Entrevista: Anelis Assumpção

por Thiago Venanzoni

Anelis Assumpção vive em um espaço cada vez mais raro em São Paulo, uma cidade acelerada tomada por condomínios, muros, câmeras de segurança, dispositivos de imunidade. Nascida na Mooca e criada na Penha, Anelis sempre conviveu com ruas, pessoas e a bateria da Nenê de Vila Matilde, onde a comunidade se encontrava durante sua infância e adolescência. E ainda se encontra. Só que agora (ou de uns anos para cá), tudo está mais corrido, apressado.

Disponibilizado gratuitamente em seu site oficial (http://www.anelisassumpcao.com/), “Anelis Assumpção e os Amigos Imaginários” (2014), segundo disco solo da cantora e compositora paulistana (que mantém no currículo outros dois álbuns com o grupo DonaZica), é fruto indissociável da relação de Anelis com a cidade e, principalmente, com o tempo. “Gosto de problematizar o tempo todo essa questão do tempo”, conta ela em entrevista ao Scream & Yell.

“Os encontros são sempre muito urgentes, rasos”, comenta a cantora, que questiona: “Fora de hora é chato hoje. Tem que marcar pelo Whatsapp, fazer um grupinho lá. Ninguém mais bate na casa de ninguém”, comenta. A feminilidade também está presente nesta entrevista, que ainda discute ciúmes, a profissão “músico” e a história real de Rosa, que logo após se casar, deixou a festa com o marido e os padrinhos para assistir a um filme marginal no cinema.

Com vocês, Anelis Assumpção

Na música que abre o disco, “Cê Tá Com Tempo?”, você canta: “A gente não escolhe, ou a gente escolhe, certas perturbações”. A frase traz certa angústia, sobretudo da espera… o que você quis sobre essa letra?
Cara, é tão engraçado isso… é difícil analisar uma letra! Ela surge e vai tomando muitos outros sentidos depois. Lógico que tem uma coisa que dispara o assunto. Em alguns casos isso ocorre numa construção mais técnica, em outros não. Mas acho que a ideia principal dela não é nem para uma pessoa, diretamente. Tem um pouco a ver com essa angústia urbana, que carrego, da gente nunca ter tempo mesmo para… trocar. Para jogar conversa, fora ou dentro, que seja, mas é sempre tudo muito urgente. Os encontros são sempre muito urgentes, rasos, desde o encontro de criação para o trabalho, como banalidades, encontrar amigos e amigas. Tenho dois filhos, e vejo como é a relação deles hoje, um tanto quanto burocrática na vida social, na escola, tudo tem que agendar, marcar, levar, buscar… e lembro da minha infância, quando tudo era um pouco mais leve. E essa sensação eu acabei sintetizando para uma relação única entre duas pessoas. Mas poderíamos pensar em algo maior, como cidade e mata…

Natureza e cultura…
Sim, e acho que, pensando, tem mais a ver com isso. É como se ela chegasse fora de hora. E esse fora de hora é chato hoje. E por quê é fora? Ok, é madrugada e isso pode mesmo ser uma bola fora. Mas pode ser super legal! Abrir mesmo a porta, sabe, para alguém que está desesperado na madrugada, precisando ver alguém, falar com alguém, beber alguma coisa… Mas não, tem que marcar pelo Whatsapp, fazer um grupinho lá, sabe? Ninguém mais bate na casa de ninguém… e minha casa está sempre aberta, por exemplo, proponho isso aos mais próximos e gosto. E de certa forma acontece, aparece alguém, e nem sempre acho isso bom, às vezes estou ocupada, mas ótimo mesmo assim. Muitas vezes aconteceu de chegar alguém e ocupar o espaço e eu simplesmente dizer “eu não posso te dar muita atenção pois estou fazendo tal coisa” e tudo bem! E a pessoa fica, e eu consigo me dedicar um pouco, ou não, aí ela desencana e vai embora, tudo ok, mas há uma inversão do que está estabelecido. E por isso acho que essa música, a primeira, tem mais a ver com isso. E também o lance de as pessoas terem tempo para ouvir a outra de verdade, por isso a pergunta… É meio isso (risos).

