Festival Brasileiro de Música de Rua 2016

por Leonardo Vinhas

Fotos do Facebook oficial do evento: confira galeria

A quinta edição do Festival Brasileiro de Música de Rua, que se realiza anualmente na Serra Gaúcha, foi a maior de sua história. Neste ano, mais de 100 shows foram realizados nas cidades de Caxias do Sul (a sede do evento), Flores da Cunha, Bento Gonçalves, Farroupilha, Antonio Prado e Garibaldi – essa, pela primeira vez no festival. Os shows aumentaram mesmo com a redução do número de municípios participantes – Nova Petrópolis, Vacaria e São Marcos, presentes no ano anterior, não tomaram parte em 2016. Também a infraestrutura se fortaleceu: na maioria das datas (o festival aconteceu ininterruptamente entre 15 e 24 de abril), vários food trucks marcaram presença, houve tendas e coberturas para abrigarem o público em caso de chuva, palcos foram montados em todas as cidades (nos anos anteriores, os artistas tocavam diretamente nas ruas). E claro, uma escalação mais ampla.

A chilena Pascuala Ilabaca, o colombiano Andrés Correa e a uruguaia PHORO estiveram entre os artistas internacionais presentes no evento. Nicolás Molina, também charrua, apresentou duas formações distintas de seu projeto Molina y Los Cósmicos: uma com o brasileiro Gabriel Balbinot (Spangled Shore) no banjo e guitarra e a conterrânea Patricia Horovitz (a já citada PHORO) nos teclados e vozes, e outra em que a esse trio se somavam os caxienses da Bob ShuT (“Já faz parte do conceito de ‘Molina y Los Cósmicos’ que os músicos possam ser de vários lugares, quando os integrantes da banda regular não podem viajar”, explica Nicolás). O resto do elenco provinha majoritariamente do Rio Grande do Sul, com nomes mais (os porto-alegrenses Nenhum de Nós e Vera Loca, os caxienses Cuscobayo) ou menos conhecidos, dos mais variados gêneros.

1ª etapa: Serra Gaúcha
Nesse espírito plural, a abertura do festival, em Garibaldi, foi ilustrativa: quase 4 mil pessoas assistiram ao rockabilly reverente e convidativo de Lennon Z & The Sickboys, a eletrônica sensual de PHORO, a síntese indie-folk de Molina, a obviedade erudita do Quarteto de Cellos e o rock gaúcho da Vera Loca. Mas a grande atração do dia foi o Yangos, um quarteto que mistura chamamés, milongas, chacareras e outros ritmos nos quais a combinação de acordeão, bombo leguero (ou cajón), piano e violão soa bem. E como soa: a abordagem vigorosa e nada acadêmica dava, logo de cara, a sensação de já se ter visto o melhor show do festival. Não que o resto tenha sido só epílogo: PHORO entregou uma excelente performance mesmo com o excessivo aparato de luzes que tiram a força de seu lado sombrio e Lennon Z fez uma bela festa rocker, em que o respeito ao passado não engessava a energia bruta de suas canções.

Além da arte que lhe dá nome, o interessante do Música de Rua está na possibilidade de explorar turisticamente as cidades participantes, algo que às vezes precisa ser estimulado até entre os locais (houve músico caxiense que reconheceu nunca ter visitado uma ou outra cidade). Garibaldi, a “terra do espumante”, oferece mais que a borbulhante bebida: em suas ruas (em especial a Buarque de Macedo), um grande número de prédios históricos se enfileiram, preservados ou restaurados, enquanto a vegetação serrana desenha contornos verdes no horizonte. Bons cafés (alguns, como o Luna Park, têm até a própria cerveja), um sem-número de pessoas favorecidas pela genética e o relevo irregular convidam a um passeio sem pressa pela região, antes de o visitante se estabelecer na praça Loureiro da Silva, tradicional espaço de eventos que abrigou o festival . O curioso é que, dos dois palcos montados, um deles ficou à frente da imagem de Nossa Senhora de Caravaggio, diante da qual muitos moradores paravam para persignar-se… mesmo que ali estivessem tocando Lennon Z & The Sickboys.

