Entrevista: Consuelo

entrevista por Leonardo Vinhas

Consuelo surgiu em Brasília em 2016, quando a cantora Claudia Daibert resolveu “colocar minhas músicas pra jogo”, nas suas próprias palavras. Juntou-se aos amigos de longa data Vavá Afiouni (baixo) e João Ferreira (violão), e a partir daí foram chamando outros integrantes – no caso, o polivalente Esdras Nogueira (ex-Móveis Coloniais de Acaju) nos sopros, o baterista Thiago Cunha e o guitarrista Marcus Moraes. Com um EP (homônimo) e muitos shows nas costas, a banda foi ganhando notoriedade pela estranheza de seu som, uma mescla densa de MPB, ritmos latino-americanos, pós-punk e flamenco.

A performance intensa de Claudia Daibert no palco colaborou bastante para a boa repercussão da banda, a ponto de ela “se tornar” a Consuelo na percepção dos fãs. Sobre ser um trabalho solo, Claudia diz que “é e não é”, imprecisão que é explicada na entrevista a seguir. Mas já se pode dizer, antecipadamente, que Consuelo une as questões espirituais da vocalista e seu apreço pela música e identidade latinas. Consuelo, “consolo” em espanhol, é um nome que traz essas duas influências implícitas, e, segundo Claudia, remete à pomba-gira e “à mulher selvagem que existe em todas nós” – outro conceito que ela cita bastante no papo a seguir.

A proposta visual é intrínseca à identidade da banda – tanto que seu primeiro registro oficial foram dois vídeos ao vivo, com as canções “Pangaré” e “Loca” (essa, uma versão da banda chilena Chico Trujillo). Por isso, o lançamento do clipe de “Luz da Noite” serviu de pretexto para essa conversa. Mas Claudia, ainda que muito orgulhosa do vídeo, tem mais a dizer: “Meu interesse é muito mais discutir o patriarcado, quem são as mulheres da América Latina, quem sou eu, quem são as mulheres que andam dentro de mim e quem são as que andam ao meu lado. E isso não é necessariamente mórbido, é mais profundo, questionador”. Confira o bate papo na integra abaixo:

Desde o começo da banda, “Consuelo” foi concebida como uma entidade, e você é a intérprete – ou a incorporação – dela. Conta um pouco quem é essa entidade.
Desde 2016 venho refletindo bastante sobre isso, e hoje vejo que a Consuelo é uma das mulheres que moram em mim. Esse arquétipo da mulher selvagem está no livro “Mulheres que Correm com os Lobos”, livro de 1992 da escritora norte-americana e psicoanalista Clarissa Pinkola Estés, que li na adolescência e não entendi nada, li aos 20 anos e de novo não entendi coisa alguma, e li aos quase 40, e aí entendi muita coisa. Percebo essa mulher selvagem quando estou em meio à natureza, quando escuto alguma coisa que me toca muito, ou quando piso em algum país da América do Sul. A Consuelo é a representação de uma dessas mulheres, é um lugar onde me coloco, é um pedaço de uma sombra minha – e estou em um processo de aceitar minhas sombras, e não de julgar. Quando aceito minha sombra, sou muito mais feliz. Tenho um lado superalegre, mas também tenho o lado escuro, e fiz as pazes com ele. Consuelo me traz para dentro dessa sombra de uma forma muito alegre, com muita luz.

A performance é importante para esse conceito da Consuelo. Mas uma curiosidade: não caberia aos músicos também incorporarem personagens? Ou o simples fato de eles se identificarem por outros nomes que não os que eles habitualmente usam (o Esdras, por exemplo, é o “Rufus”) já é uma maneira de acenar a essas novas personagens?
Também já falamos muito disse entre nós. Isso tem que acontecer naturalmente. Ainda não aconteceu, e na real, nem sei se é uma necessidade. A gente inventou essa brincadeira dos nomes, e acho que no show isso se aproxima do conceito da Consuelo, mas não sentimos a necessidade de transformar isso visualmente. Não vou obrigar ninguém a vestir uma roupa (risos), até porque eles iam ficar bravos (mais risos). Acho que o fato dos nomes já é legal. Até porque a Consuelo ser eu ou ser a banda já é um conflito, e quando me perguntam, quando eu tô a fim eu falo “sim”, e quando tô a fim falo “não”. Então as pessoas já ficam nessa, com as suas sombras, pensando: “mas é uma banda ou uma cantora?”. E eu gosto disso.