É uma questão urgente mesmo: a reflexão sobre o tempo contemporâneo. Gosto muito dessa oposição entre “conversa dentro” e “conversa fora”, pois a primeira seria uma troca mais sincera, mais necessária, ao contrário da segunda que tem a ver com amenidades, que também é legal, né? (risos).
Então, eu poderia ter dito “estou aqui pra jogar conversa fora”, e acho que nem banalizaria. Mas acho que quando eu coloco a palavra “dentro”, a música leva pra algo mais profundo, mais denso… com uma certa angústia mesmo de querer falar algo que está dentro.

Ah sim, e sobre isso há um link com a terceira música, “Por Quê?”, sobre a questão da angústia, de uma espera que não chega, né? Afinal você vai encadeando as perguntas umas nas outras durante a letra e a pessoa chega, mas não era ela…
É… (risos). Eu acho que ela é bastante clara! E acho que isso tem mais a ver com o universo feminino. Um hábito de expectativa sobre tudo, sobre as relações com homens, filhos, amigos. E dependendo da fase, da mulher, pode parecer muito pesado, assim, poxa, nunca preenche. É uma insatisfação crônica!

A demanda nunca é preenchida…
Nunca! E é uma reflexão pra si mesmo, por que é preenchida! E quando é preenchida se julga que ainda há uma falta, pois não consegue olhar pra fora e fica fechado numa expectativa que não rolou. Mas rolou uma coisa paralela que passou, sabe? Acho que é bem essa frustração do não ver o que aconteceu, uma espécie de autossabotagem, algo assim. Tipo, “depois você chegou, nem demorou tanto…”, (mas) às vezes a pessoa demorou duas horas… Tem um texto muito lindo, não vou lembrar o nome, mas fala exatamente disso. Dependendo da quantidade de tempo que a mulher espera, num encontro, primeiramente ela pensa “não, a pessoa só se atrasou e tal”, passou meia-hora e ela já pensa em ligar pra pessoa, e falar umas coisas e tal, “que não é esse tipo de pessoa”, depois passa mais um pouco e ela pensa, “imagina, gente, aconteceu alguma coisa, deve ter morrido alguém da família”, então ela fica pirando sozinha e se a pessoa atrasa uma hora, mas chega, foda-se qual era o problema, e o corpo passou por muitas sensações. E acho que esse sentimento é muito feminino… não tenho a impressão que o homem consiga acessar isso. Claro que tem a expectativa dele também, intensidade, tem angústias, mas é muito diferente. Bate muito mais tranquilo se a pessoa atrasa uma hora do que ela não ir, e para mulher não… E passa realmente pelo corpo, e pela cabeça, todo tipo de possibilidades. E a do desprezo (dele) é a mais presente. Não sei dizer por que é assim, (mas) mulher é assim, é maluco ou maluquice (risos).

Ou não! (risos)
Ah, é meio maluco sim. Acho que essa música é mais evidente para o universo feminino. Mas, olhando, lendo, e também já ouvi comentários muito interessantes sobre essa música. Que vai para um lugar mais filosófico, teológico. Cheguei a pensar nisso, mas em outro lance…

O quê? Pensei que é um pouco essa demanda que nunca é preenchida. De uma forma coincide com o que você acabou de dizer, de certa expectativa do que é o amor, e isso é de fato uma expectativa construída pela cultura, podemos dizer, que não é o lance real.
Mas não é só o amor. É alguém que vai te salvar, um messias, um Jesus Cristo, sabe, por isso a teologia. Mas não pensei nisso quando escrevi a música, deixo claro! Só que depois consegui ver com esse olhar, que tinha essa presença, que a humanidade está sempre esperando a salvação por alguém. A gente tem isso na tradição, é criado e tal, ou seja, Ele vai chegar, Ele vai voltar, não é assim? (risos)