Já Flores da Cunha, a autoproclamada maior produtora de vinhos do país, é menor e menos preservada historicamente, mas tem na Praça da Bandeira, recém-reformada, maior vocação para receber shows. Até por isso foi uma pena que atraísse menor público (2500 pessoas, segundo a organização) – boa parte dele interessado apenas na Vera Loca. O horário particular (os shows começaram às 15h, ao contrário de Garibaldi, onde tudo teve início às 19h) e o calor forte, atípico para o outono serrano, parecem ter sido os principais responsáveis para o movimento reduzido no sábado. Novamente, a Vera Loca foi a headliner, e a caretice de seus fãs, jovens mancebos anabolizados ou pós-púberes de salto alto e chapinha no cabelo, prenunciava que a apresentação seria a mesma de sempre (“De onde menos se espera, é daí mesmo que não sai nada”, disse o Barão de Itararé). As novidades na escalação seriam o Cristian Rigon Blues Trio e o quinteto Maragá, ambos de Caxias do Sul, enquanto Lennon Z e Yangos ficaram de fora.

Em Bento Gonçalves, no domingo, o festival ocorreu na Via del Vino, uma espécie de “praça-calçadão” bastante ampla e florida. A arquitetura observada a partir dali traz os dois aspectos contrastantes do município: de um lado, uma memória histórica onde cabe certa simplicidade bucólica, de outro uma modernidade asséptica e padronizada. O “almoço de domingo em família” parece ser uma instituição sagrada e inviolável, por isso o público era de uns poucos passantes ao meio-dia, quando o DJ Centollas, de Farroupilha (RS), mandava uma apetecível seleção de obscuridades da música brasileira dançante. O movimento só foi aumentar lá pelo meio da tarde, durante a apresentação da Maragá. Também de Caxias do Sul, o Zingado – grupo de 13 percussionistas/cantores – rivalizou com o Yangos no encantamento festivaleiro. O que o grupo faz merece o termo “espetáculo”: há, sim, pesquisa e direção, mas o resultado não é nada protocolar. Ao contrário, é intenso, cheio de suor e sorrisos, garantindo aquele arrepio nos pelos e aquele calor na pele que só a boa percussão consegue proporcionar.

Caxias ainda cederia outros três artistas: o Quarteto de Cellos, a Cuscobayo e o Pura Curtição. A Cusco não defraudou seus fãs, um grupo cada vez crescente de seguidores que acompanham cada passo da banda. Mais afiados no palco, apresentaram seus hits, de grande força local. O público recém-saído da adolescência, em especial, cantava junto cada canção. Curiosamente, entre os muitos adolescentes presentes havia vários casais de lésbicas, em um clima de diversidade que contradiz o estereótipo conservador da região. Já o Pura Curtição é uma banda gaúcha de pagode retrô (sua sonoridade remete aos nomes noventistas do gênero, como Raça Negra e Negritude Jr.). Empatia e sinceridade não faltam ao grupo, mas não dá para negar que o gênero destoou bastante da escalação do dia.

Ao fim do primeiro final de semana, com as apresentações repetidas de algumas atrações, já era possível estabelecer algumas constatações: a consistência do trabalho de PHORO transcende possíveis condições adversas para exibição de sua música – mesmo na luz do dia e sem as projeções que fazem parte de seu show habitual, sua performance e suas composições garantem a sedução do público, e ajudam a tornar temas como “Drive Into the Night” e “Laurel” em pequenos hits; Nico Molina solta-se mais quanto mais emenda um show no outro, e é curioso ver sua presença quase estoica contrastar com o entusiasmo de showman de Gabriel Balbinot; o Quarteto de Cellos se sai melhor no repertório erudito que nas versões para temas de Led Zeppelin e Guns ‘n’ Roses (ainda que sua “Californication” se destaque), porém ainda precisa amadurecer muito antes de tomar voos mais ousados; já o Maragá, na proposta de unir música nordestina e gaúcha, pode crescer se abandonar os próprios clichês “de raiz”.

