro de som, o Funai, e a Alejandra, que é assistente dele, pediu aos dois para montarem um microfone lá, e de repente ele disse: “Eu vou gravar debaixo da água aqui”. Ele não falou nada para ninguém, ele foi lá e fez. Eu lembro que ele fez um comentário assim: “Só vocês ficam inventando coisas, eu também quero inventar”. E daí fez essa gravação sobre a água.

É uma música que tem diversos climas: começa numa espécie de profecia, apenas com a bateria e Jards cantando como se proclamasse, aí vem a bossa em que Jards parece, em um certo momento, quase que dar uma risada de leve (irônica) ao cantar, intercalando com o verso “Trevas mais negras sobre homens tristes” sendo repetido como um mantra do submundo. Até que ele se “afoga”, e isso é explícito sonoramente. Queria que me contasse, de forma mais detalhada, sobre a produção específica dessa faixa. Como ela foi pensada previamente? Quais complexidades cabem à ela?
Falando do processo de “Trevas”, era uma música antiga do Jards, ele já tinha feito há um tempo. Quando a gente estava compondo para o disco, ele tirou do baú essa música e tocou, procurou a letra. Aquela coisa da música meio perdida no tempo. E a gente gostou muito. Ela tem um acorde que ele vai descendo em regiões cromáticas. Ele vai descendo em uma escala cromática. Como é uma característica decrescente, pode remeter a uma certa decadência da humanidade, a descida ao fundo do poço. Como ele fala na letra: “ao limite da água mais funda”. A bossa nova traz um momento de luz, mas traz também um momento de ironia. É como se você risse para a própria desgraça, como defesa. Como se você desarmasse seus inimigos, sorrindo. Rindo deles. Eu enxergo dessa maneira essa música. E ela tem esse começo com ataques ilhados pelos repiques da bateria, como se a gente estivesse estacionado na lama e não conseguisse sair nunca, faz mais de 500 anos que a gente está estacionado aí. Avança, mas volta.

Por fim, eu vi um dos vídeos gravados sobre o processo de gravação do disco (o segundo abaixo, especificamente) em que você dizia sobre a audacidade de se gravar um disco hoje. Sobre ser uma missão enorme, e, por isso, ser preciso ter muita vontade, porque não sabemos o que vai acontecer com o Brasil. Como é estar neste processo e saber que a arte sempre se importou mais com a política do que a política com a arte? (e talvez, mais do que a política com ela mesma).
Eu acho que não é coincidência o “Besta Fera” ser um disco tão ligado ao tempo de hoje. Eu acho que a gente, no meio desse vendaval, dessa lama, desse projeto de carnificina que é o atual governo, isso envoca alguma força de resistência nos artistas, alguma reação, entendeu? Eu acredito que não somente o “Besta Fera”, mas outros discos, nesse e nos demais anos, serão mais espinhosos, mais gritantes, mais urgentes. ‘Besta Fera’, da primeira à última faixa dialoga com os tempos de hoje. Você consegue fazer links, paralelos, criar metáforas de coisas que estão acontecendo hoje em dia. Não sei se foi coincidência, mas tudo caminhou para esse lado e é a atmosfera de uma época que vai influenciando o artista. Jards foi muito influenciado por toda essa atmosfera.

– Carime Elmor (fb/carime.elmor) é jornalista, fazedora dos zines Malditas e colaboradora do CAFÉ8. A foto que abre o texto é a capa do álbum “Besta Fera” em arte feita por Cafi; A segunda foto é de Renato Mangolin!

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