Seu som lida, como já falamos, com imagens e sensações incômodas, pesadas. De onde vem essa vontade de lidar com o mórbido?
Na real, não acho que é tão mórbido ou pesado. É a sombra. Ela está aí, e me interessa, ao mesmo tempo que a luz também me interessa. É o momento de dar esse mergulho. Passei uns momentos muito pesados nesse ano: estou fazendo um tratamento, descobri que estou com síndrome do pânico e depressão, e nunca me imaginei uma pessoa depressiva. Mas agora, me tratando, vejo que não era feliz antes, não como eu pensava ser. Hoje sou muito mais feliz, então por que não olhar pra isso? Por que uma música, uma banda tem que ser sempre feliz? Temos que ser sinceros, e pode ser que o próximo disco seja mais solar, mas esse é o momento da lua, e eu diria até que da lua negra – a lua nova, mais profunda. E somos todas bruxas, né? Não tem como sair disso. É um lado que eu gosto, aceitei esse lado. Porque fiquei a vida toda com essa coisa de “ai, eu sou estranha”… E sou estranha mesmo, é isso aí. Mas sou uma estranha alegre, e acho importante levantar essa bola do mais profundo. Normalmente as compositoras mulheres têm essa coisa de falar de relacionamentos… Não vou dizer que nunca vou escrever sobre isso, mas não é meu interesse agora. Meu interesse é muito mais discutir o patriarcado, quem são as mulheres da América Latina, quem sou eu, quem são as mulheres que andam dentro de mim e quem são as que andam ao meu lado. E isso não é necessariamente mórbido, é mais profundo, questionador.

O som tem também uma coisa referente ao suingue, tanto da música brasileira como com a de outros países sul-americanos. Mas jamais aquela “latinidade’ caricata. Você disse que foi ao Circulart, e que isso teve um peso grande na melhor definição dessa equação musical. Como foi isso?
Pois é, essa coisa das referências Às vezes me incomodam, e em outras me trazem um porto seguro, um caminho. Acho que a criação tem que ser livre, então a influência latina vem, mas a gente tenta para que seja sutil. Quando fui para a (Feira) Circulart (na Colômbia), vi uma banda chilena tocando samba, e aquilo me deu uma agonia, tipo (eleva a voz): “Velho, por que eles estão fazendo isso? É muito ruim”. E não é isso que a gente quer fazer. Essa pitadinha aí atrás é um amor, uma admiração, me sinto fazendo parte disso. Mas sinto que estamos em um momento constante de mutação, e sinceramente não sei nem dizer o que a Consuelo é, musicalmente. Algumas músicas que têm surgido nem tem esse elemento. Acredito que todas as bandas passam por isso, a não ser aquelas que têm muito claro o conceito e a ideia rítmica. Temos um conceito que é maior que a música: é o feminino, em todas as suas formas. É o feminino, não o feminismo. Tem uma música do Vavá, “Jabuticabeira Radioativa”, que é uma coisa completamente estranha e acho que representa perfeitamente nosso som, mesmo sendo diferente de canções ritmicamente mais simples, como “A Hora do Vingador”

Quase todos os músicos da sua banda têm outros projetos musicais. Isso é algo comum em Brasília: bandas como Almirante Shiva, Judas, Joe Silhueta e Rios Voadores compartilham de integrantes, sempre o povo está em vários trabalhos. Isso tem a ver com o fato de Brasília ser, essencialmente, uma cidade pequena, ou é o caso de dizer que é uma cidade com poucas pessoas engajadas em criação musical autoral?
Então, acho que isso tem a ver com grupos de amigos. Toco com meus amigos – há mais de 20 anos a gente toca junto. A galera que é o Joe, Almirante, Rios, eles são outra galera – amigos nossos também, mas outra turma. Tem coisa melhor que ser adolescente e fazer uma banda com seus amigos? É meio que isso, sabe? Mas a gente se explora, se experimenta. Eu e o [Guilherme] Cobelo compomos juntos, e outras pessoas também. A coisa surge a princípio de amizade, de compatibilidade de ideias, de estilos, de admiração… É mais por aí. Porque Brasília tem muita gente foda, é muito legal. Eu recebi música de um monte de gente daqui: “Ah, fiz uma música que é a cara da Consuelo, deixa eu mandar para você”. E isso é maravilhoso!

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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