Pensei na ideia do Desejo. Pelo o que você fala, então, me permita ser mais psicanalista, me parece a ideia do gozo. Por que o gozo, em certa matriz mais freudiana da psicanálise, sobretudo em Jacques Lacan, ele é o “gozo de Deus”. Aquilo que é impossível alcançar, ainda que sabemos de sua existência. E, em mesmo momento, somos imperfeitos de mais para chegar nele… Ficamos atrás dessa coisa que nunca chega, sabe?
Sim, sim, e acho que tem a ver também… os meninos pensaram numa paródia dessa música que fala justamente isso: “Depois você gozou (ao invés de chegou, na versão original), nem demorou tanto…” (risos).

E já que estamos no gozo, tem uma música do seu primeiro disco, “Amor Sustentável”, que fala em consumir conscientemente o gozo. E penso um pouco nisso também, de ter a consciência do que é o gozo… de que ele é um espasmo, não é algo que estará sempre lá e nem que você irá agarrá-lo.
Talvez, talvez… nunca tinha feito esse paralelo com essa música. Acho que tem a ver sim. É mais óbvio mesmo, né? Mas, ainda dentro do universo feminino, onde o gozo é um… existe essa dificuldade… Eu acho que a mulher é muito mental, de certa forma, não sei muito bem explicar, mas não é uma coisa como no sexo. O gozo e o orgasmo não são pra mulher como é para o homem, nem na facilidade, nem na forma que eles chegam… o gozo permanece na mulher por mais tempo, ela prolonga isso em sensações, em fantasias, ao passo que para o homem ele vai e resolve, acabou. Mas esse consumo consciente do gozo é também, de certa forma, uma sugestão de conseguir ter esse prazer fora do orgasmo. Acho que tem a ver com isso. E com os mitos, digo, os tabus. Como o tabu do sexo, que são bem difíceis de derrubar, mas acho que andou. Andou bem.

Você parece ser uma pessoa tranquila de se aproximar pelas letras, ainda que essa leitura possa estar equivocada, pois não é possível ordenar o pensamento, necessariamente, ainda mais na criação. Mas você diz isso na segunda música, “Eu Gosto Assim”…
Não tenho realmente um jeito sofisticado de escrever. Sou muito falativa, muito verborrágica na fala. Eu digo, eu converso, eu falo muito, falo sozinha… eu preciso me comunicar o tempo todo. Acho que escrevo pra letra, pra música, de uma forma mais direta. Não sei se isso é uma fraqueza, ou uma oposição, o inconsciente, não sei (risos).

Há certas figuras que você cria, que não necessariamente estão dentro de uma regra e não se apresentam como tais, mas, em outro olhar, são. Por exemplo, nessa música mesmo, “Eu Gosto Assim”, você cita a Guerra do Golfo. É bacana por que tenho uma lembrança forte dessa guerra, pois teve todo aquele aparato da tecnologia, ficou conhecida como a “guerra tecnológica” e, por isso, lembrava os consoles de videogame que a gente jogava na época, o que criou, certamente, um impacto para quem foi dessa geração. Ou seja, tem seu lugar no inconsciente e aparece nesses momentos criativos.
Talvez isso tenha vindo das profundezas do inconsciente. É uma forma de dizer que não gosto de guerra, mas daí veio a Guerra do Golfo, pois é. Era um assunto na época, toda hora se falava desse acontecimento…

E nessa música você ainda fala: “A vida sem regra é mais divertida, mas tem que cuidar para não espanar”. Essa questão das regras… a gente devia viver um pouco mais na errância. Nesse sentido de tentar fugir um pouco dessas disciplinas. E acho que isso está o tempo todo em algumas de suas músicas…
É, talvez seja essas amarras das obrigações cotidianas, sobretudo nessa vida urbana que levamos, de simplesmente sobreviver e não viver. De tentar sempre manter a vida. Eu acho que tem a ver com isso mesmo, de soltar um pouco das regras, e aí cabe a cada um como interpretar sua regra, ou suas regras, de como elas serão.