A Vera Loca, headliner dos três primeiros dias, merece menção à parte. Sua música reúne tudo que já foi usado como argumento para criticar o clichê do “rock gaúcho”: afetação rock star, melodias pobres, apropriações do pior rock argentino (a versão para a sofrível “Lamento Boliviano”, dos argentinos Enanitos Verdes, é o maior sucesso da banda), covers óbvios e mal-executados (“Back In Black”, em especial, foi de doer). Triste ver que era a banda mais esperada, mas com o país esfacelado pelos eventos recentes, melhor não elaborar conjecturas sociológicas sobre isso, sob risco de causar depressão. Mas fica a dica: quando aquele seu amigo saudosista começar a reclamar nas redes sociais que “as rádios não tocam mais rock”, lembre-o que, se for para tocar Vera Loca, é melhor manter o rock longe do dial.

2ª etapa: Espaços públicos de Caxias do Sul
De 18 a 20, várias apresentações isoladas aconteceram em diversos horários, em diferentes locais de Caxias do Sul. As estações de ônibus Ópera, Floresta e Imigrante, as dependências da FSG (Faculdade da Serra Gaúcha) e a praça Dante Aligheri receberam muitos dos artistas que já haviam tocado nos dias anteriores, além de novas atrações, todas da região. Dos “reincidentes”, Yangos confirmou sua força tocando em plena hora do rush (18h) na Estação Floresta, assim como Lennon Z, em formato semiacústico, o fez na Estação Imigrante. Molina entregou uma apresentação mais longa na praça Dante, começando sozinho e depois recebendo o auxílio de Gabriel Balbinot e Caramuru Baumgartner (Tagore). Tagore Suassuna, aliás, apareceu de surpresa (não era parte da programação), e fez uma apresentação breve e carismática, sem microfonação, parando transeuntes famintos em plena hora do almoço caxiense.

“Estamos hackeando o festival,”, diria Tagore, mais tarde, em tom de brincadeira. Populares na região, ele e sua banda encurtaram a distância geográfica e cultural entre Pernambuco e as colinas do Sul, de modo que estavam usando a cidade como base para uma miniturnê pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina. As “hackeadas” se tornariam uma constante no festival – e seriam recebidas com entusiasmo crescente a cada nova intervenção.

A música erudita foi representada por dois duos: Fábio Chagas (diretor do Quarteto de Cellos) & Rodrigo Maciel e Felipe Karam & Leonel Costa. Enquanto a primeira dupla insistia num repertório previsível (com direito a versões comportadas de Beatles que davam um infeliz clima de “Hooked On Classics” para a apresentação), o segundo apresentava maior variedade e envolvimento, em um repertório menos óbvio e sem apelações popularescas. Houve ainda a cantora sertaneja mirim Nicolle Santos, os b-boys do Essência Crew, os tons góticos do Supervão (de São Leopoldo – RS), o trio de jazz fusion Magabarat (em formato acústico, trocando os sintetizadores por um acordeão, também “hackeando” o festival), o hip-hop old school do DJ Hood e o pop folk Cris Romagna, além de uma noite no Centro Cultural Ordovás com mais rap (Poetas Divilas, Noclap, Rap 054 e Mano Natu), e apresentações marcantes do Quarteto de Cellos na APAE e na APADEV.

Duas notas lamentáveis ocorreram nos shows da Estação Imigrante no dia 19. Gus Sickboy, guitarrista da Lennon Z & The Sickboys Trio, chegou apenas para as últimas três canções de sua banda – para visível irritação dos demais integrantes. O desfalque já havia acontecido em Garibaldi durante toda a apresentação. Mas pior ainda foi atitude de um integrante da Cuscobayo, primeiro grupo a se apresentar. O percussionista Marcos Sandoval, residente da capital gaúcha, disse, frente a público e organização: “Vocês tiram um cara de Porto Alegre para vir tocar nessa bosta?”. Uma atitude especialmente incômoda quando se observa as letras da banda, que falam de fazer arte nas ruas, celebrar a cidade, ter humildade e afins. Questionada a respeito, a banda reconheceu a grosseria, mas se justificou dizendo que a irritação do percussionista vinha do fato de o público não ter acesso irrestrito ao local. Explica-se: o terminal de integração de transporte urbano não permite a entrada de quem não é passageiro dos ônibus – como costuma ser em qualquer terminal do tipo. Havia muitos seguidores da Cusco que se dirigiram ao local para ver a apresentação, e para poder assisti-lo de perto, teriam que pagar passagem, ou seja, R$ 3,40 por um show, se fosse para vê-lo na condição de “não-usuário” do transporte.

