A nova cena portuguesa: Éme

por Pedro Salgado, de Lisboa

João Marcelo, o compositor e cantor lisboeta conhecido como Éme, define-se como um intérprete de música popular e um fã confesso de Bob Dylan e da música norte-americana. Ao longo desta conversa, numa mesa do restaurante Maracanã, no centro de Lisboa, João Marcelo revelou uma enorme ponderação e concentração nas respostas, destacando a vontade de contar histórias através das canções e enfatizando o imediatismo da sua arte. “De uma forma geral, tento fazer música para aqui e agora”, explica.

Como vocalista do grupo Os Passos em Volta, Marcelo também faz parte da família Cafetra Records (selo independente português que integra nomes como o Pega Monstro, Go Suck a Fuck e Putas Bêbadas, entre outros) e sob o nome artístico de Éme lançou o EP “Passa-se Alguma Coisa Estranha Aqui”, em 2011, e no ano seguinte apresentou seu álbum de estreia, “Gância”, reafirmando uma vontade permanente de escrever canções e apostando na colaboração dos músicos com quem trabalha.

“O Último Siso” (2014), seu disco mais recente, está disponível para audição em oeme.bandcamp.com e revela uma evolução nas composições, ancoradas na guitarra elétrica, órgão, baixo e bateria, onde Marcelo transmite uma ideia de autenticidade emocional e coesão sonora, flertando com o pop dos anos 80 (“Cara Que Tenho”) ou revelando uma relação de amor-ódio com a cidade de Lisboa, na excelente “Lisa”. E a faixa “Temos Medo”, sobre a atual situação de crise econômica no país, é apresentada pelo músico de uma forma aberta, sem moralismos, na qual “deixa espaço à livre interpretação das pessoas”.

Outro aspeto importante do seu trabalho é a crescente habilidade para gerar boas melodias, associadas com a língua e a canção, procurando a maturação da palavra em relação à forma como tem vivido. “Preciso cada vez mais ler livros para encontrar histórias e temas legais”, conta. A tentativa de criar uma maior ligação entre a música e a letra resulta da sua formação acadêmica na área de literatura (cursou Estudos Artísticos, na cadeira de Artes e Culturas Comparadas, na Faculdade de Letras de Lisboa), onde desenvolveu a capacidade de misturar conceitos.

Realçando o fato de que “A música não é uma questão de língua, mas sim de linguagem”, Marcelo pretende visitar o Brasil para tocar ou mesmo como turista e acredita na possibilidade do público brasileiro apreciar suas canções: “Espero que gostem de escutar um jovem escritor de canções português com um sotaque estranho, numa realidade musical paralela à sua”. De Lisboa para o Brasil, João Marcelo conversou com o Scream & Yell sobre a sua carreira. Confira:

Sinto que em “O Último Siso” você conseguiu adaptar melhor as canções à sua personalidade. Concorda?
Não sei como as outras pessoas trabalham mas, no meu caso, o processo de composição passa sempre por uma tentativa de me visitar conscientemente. Embora eu não seja obsessivo, procuro encontrar em mim aquilo que pode ser colocado na música. Se isso reflete a minha personalidade então talvez seja esse o rumo e tento explorar, nomeadamente, contradições ou aspetos engraçados. Eu gosto de brincar um pouco, mas criando vários sentidos. Para mim, o ócio é o melhor caminho e a música popular é um pouco assim, porque não é uma construção acadêmica. Sem futilizar as pessoas, gosto de me divertir e também que as pessoas desfrutem disso. É uma progressão que não termina nesse disco e irá continuar sempre.

Em faixas como “Um Lugar” e “Cara Que Tenho”, você se aproxima do pop com eficácia. É um caminho que pretende seguir no futuro?
Espero que sim. Para mim o pop nunca foi depreciativo nem um estilo musical. É tudo música popular e trata as pessoas de igual forma. O meu percurso resulta de várias influências, isso é algo positivo e considero ser uma vantagem. No trabalho que estou desenvolvendo, escuto muito pop, sou fanático da sua cultura, e até enquadro Zeca Afonso nesse patamar, porque é música popular. O mesmo posso dizer do Chico Buarque e Caetano Veloso. Quando penso em Michael Jackson, por exemplo, recordo-me do incrível escritor de canções que ele era, independentemente do cânone considerado. De certa forma, sinto que quando o meu trabalho é mais coeso, maior é a aprovação do público. É uma espécie de idílio e fico contente em perceber isso. O pop acaba por ser uma pequena ilha concentrada no meio do consumo geral, em que o ‘ready to go’ não é uma forma de construir algo para o artista nem para as pessoas. Nesse sentido, o verdadeiro pop é algo que eu aprecio e considero importante.