Parece claro que não iremos subverter todas elas, senão caímos num lugar sem lugar, ou seja, somos filhos dessa urbanidade, mas me parece urgente também essa tentativa de se livrar dessas amarras…
Isso em tudo, né? Nas relações com o trabalho, com as pessoas, com o tempo… concordo contigo.

E eu penso que esse caráter errante é muito próprio do artista. Se pensarmos em James Joyce, mesmo em seu pai, o Itamar Assumpção, são todos errantes, nesse sentido. Pois não há como ordenar o processo criativo dentro desse mundo que comentávamos, cheio de regras e disciplinas, ele tem que estar fora disso.
Mas ele pode vir a ser, agora que falou do meu pai… ele era uma pessoa que tinha a cabeça que funcionava o tempo todo para a palavra. Só que teve um momento que isso era quase técnico. Era ordenado. Ele pensava: “eu vou escrever agora”. E às vezes saia coisas imensas, quilométricas, e às vezes não saía muita coisa, mas ele se propunha a escrever. Ele trabalhava em casa, e vivia muito em casa, tinha os lugares dele, de tocar, de escrever, e era onde ele ficava o dia todo: andava, fazia comida, lavava louça, passeava com o cachorro, voltava, e a cabeça ia junto… mas a pessoa também tem uma hora, mesmo pro artista, que precisa se por esse limite para poder “estudar”. Então pode ser lendo, escrevendo, ouvindo música, pegando um dicionário, ou polinizando uma orquídea, o que ele fazia muito. E tudo isso estava dentro desse processo maior, que é a própria criação. Um ócio de certa forma, mas ele teve que colocar isso dentro de um método.

A Alice (Ruiz, poeta, e uma das principais parceiras de Itamar Assumpção) fala bastante disso. Ela diz que o Itamar era a única pessoa que chegava na casa dela e falava “Vim trabalhar. Vamô escrever? Ó, trouxe o violão”. E ele começava a musicar um poema dela, e os dois trabalhavam. E quando ela morava distante, perto de Cotia, na Granja, ele ia ficar dois, três dias na casa dela, dormia e comia lá… então era um pouco isso. É lógico que as pessoas olham de fora e acham que é uma vida muito louca, e que é só loucura, mas também tem angústia – quando uma letra é ruim, quando você teve uma ideia incrível que não vai pra frente. Meu processo é diferente: eu não escrevo o dia inteiro, eu penso o dia inteiro. Gravo coisas que penso ou ideias que surgem. E acho que isso tem a ver com a época também. Compro cadernos e eles ficam vazios, só escrevo no computador. Quero ter uma coisa romântica de se escrever em cadernos e só sai porcaria, minha letra é uma merda e não entendo o que quis dizer ali… já meu pai era BIC e caderno universitário de 10 matérias, com capa de minas na frente da moto, sabe? A vida dele era isso, vivia pra cima e pra baixo com esse caderno e a canetinha.

É diferente mesmo. São outros hábitos e hoje vejo isso com uma leveza. Já me cobrei mais por não sei igual a ele, por achar que não era compositora, por não andar o dia inteiro com o caderno na mão. E não escrever igual a ele… acho que a única coisa que tem uma linha, que posso fazer a comparação, é de um certo humor que ele tinha muito presente na vida dele, nas letras. Só. Já vou logo lhe dizendo que não temos nada a ver, portanto (risos).