3ª etapa: De volta à Serra
No dia 20, a pequena Antonio Prado teve uma versão reduzida da “caravana”, com dois food trucks locais e shows de PHORO, Molina, Andrés Correa e Maragá. A “caravana” seria remontada na íntegra na quinta, dia 20, em Farroupilha. Ou quase: uma forte chuva e o frio que caracterizam a região resolveram aparecer depois de quase duas semanas de sol e calor intensos. Como o aguaceiro veio na hora da montagem das estruturas, isso prejudicou a estrutura energética disponibilizada para os food trucks, o que fez com que todos os caminhões, exceto o Salvador Brew Kombi, abandonassem o local antes que se solucionasse o problema. A chuva e a ausência de opções de comida espantaram o público, fazendo com que as primeiras atrações se apresentassem para menos de 50 pessoas na Praça Emancipação. Para piorar, a equipe de som custou a se acertar, prejudicando a todos os artistas, e mais seriamente os shows da Supervão e de Molina.

Porém, mais perto do fim da tarde e já sem precipitações atmosféricas, o público já havia retornado e pode ver a melhor apresentação de PHORO em todo o festival. No escuro, com as luzes mais sombrias e adequadas, seus movimentos sensuais e sua estética urbana criavam o diálogo perfeito com sua música. Um último show da Vera Loca fecharia a noite, mas eu já havia assistido três apresentações deles na mesma semana, e três vezes Vera Loca numa vida já é demais, que dizer numa semana. Como Caxias tem bons bares, com vinho a preço acessível e boa comida, pareceu mais prudente e saudável retornar para lá assim que começaram a soar os primeiros acordes de “Grafitti”, versão para uma canção da banda argentina Inmigrantes. Outro cover pífio de banda ruim da Argentina? Pois é: ninguém pode acusar a Vera Loca de ser irregular ou incoerente.

4ª etapa: Estação Férrea de Caxias do Sul
Os três dias de encerramento do festival aconteceram na Estação Férrea de Caxias do Sul, prédio histórico numa região que se tornou boêmia e algo hypada. A estrutura montada ali refletia o tom desta quinta edição: o aspecto “rueiro” e aberto estava nas barraquinhas de vendedores de artesanato, discos e até de pipoca, enquanto os food trucks, as lonas e o palco mais alto caracterizavam um grande evento, mais corporativo e com diferenciação mais evidente entre artista e público.

A primeira noite, mais homogênea, começou com atraso, mas a apresentação inesquecível da Supervão, entrosada e hipnótica, fez com quem ninguém se importasse muito com isso. Lennon Z & The Sickboys e o Conjunto Bluegrass Porto-Alegrense provaram que é possível aos brasileiros honrar com qualidade tradições da música norte-americana. Jogando em casa, a Cuscobayo contou com a participação do público para dar volume às suas vozes e confirmar velhos e novos hits locais, e ainda teve Tagore e Caramuru enriquecendo as versões de “Dakar” e “Vagabundo” – os pernambucanos ainda mandaram, como duo, a inédita “Festa na Rua” e, junto a Luciano Balen (Projeto Ccoma e organizador do festival) na bateria, uma versão raivosa de “Poliglota”. A Pura Curtição fechou a noite na Estação, ainda mais segura e festeira que em Bento Gonçalves e nas estações, mas a casa noturna Zerocincoquatro ainda teria os Djs Muzak e patriack tor4 como convidados do festival, numa festa que combinou uma discotecagem fina de musica latino-americana (Brasil incluído) e africana.

