Cinema: “Doutor Estranho” faz o espectador perder a noção do tempo

por Ana Clara Matta

Uma hora e cinquenta e cinco. Esse é o tempo em que toda a ação de “Doutor Estranho” (“Doctor Strange”, 2016), novo filme do Universo Marvel dirigido por Scott Derrickson, leva para passar diante dos nossos olhos. É um tempo bem similar ao tempo padrão de um filme comercial. Para produzir uma hora e cinquenta e cinco de um filme como “Doutor Estranho”, centenas de horas de imagens são capturadas por uma câmera e gravadas digitalmente em um HD. Essas centenas de horas filmadas resultam de um processo de desenvolvimento, produção e refinamento de anos. E um roteiro que é resumido em uma hora e cinquenta e cinco pelo cineasta pode representar décadas da vida do protagonista e, é claro, do roteirista.

O cinema é a arte de domar o tempo. Para isso, o cineasta tem uma bagagem de truques. Mágica, você pode dizer. Você não será a primeira pessoa a cunhar o termo “magia do cinema”. Ele utiliza o slow motion para fazer a imagem pairar por mais tempo e impregnar a tela. Ele corta para causar saltos temporais quase acrobáticos. Ele rebobina a fita para voltar o relógio. Scott Derrickson e Stephen Strange são almas análogas. Dois homens que enfrentam as limitações inerentes aos seus meios usando a magia para controlar o tempo. O cinema é como a Dimensão Espelhada, o Plano Astral, um local onde luz sem forma e volume é projetado, onde a ação não depende do que acontece no mundo real e apenas o afeta colateralmente. Um lugar de fantasmas, e de manipulação infinita e lúdica da imagem, em que uma inclinação da câmera pode fazer um homem subir por paredes ou a lente certa pode transformar uma cidade em um fractal.

Você pode imaginar que o Universo Marvel e o “cinema comercial” (termo usado pelos detratores com uma acidez na ponta da língua inconfundível) são lares estranhos (sem a intenção do trocadilho) para um filme de ambição metalinguística e artística desse porte. Bem, para que haja subversão da fórmula, deve existir uma forma. Os orçamentos de filmes como “Doutor Estranho” convidam o diretor a uma abordagem mais visualmente ousada, menos presa aos paradigmas do “bom gosto” consolidados pelas vanguardas realistas que desde os anos 60 dominam a nossa noção do que é cinema “de arte”. O cinema que pensa o cinema é definitivamente de arte, e é difícil discutir com a imagem Chapliniana da capa de Strange ganhando vida, ou com o desfecho do filme, que afirma com gosto que pode, sim, manipular o tempo e a imagem. “Doutor Estranho” vence seu maior inimigo com a ferramenta mais pueril do cinema.

O elenco de “Doutor Estranho” também desafia noções pré-concebidas. Tilda Swinton interpreta a Anciã como uma figura de ambiguidade intensa, sem gênero, etnia ou código moral definido. Cada personagem possui uma origem geográfica, e todos possuem o mesmo senso de inadequação em lugar, em fisionomia, em capacidades. E no meio de tudo isso, Rachel McAdams interpreta uma mocinha que é introduzida no filme como uma médica bem sucedida, a líder de seu ambiente de trabalho, e um personagem absolutamente tridimensional.

Durante a sessão de “Doutor Estranho”, o personagem principal olha várias vezes para um relógio, monitorando o tempo. Você não olha para o relógio, impaciente, em momento algum, durante a mesma sessão. Você perde a noção do tempo, envolto por uma hora e cinquenta e cinco minutos que correm macios, como qualquer entretenimento de primeira classe deve correr. Mas as reflexões que o filme irá gerar em sua mente sobre o tempo e a única forma de magia que conhecemos, e que a maior parte daqueles que a possuem preferem nem explorar a fundo (diretores que se prendem em diversas amarras em seus filmes), vão muito além da deliciosa sensação escapista de ver o relógio correr.

– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Rock ‘n’ Beats e do Ovo de Fantasma

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