Três perguntas: Thiago Ramil

por Renan Guerra

Thiago Ramil carrega o famoso sobrenome da família lá de Pelotas e traz na bagagem os epítetos de sobrinho do Kleiton, do Kledir e do Vitor e primo do Ian. Em 2015, ele lançou “Leve Embora”, disco bastante poético que trazia uma marca bastante própria de autor. Agora ele retorna com “EmFrente”, seu segundo álbum, produzido por Guilherme Ceron e ele próprio com lançamento do selo Escápula Records.

Com participações de Duda Brack, Gutcha Ramil e Paola Kirst, “EmFrente” tem composições ao lado de Alércio PJ (da Musa Híbrida), Poty, Alexandre Kumpisnki e Felipe Zancanaro (ambos da Apanhador Só) e Diogo Maestri. Produzido de forma coletiva e financiado através de um crowndfunding, “EmFrente” é um disco bastante atento a efervescência política do Brasil e ao caótico cenário em que nos encontramos.

Bati um papo com o Thiago sobre o lançamento de seu segundo disco logo após o show Casa Ramil, realizado no SESC Vila Mariana, dia 3 de agosto. O show é uma celebração familiar que reúne Kleiton e Kledir, Vitor Ramil, Ian, Thiago, Gutcha e João Ramil. Nessa mesma data, disco “EmFrente” estava sendo disponibilizando oficialmente nos principais portais de streaming e para download gratuito em seu site oficial, por isso conversamos um pouco sobre o processo de criação e, claro, falamos sobre a famosa família. Confira:

Na sua proposta de crowndfunding você falava que o intuito dessa obra era ser mais coletiva. “EmFrente” tem diversas participações, desde vocais até as composições. Como foi esse processo? Você gosta dessa criação coletiva?
A ideia de fazer o disco através do financiamento coletivo e o próprio nome dele estão associados a essa ideia de um processo mais coletivo, e que a gente busque também fazer mais associações nesse sentido, para assim buscar maneiras de se sobreviver no mundo artístico e enfrentar essa dificuldade que a gente está vivenciando no cenário cultural brasileiro – tem a questão governamental também, de como a cultura está sendo valorizada pelo Estado. Agregar os músicos, amigos e compositores era uma vontade que eu já tinha, que era de tornar esse disco não só meu, mas também poder juntar essas forças e valorizar a qualidade dessas pessoas que também estão próximas de mim, então foi uma alegria muito grande poder fazer um trabalho com um processo bem coletivo mesmo. Os músicos que gravaram o meu disco já vinham tocando comigo, então já tinham essa proximidade com o trabalho, os parceiros de composição, as participações do disco, são pessoas que fui tendo proximidade ao longo também da minha carreira. A Duda Brack foi uma figura que reencontrei – até tem uma curiosidade por que ela estudou na mesma escola que eu em Porto Alegre e a gente nem se conhecia, por que ela é um pouco mais nova, e a gente foi se conhecer no Rio de Janeiro – a gente fez alguns shows juntos e uma composição em parceria nesse disco. Tem a Paola Kirst, que é uma compositora e intérprete bem do sul do Rio Grande do Sul, e que tem uma voz linda e que já estava próxima de mim artisticamente; tem a Gutcha, minha irmã. E bom, os compositores também: é uma gama de pessoas que eu admiro muito como artistas e estão próximos de mim. Tenho esse privilégio não só de os ter como parceiros, mas também amigos, que pra mim é um valor muito grande, então é uma alegria muito grande mesmo, não só tornar esse trabalho um trabalho coletivo, mas podendo aglomerar tantos talentos junto do meu trabalho, isso é uma honra muito grande, como também poder viabilizar ele através de um movimento que é um movimento de “fazer frente”. O nome do disco carrega muito isso, até com o próprio erro ortográfico [EmFrente], que é uma proposição também, é também no sentido de ampliar frentes. Por isso também o financiamento coletivo, dentro dessa proposta que é uma proposta importante para viabilizar as coisas nesse cenário atual.