Sábado foi o dia das maiores surpresas, e mesmo a chuva, que insistiu em cair até o meio da tarde, não impediu que tanto as palestras e debates da Incubadora de Música (ligada ao festival) quanto os shows tivesse boa presença do público. Zingado e Baque dos Bugres, abriram os trabalhos na grama mesmo, com um maracatu pesado e de responsa, e logo o Zingado sozinho subiu ao palco para mandar jongos e outros batuques de Minas Gerais e São Paulo. Junto ao Sonidos Flamenco (um quarteto musical acompanhado por três “bailadoras”) e a Yangos, que também se apresentaram no dia, o Zingado provou que Caxias do Sul tem uma cena musical muito poderosa no que se refere à recuperação e transformação de gêneros folclóricos, levando a tradição para adiante e proporcionando a evolução dos gêneros com os quais escolheram trabalhar. Se puder assistir a qualquer um dos três ao vivo, não desperdice a oportunidade. Ou melhor: vá em busca deles, sem esperar que cheguem até você. A experiência pode ser transformadora.

Como foi transformadora, uma vez mais, a atuação das Meninas Cantoras de Nova Petrópolis. Regidas por Cristiane Ferronato, uma das responsáveis pelo Zingado, o grupo subverte a herança religiosa dos corais e faz uma música que te pega pelas entranhas e a partir daí te abre a alma. Não é exagero: houve gente chorando ao fim do show. “Ainda tratam coro como música de igreja, mas isso é o passado, não faz mais sentido tratá-lo dessa forma”, disse Cristiane após o show. E ela está certa, mas ao mesmo tempo, não dá para negar que o resultado obtido pelas meninas é profundo a ponto de ser entendido como espiritual. Um repórter paulista ficou um tempo sentado nos trilhos da estação tentando entender o que tinha lhe acontecido. Os últimos informes relatam que ele ainda não conseguiu entender.

Num dia que contou com 21 apresentações musicais, ainda houve outros destaques. O Elefante Branco, nome escolhido pelo músico e artista performático porto-alegrense Marcelo Armani, pirou cabeções com baixas frequências, samples de discursos políticos e uma máscara da “Branca de Neve negra” (!). Andrés Correa fez uma apresentação tão breve quanto carismática, que incluiu “Realidad”, uma verdadeira obra-prima pop, raramente executada ao vivo. O colombiano ganhou o reforço de Cris Romagna, Nicolas Molina e Gabriel Balbinot em duas canções – uma delas foi, generosamente, uma boa versão para “Happiness”, do garibaldense Romagna. Molina, Balbinot e PHORO (que também fez um ótimo set solo) juntaram-se a Bob ShuT para um show em tom “punk folk”, misturando o repertório de todos (menos da moça). Eles foram precedidos por uma jam totalmente inesperada entre Kako Xavier (músico pelotense dedicado à tradição afro-gaúcha), Luciano Balen, Tagore Suassuna, Caramuru Baumgartner e Nico Molina, em versões groovadas e psicodélicas de “Tropicana” (Alceu Valença) e “Táxi Lunar” (Geraldo Azevedo). A “barreira invisível” que separava o público do palco sumiu, e o clima de festa se instalou, se espalhou durante o show de Molina + Bob ShuT e não foi embora até que o DJ set de patrick tor4, que encerrou a noite, chegasse ao fim.

No domingo, tanto o frio como a chuva se intensificaram. O clima e o adiantado da hora (13h) fizeram com que o cantautor local Marco Gottinari tivesse uma plateia diminuta. Uma pena: suas composições de rara sensibilidade não permitem a restrição de rótulos (“folk” é para lá de injusto para defini-lo, “MPB” mais ainda) e certamente se conectariam com um público grande, caso a ele fosse dado um horário melhor. Ainda entre os artistas locais: Tatieli Bueno é um exemplo de uma grande voz desperdiçada em um repertório careta e “gauchista” (não confundir com gauchesco); a Maragá, melhor a cada novo toque, precisa apenas de mais estrada para atingir seu potencial; Poetas Divilas é uma força rap que não faz feio frente a nenhum grande nome nacional do gênero, e seu discurso é mais afiado e sincero que muitos desses figurões – Chiquinho, o líder do grupo, é educador e faz dos presídios e dos bairros pobres sua sala de aula. A dupla Mone e Wili e o veterano Tio Batista são artistas com obras voltadas ao público infantil, porém com substância mais que suficiente para encantar e divertir adultos também. Já Fabio Chagas e Rodrigo Maciel insistem no repertório óbvio e pop, e fica difícil “não lembrar de algo tipo ‘Beatles for babies’”, como disse um dos espectadores.

