Master of None é certeiro em sua segunda temporada

por Pedro Tavares

O preparo do tortellini, prato típico das regiões de Bologna e Modena, na Itália, é extremamente complicado. Todas as etapas do processo requerem olhar atento, cautela e precisão. Desde o preparo da massa e seu descanso, até o enrolar de cada trouxinha, uma a uma, a operação preza pela perfeição. Não à toa, é uma arte comparada à dos origamis, dados o nível de detalhamento e a busca pela excelência.

Aziz Ansari, criador, diretor e protagonista de “Master of None”, parece ter levado esse ensinamento muito à sério após passar alguns meses em Modena, estudando para o segundo ano de sua criação para a Netflix. A série, que já era ótima, parece mais madura. O roteiro é certeiro, os personagens são mais bem explorados e a trilha sonora é apaixonante. Chama atenção, além disso, o nível de minúcias em cada história abordada.

É tudo pensado com o esmero com que se produz cada unidade do tortellini. O primeiro episódio, iniciado justamente com o protagonista Dev vivendo na Itália e aprendendo a fazer a clássica pasta, é uma clara homenagem ao neorrealismo italiano e, mais especificamente, ao filme “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica, expoente do movimento. Ansari, alinhado a seu tempo, ainda brinca com o ladrão moderno que, em vez de roubar uma bike, passa a mão em seu smartphone.

A mudança, aparentemente uma simples piada, é essencial para o entendimento da série, uma produção com inúmeras referências antigas, mas que é atual e deseja tratar dos problemas e anseios do ser humano de agora. Da mesma forma que há citações ao cinema italiano ou a “Manhattan” (1979), de Woody Allen, vemos brincadeiras com os programas culinários, que aumentam na televisão a cada dia. Personagens como Jeff, um pistolão da TV que acaba se mostrando, por trás das câmeras, um machista com as mulheres com quem trabalha (já ouviram essa história antes?), mostram essa preocupação com o atual.

Ainda exemplo desse frescor é o episódio “First Date”, no qual Dev aparece em diversos encontros, com diferentes mulheres que ele conheceu através de aplicativos de relacionamento no celular. Temos então um resumo muito engraçado e realíssimo de contrastes e peculiaridades que cada jantar romântico (ou nem tanto) pode oferecer. Na mesma linha, os diálogos com seu melhor amigo Arnold revelam muito sobre o que pode significar nas relações atuais uma mensagem com exclamações exageradas, um vídeo comendo sanduíche, ou um emoji de beijo.

Outra habilidade chamativa de “Master of None” é o modo como trata assuntos delicados. Aziz Ansari, americano de ascendência indiana, aborda temas como racismo, religião e homossexualidade de maneira diferente do que se vê nas produções atuais. Em vez de adotar um discurso raivoso, ele utiliza seu repertório de humor para expor as bizarrices de certos comportamentos e ridicularizar quem, ainda hoje, insiste em pensamentos atrasados e discursos de ódio. Para isso, segue contando com a participação de seus pais em atuações fantásticas para interpretarem os pais de Dev na série.

Destacam-se, nessa linha, os episódios “Religion” e “Thanksgiving”. O primeiro mostra a relação da família do protagonista com a religião muçulmana, as diferenças de crença entre as faixas etárias e a relação não só com algo divino, mas com nossas raízes pessoais. O segundo traz de volta a personagem Denise, outra amiga de Dev. É mostrada a amizade dos dois desde a infância, quando o menino indiano passava os feriados de Ação de Graças na casa da amiga. A descoberta de Denise sobre sua sexualidade vai aparecendo pouco a pouco, de forma natural, mas contundente. O episódio é recheado de pérolas: quando ela prefere dizer que é libanesa em vez de lésbica; na cena em que se abre para a mãe; no tratar sobre a tripla batalha de ser mulher, negra e gay; e na relação da família com as namoradas dela.

“New York, I Love You” também merece destaque entre os episódios desse segundo ano. Nele, os protagonistas mal aparecem, e acompanhamos um dia na vida de três pessoas: um porteiro, um taxista e uma balconista de loja de conveniência. Essa última personagem, surda, garante o que é provavelmente o momento mais impactante da temporada, quando temos por volta de 15 minutos em completo silêncio, talvez uma outra homenagem, dessa vez ao cinema mudo.

Interessante é que o arco principal da história não passa por nada disso. A inclusão da personagem Francesca no primeiro episódio abre os olhos do espectador para um possível romance que está por vir. Os elementos são conhecidos. O interesse crescente, o amor impossível, a distância. O assunto, porém, é tratado de forma delicada e extremamente detalhista.

A evolução do relacionamento, as conversas, o flerte, as barreiras. Tudo parece estar no lugar certo, como, digamos, um tortellini. A história segue até o momento final da temporada, quando ficamos com a dúvida do que realmente aconteceu. Certeza, somente, que se “Master of None” abocanhou o Emmy de melhor roteiro de comédia em seu primeiro ano, podemos nos preparar para novos Emmys neste ano. E, quem sabe, uma estrela no Guia Michelin também.

– Pedro Tavares (fb.com/pedro.tavares.779) é jornalista e assina o Rotina e Chinelos

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