Antony and the Ohnos ao vivo em SP

Texto, fotos e vídeo por Bruno Capelas

A lição é conhecida: um dos melhores jeitos de se entender um artista é buscar as influências de seu trabalho e, a partir delas, destrinchar as citações, as referências e até mesmo as negações que são feitas nas novas obras. Na primeira noite do segundo semestre de 2015, quem esteve no Sesc Vila Mariana pode testemunhar uma bela amostra do encontro feitiço e feiticeiro no espetáculo de Antony and the Ohnos. Projeto paralelo da cantora Antony Hegarty (famosa com o grupo Antony and the Johnsons) com o dançarino japonês Yoshito Ohno, a proposta artística da noite poderia soar à primeira vista como “apenas para entendidos”, mas felizmente não foi isso o que se viu no palco do teatro da zona sul de São Paulo.

Momento Wikipedia: Yoshito Ohno é filho de Kazuo Ohno, um dos criadores do movimento butô, dança japonesa que concilia a tradição nipônica com o modernismo ocidental da primeira metade do século XX, no espírito de inadequação de identidade que parecia muito caro à Terra do Sol Nascente após o fim da Segunda Guerra Mundial. Inadequação essa que também é um tema caro a Antony Hegarty, uma compositora confessional de voz etérea e marcada pelo sofrimento. Nascido homem e depois de anos se apresentando como cantor, hoje a artista diz se identificar com o gênero feminino, em uma trajetória envolvida por dúvida e autoaceitação. É algo fácil de perceber em uma de suas principais canções, “For Today I Am Boy”, em que aparecem versos como “Quando eu crescer, serei uma mulher bonita / Mas, por hoje, eu sou um menino”.

No (bem montado e explicativo) livreto de programa que estava disponível antes do início do espetáculo, Antony disserta sobre a inspiração que o movimento butô teve em sua vida. É um longo caminho: do fascínio de ver um pôster de Kazuo Ohno em uma escola de artes na adolescência a até estampar a capa de um de seus discos, “The Crying Light”, lançado em 2009, com a foto do dançarino japonês. No espetáculo que aportou em São Paulo (e viu seus ingressos esgotarem rapidamente, como parece costume na rede Sesc), a proposta era unir as canções de Antony, ao piano e acompanhado por um instrumentista, às performances de Yoshito, um dos principais representantes do butô hoje em dia.

Para quem foi ao show querendo ouvir as grandes canções de “I Am A Bird Now”, disco de 2008 que valeu a Antony o Mercury Prize, um dos principais prêmios de música do Reino Unido, os primeiros instantes do espetáculo podem ter sido chocantes. Através de uma projeção no palco do teatro, foram exibidas imagens documentais das performances de Kazuo Ohno, acompanhadas de uma trilha sonora minimalista – para não iniciados, uma receita perfeita para o sono após um longo dia no país de Cunha e Cristiano… (como era o nome mesmo?).

Quando as cortinas se ergueram, no entanto, o que se viu – e especialmente, se ouviu – foi algo bem diferente. Ao abrir a noite com “Hope There’s Someone”, Antony já mostrou ao que veio: despida de boa parte do arranjo original do álbum de 2008, a canção ganhou contornos ainda mais dramáticos graças ao apelo do piano e da voz da cantora. Antony manteria a mesma tônica por todo o espetáculo: se, para a maioria dos presentes (e bem como para este escritor), faltaria repertório para entender a ligação de suas canções com a performance de Yoshito Ohno, sobraria emoção e voz por parte da britânica.

Não que Yoshito deixasse a desejar com sua performance. No entanto, entender as filigranas de cada uma de suas coreografias e improvisos era um desafio para boa parte dos presentes. Em especial, aos espectadores mais afastados do palco, que, pela distância, pouco eram capazes de perceber a delicadeza de seus movimentos ao manusear um espelho, uma rosa, uma máscara de dragão ou um pequeno fantoche que mexia apenas os dedos, fazendo a riqueza do butô perder parte de seu brilho.

No que diz respeito à parte essencialmente musical, foi uma grande noite. Ao contrário do que faz com o Antony and the Johnsons, a cantora privilegiou seu repertório mais antigo, centrando-se no disco que lhe deu fama e no trabalho que homenageia Kazuo Ohno – para deleite dos fãs. De “I Am A Bird Now” também apareceram “My Lady Story” e “You Are My Sister”, ambas em versões despidas e emocionais, enquanto de “Crying Light” surgiram “Epilepsy is Dancing” e a faixa-título, que encerrou a primeira parte do show sob muitos aplausos.

Após uma breve pausa – e a exibição de mais um clipe com imagens de Kazuo Ohno –, Antony e Yoshito voltaram para uma última canção. Com arranjo intimista, a escolha parecia muito adequada ao momento de devoção da cantora à arte que lhe inspirou: “Can’t Help Falling in Love”, em interpretação ovacionada por mais de 5 minutos. A plateia – que incluía personalidades como o médico Drauzio Varella, a cantora Tulipa Ruiz e até mesmo o presidente do Sesc, Danilo Santos de Miranda – até pediu bis, mas recebeu apenas um grande “muito obrigado” dos artistas, que entraram mudos e saíram calados do palco.

Oito anos após sua primeira passagem pelo Brasil no finado TIM Festival, Antony exibiu em São Paulo um espetáculo muito pessoal. Mais do que a chance de simplesmente vê-la, o que se viu na noite de 1º de julho foi uma oportunidade de entender um pouco mais de sua personalidade complexa – até mesmo quem não fala inglês é capaz de compreender o sofrimento da cantora, em um dos grandes prazeres da música pop – através de uma de suas principais influências. É um raro momento ver um artista incrível descer de seu pedestal para mostrar sua devoção a algo novo – e mesmo quem nunca tinha ouvido falar em butô saiu um bocado convertido do Sesc Vila Mariana. Aos fãs de música, no entanto, ficou um gostinho de quero mais: agora, quando é que ela traz os Johnsons para rever o Brasil? Se isso acontecer, fique atento e faça o possível para ir: você (e seu coração) não vão se arrepender.

Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e assina o blog Pergunte ao Pop.

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