Porém, as atrações mais esperadas do dia vinham de fora. A chilena Pascuala Ilabaca mistura cumbia, marinera e escalas indianas para criar uma música tão andina quanto universal, e fez, com sua presença de palco e sua banda assombrosamente entregue à execução, um dos grandes shows do ano. De Osório (RS), a Tribo Maçambiqueira ecoa a tradição africana que o Rio Grande do Sul insiste em ignorar e mostra um trabalho substancial, porém ainda bruto, que se beneficiaria bastante de uma boa produção para fazer seus tambores e violões soarem mais fortes. E o Nenhum de Nós… bem, “o tempo passa e nem tudo fica”, não é mesmo? A música deles ficou – no passado. É triste ver o quanto a banda de Thedy Côrrea se tornou burocrata de sua própria notoriedade: embora não tenham nenhum álbum brilhante, já mostraram que podem ser mais arriscados e pessoais em vários momentos de sua carreira. Em vez de dialogar com a proposta do festival e explorar esse lado, preferiram apenas executar com preguiçosa precisão os sucessos que apelam para a nostalgia. Dá certo? Pelo público, que foi o maior do festival, parece que sim – ao menos para manter as contas em dia. Entretanto, não deixa de ser uma pena saber que quem pode mais faz tão menos.

Ter um dinossauro do rock gaúcho como headliner de um festival que dura 10 dias e se propõe a levantar várias pautas sociais e humanitárias é emblemático dessa edição de 2016 do Música de Rua. Ao final, mais de 30 mil pessoas prestigiaram o festival ao longo de sua duração, mas esse é um bom número se levarmos em conta que tanta gente acaba demandando palcos grandes, seguranças e até grades de proteção?

Também vale questionar se a trabalhos tão iniciantes como o Quarteto de Cellos ou a cantora mirim Nicolle Santos caberiam tantas apresentações neste momento de suas carreiras, em que ainda precisam de mais preparação e experiência. Vale também refletir se tantas apresentações não acabam dispersando a atenção do público, e se não seria melhor ter menos artistas, dando a eles maior tempo para tocar (algumas apresentações duravam menos de 20 minutos). Mais que tudo, vale pensar se a integração que a rua proporciona não é mais importante que atrair maior número de pessoas: ter o Nenhum de Nós e a Vera Loca pode ajudar a colocar o festival no mesmo patamar de uma Festa da Uva em termos de popularidade, mas isso pouco colabora para promover a integração cultural (boa parte dos fãs desses artistas iam apenas para vê-los, e não para desfrutar do festival como um todo), a diversificação das propostas culturais e o respeito às causas humanitárias (o sexismo adolescente da Vera Loca é especialmente constrangedor).

Por outro lado, houve acertos notáveis, como o destaque a artistas que não se valem da estrutura da canção pop (os artistas de música instrumental e de eletrônica), a possibilidade de integrar músicos de procedências e estilos diferentes em jams (combinadas previamente ou de última hora), a oportunidade para artistas em formação de se aperfeiçoarem “ao vivo e a cores” (a Maragá sendo o caso mais evidente e que mais se beneficiou). Além disso, não se pode esquecer que ocorreram excelentes shows (e não foram poucos os inesquecíveis), que os debates e oficinas da Incubadora de Música tiveram boa repercussão entre artistas, produtores e pesquisadores locais; e que, evidentemente, um evento de dez dias dedicado à música já é um marco por si só.

O crescimento da estrutura parece colocar o Festival Brasileiro de Música de Rua frente a uma bifurcação: ou assume-se como uma festa grande assegurada no calendário turístico, dedicada a oferecer um evento completo no qual a música é um pretexto; ou retoma a rua como cerne e a música como razão de ser e como ponte para integrar culturas e ideias diferentes. De qualquer modo, sua relevância no momento atual do cenário independente é inquestionável, e os resultados colhidos a partir dele podem ter impacto amplamente positivo a longo prazo.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Leia também:
– Saiba como foi a edição 2015 do Festival Brasileiro de Música de Rua (aqui)
– Download gratuito: baixe a coletânea “Somos Todos Latinos” (aqui)
– “Somos Todos Latinos”: compare as versões originais com as da coletânea (aqui)

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