O caráter orgânico do disco é apenas resultado da produção de B Fachada ou foi algo que você equacionou previamente?
É uma mistura das duas coisas. Nós gravamos o disco com o Walter Benjamin (outro produtor do álbum), em Alvito, na região do Alentejo (sul de Portugal) e o tocamos com ele e o B Fachada mais a banda que me acompanha (Miguel Abras, Júlia Reis e Lourenço Crespo). Ficamos todos juntos e a gravação foi ao mesmo tempo. Além disso, registramos as canções em fita e o trabalho foi feito artesanalmente. Claro que não pensaria em fazê-lo de outra forma, porque sempre tive uma relação palpável com a música. Aprendi a tocar violão com as mãos, através dos amigos, e a cantar cantando. O disco foi feito em progresso e quando o B Fachada se ofereceu para produzir o meu álbum, fiquei com a sensação que ele entendeu aquilo que eu pretendia, sem ter de lhe explicar nada. Ele tem uma percepção intuitiva e também é meu amigo.

Você contou com a participação de vários músicos do selo Cafetra Records no disco. Pretende manter estas colaborações nos próximos álbuns do Éme?
Sim! A resposta é plenamente afirmativa. Neste caso, a dinâmica é tão boa (como acontece nos shows) e, até prova em contrário, apostarei neste grupo, porque gosto imenso do caminho que temos seguido. A Júlia Reis é a única baterista com quem consigo tocar, já tocamos n’Os Passos em Volta, somos amigos e ela é irrepreensível do ponto de vista instrumental. O Miguel Abras (baixista) tem uma facilidade enorme de aprender e é muito dedicado e o Lourenço Crespo (tecladista) também é um excelente músico. São pessoas com quem consigo partilhar uma sensibilidade intuitiva, aprendemos todos em conjunto e respeitam-me muito. Eles entendem a canção e sabem como podem ajudar a melhorá-la. Uma banda em que os músicos são fabulosos e muito amigos é algo genuíno e raramente acontece. Acaba por ser um espelho do selo Cafetra Records e é uma manobra de diversão, porque o Abras também pertence ao Putas Bêbadas (uma banda noise rock destrutiva), o Lourenço toca no Kimo Ameba e a Júlia é do Pega Monstro. De repente, gera-se uma disrupção e as pessoas têm o direito de se expressarem como querem, independentemente das suas capacidades. E um disco de música popular ocidental, como “O Último Siso”, com arranjos canônicos, provavelmente seria difícil de fazer há seis anos. Ao mesmo tempo, não era para ser uma coisa amigável e mole, mas também não é uma desconstrução do pop e revela algum respeito pelos modelos estabelecidos.

À semelhança do trabalho desenvolvido pelo Deolinda, acredita que a música pop/rock portuguesa poderá ambicionar a internacionalização?
Nunca pensei muito nisso. Mas o caminho é tentar construir nas costas de quem está perto, ou seja, daqueles com quem podemos comunicar e fazer uma aprendizagem coletiva (artistas e criadores). Julgo que isso é o mais importante e depois poderá vir daí, atrelada, essa internacionalização. Em termos de subsistência seria muito mais fácil se tivéssemos uma área de influência maior para fazer shows, por exemplo. Relativamente ao Brasil, a distância pelo mar é metafórica, porque podemos voar. Eles estão bem servidos por música cantada em português e a nós compete-nos trabalhar para aprimorar as nossas canções. Tirando o caso do Zeca Afonso, a música que eu escutava quando garoto era brasileira e o Chico Buarque marcou-me muito. Gosto muito do Caetano Veloso e dos seus álbuns cantados em inglês, tal como “Transa” e “Caetano” e o disco “Samba Esquema Novo”, de Jorge Ben, influenciou-me bastante. Dos contemporâneos, adoro Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante.

Para onde deseja levar a sua música?
Pretendo gerar cada vez mais significados, aperfeiçoar e brincar com tudo. Experimentar e utilizar jogos de palavras são aspetos que pretendo desenvolver no futuro. Muita da minha formação está ligada à literatura e interessa-me a relação das palavras com os sons. Sou suficientemente autocrítico, agrada-me muito que as pessoas gostem das minhas canções, mas estou longe de pretender que o público veja a música que faço da mesma forma que eu a vejo. Irá tudo depender de mim e da convivência desenvolvida com os outros. Estou pronto para receber influências e desde que eu não defraude as minhas expectativas não desiludirei ninguém.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui

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