Você falou do jogo de palavras do título, que brinca com a grafia. Esse disco conta muito com essas construções linguísticas que traçam essa poética realmente do enfrentamento. E isso traz para o disco um caráter político forte e atual, com um olhar bastante pessoal sobre os jogos de poder em suas diferentes instâncias. Como você percebe essas tensões no disco?
Eu acho que esse disco retrata muito também das minhas vivências nos últimos anos. A maioria das composições são posteriores ao “Leve Embora”, o meu primeiro disco, e eu também trabalho como psicólogo num abrigo municipal – lá em Porto Alegre –, e as vivências que me atravessam nessa prática são muito significativas no meu processo como compositor. Então, acho que isso me influenciou muito. Querendo ou não, no acolhimento institucional eu acabo vivenciando situações muito graves, que são como a ponta de um enorme enredo, que acaba muitas vezes estourando nas crianças, que são mais vulneráveis, então isso me faz também ter acesso e poder perceber de outra perspectiva, que também não só da perspectiva de músico, mas de sujeito, como um psicólogo inserido dentro de uma rede, que tá dentro da rede municipal, que tem todos os valores da política: como se valoriza a própria assistência, o lugar da vulnerabilidade, então me dá uma gama de possibilidades e uma perspectiva muito particular da minha prática como psicólogo mesmo. O jogo de palavras já era uma característica que eu gostava muito de explorar – o “Leve Embora” já tem essa característica, mas no “EmFrente” amadureci um pouco mais essa jogo lingüístico. Gosto muito de palavras homófonas, que são palavras que tem o mesmo som, com sentidos diferentes, então adoro esses trocadilhos, essas cacofonias que criam duplicidades de sentido, e isso, pra mim, é uma coisa que sempre admirei muito em outros compositores e que sempre busquei fazer. Essa ideia do Enfrentamento e do momento que eu acho que de fato é importante, eu tomo muito cuidado para poder pontuar essas questões do meu lugar, do lugar onde eu estou, da minha perspectiva enquanto sujeito, mas também me proponho a fazer uma reflexão que é – e nesse sentido até parece pretensioso – profunda de diferentes formas. Por exemplo, a música “Mitocôndria” fala sobre a educação no país, e talvez é algo que nem se perceba na primeira ouvida, mas ela fala também sobre a colonização, sobre o lugar do povo indígena, sobre o povo originário, e como a gente trata isso hoje. Então, ao mesmo tempo em que eu estou falando da educação, que de fato são questões que me tocam enquanto sujeito, eu também tô falando de como a gente aprende, de como a gente é educado a só reproduzir. É a frase final ali “se a prova é de marcar, como questionar?”, então, eu acho que a educação no Brasil não propõe a gente à reflexão, mesmo eu que tive acesso a uma educação privilegiada, pude estudar em boas escolas, tive uma boa formação, pude entrar numa faculdade, ainda assim, a educação é feita de uma maneira que não nos torna seres pensantes, não nos torna seres questionadores, mas sim seres reprodutores de uma lógica que já está implícita na própria descoberta do Brasil: o nome do conteúdo escolar é “Descoberta do Brasil”, já tem aí no título pra mim um erro crasso, pois não há uma descoberta do Brasil, e sim uma conquista daquilo que depois se nomeou Brasil, pois antes já havia muita gente aqui. Falar dessas coisas também é importante: a gente está aí próximo de umas eleições que eu nem sei se irão acontecer, por que o caos é tamanho, e é quase inevitável que um artista não fale dessas coisas hoje, não se coloque, não se posicione, mas eu tento fazer isso de uma maneira também atravessada pelo meu sujeito, como eu sou, de onde eu vim, o que eu posso falar, e não me propor a falar de temas que eu ache super importantes enquanto lutas, que reconheço muito, mas que talvez eu não seja o melhor representante para falar. Busco falar sobre coisas que me atravessam, por mais que eu reconheça muitas lutas, e eu vou estar ali no lugar de ouvinte, percebendo, conhecendo e aprendendo.

Toda vez que se fala no seu nome, do Ian ou da Gutcha, por exemplo, se puxa uma árvore genealógica. E hoje estamos aqui num show em que vocês se reúnem como família. Há algum peso que o sobrenome Ramil traz?
Não levo como um peso, ao menos para mim nunca foi um peso, mas sempre foi uma responsabilidade. Por que pra mim é muito claro que a opção em também seguir carreira musical e também ter um nome artístico associado ao nome da família – Thiago Ramil – traz esse compromisso e essa responsabilidade com o que os Ramis da geração acima tiveram muito cuidado, eu sei que o trabalho deles é muito rigoroso, eles são muito críticos, então tem um rigor do trabalho que não é um peso, mas é uma responsabilidade, eu não vou fazer de qualquer jeito e eu acho que isso é uma marca nossa, de ter esse olhar crítico, de ser muito rigoroso com aquilo que se está fazendo. Levo como uma honra e um privilégio, por que tive uma escola incrível, de carreira, de musicalidade, é um benefício – é um privilégio mesmo, muito grande, de fato, ter bebido dessa fonte, ter nascido nesse berço mesmo: tem sete no palco, podendo ter 14, pois todo mundo canta mesmo, tem alguma musicalidade, isso é algo muito legal! Enfim, pra mim, poder fazer esse show com meus tios, que me inspiraram e que são as principais referências para minha carreira musical, é um sonho de criança. Me lembro de ficar vendo shows deles e pensar “seria legal que um dia a gente possa tocar junto, se pá cantar uma música”, construir um show todo e eles ainda cantarem músicas minhas, bah!, me enche de prazer, é uma alegria muito grande, uma honra enorme. E aí, nesse sentido, que eu acho que não é um peso, mesmo que nos confundam – às vezes acham que eu sou o Ian – mas ao mesmo tempo, tem muitos Ramis e isso é bom. Bom, podem nos confundir, depois nos encontrem de novo. Acho que é isso: é realmente uma responsabilidade, por que não dá pra fazer as coisas de qualquer jeito, e essa autocrítica é algo bem positivo dentro do nosso trabalho, o Ian também é super rigoroso com as coisas dele, a Gutcha também, e acho que isso é uma marca da família que, enfim, faz com que a gente também se dedique e tenha um compromisso com o nosso trabalho. Mas tem uma coisa que eu acho muito importante nisso, que a gente talvez tenha falado um pouco na primeira pergunta, que é o sujeito compositor. Por mais que sejamos todos de uma mesma família e tenhamos semelhanças e tudo, o sujeito compositor é atravessado pelas suas vivências, e nós temos vivências diferentes. Então quando me perguntam se “ah, tem muita semelhança?”, tem, tem semelhanças, claro, a gente se criou junto, mas ao mesmo tempo, tem muitas diferenças, por que a gente é atravessado por coisas muito distintas e eu acho isso muito massa, muito legal, por que consigo perceber as semelhanças e as diferenças no trabalho do Kleiton e do Kledir pro do Vitor, no trabalho do Vitor pro Ian, no trabalho do Ian pro meu, do meu pro da Gutcha, então acho que isso é uma coisa muito massa da gente poder ser referência uns pros outros sem ter o medo e o temor de que a gente faça a mesma coisa. Acho que a gente não corre esse risco, eu não tenho medo disso.

– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.

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