Não sei a razão também. Alice, que é poeta, e por ser a pessoa que mais na vida me motivou e me levou a escrever, além de ser a poeta que mais me agrada nisso de falar sobre o universo feminino, disse pra mim uma vez e foi muito bonito: “Olha, eu ouvi seu último disco, e está muito bonito. Você continua, né? Com o assunto da feminilidade. E está muito mais denso agora. E digo mais, você pode ir mais fundo nisso”. Estou pensando sobre isso até agora! (risos). Ainda não tinha reparado da forma que ela me disse, mas isso já se colocava pra mim e fazia eu pensar, “caralho, eu só sei falar sobre isso…”. E eu não penso só sobre isso!

Vamos falar de Rosa, personagem da oitava música, “Song to Rosa”, aquela que casou e no dia da festa decidiu ir ao cinema…
É verdade isso! Essa é a única história real mesmo. Ela casou e foi. A Rosa é a mãe de uma amiga minha e no dia do casamento estava passando um filme marginal, não lembro qual, era uma sessão maldita mesmo. E na época não ia ter como ver aquele filme de novo, não haveria outra oportunidade. Eles todos faziam Ciências Sociais (o marido também) e estavam naquela fissura de ver o filme marginal. Então eles foram, e deixaram rolando lá o jantar. Ela, o marido, os amigos, que eram os padrinhos… e eu achei ótima essa história! E depois voltaram pra festa, mas cheios de coisas… isso é tão bonito, tem a ver com aquilo lá que falávamos, da relação diferente com o tempo, com os compromissos, com as instituições, no caso o casamento. E eles casaram por causa dos pais, da família, fizeram uma puta festa, pois estavam noutra, estudando outras coisas, abrindo a cabeça para outras possibilidades. Então eles nem levaram a sério nada e não era, naquele dia, o compromisso mais importante. Afinal, ia ter esse bendito filme marginal! A Rosa é muito interessante…

E você diz, ainda nessa música, que a Rosa sabe o que quer e não sabe, ao mesmo tempo, né? Isso que digo um pouco da errância, para voltarmos. Obviamente não conseguiremos a emancipação plena de todas as amarras, termo bacana que você usou, para a sobrevivência, mas viver um pouco desse jeito é por em crise certas coisas, negar outras…
E hoje ela contando isso, com mais idade, ela acha uma besteira e tal. Se fosse hoje, ela diz, jamais faria isso, então tem esse frescor também, da juventude, que a experiência (de vida), às vezes, atrapalha, termina. Não é que deixa as pessoas piores, não é isso, mas com mais receios, mais medos, com mais ponderações. Engraçado. Na mesma conversa ela me disse: “Jamais, se minha filha se casa e apronta uma dessa…” (risos). E é isso, ela tem duas filhas mulheres e ainda guarda o sonho de vê-las casadas, felizes, olha só! Super compreensível a coisa da “incoerência”. Nada errado.

Penso na Rosa que você descreve na música como essa figura que amarra esse universo feminino que o disco constrói, como a Alice Ruiz comentou contigo… e em “Mau Juízo”, voltando a terceira canção, aparece essa oposição, claramente, quando você diz “dessa vez eu te perdoo”…
Dá uma vontade de contar as histórias todas… (risos).

Sinta-se à vontade para não contar. (risos)
Então, não chega nem ser uma relação, essa canção. Quer dizer, não é uma relação homem e mulher, é mais uma outra forma de relação. Isso é uma amiga minha que tinha muito ciúmes de mim. E aí, enfim, tivemos muitos problemas em relação a isso, que foram resolvidos e tal… e virou uma coisa engraçada entre a gente. Acho que quando fiz a música, uma outra amiga nossa tinha brigado com o namorado. Ele estava super pentelho, ligando de madrugada, falando um monte de besteiras, tratando ela mal, enfim, homens recalcados. E ela falou pra mim, “Uma pena que ele está falando tudo isso pra mim, pensando essas coisas, mas sei lá, está pensando em mim”. Achei fantástico, mas disse: “Como você é burra!” (risos). Mas depois refleti pela forma como ela pensou, que ao invés de se ofender, decidiu ressaltar que o cara estava há horas pensando nela. Pensando um monte de merda, mas estava pensando nela. Daí misturou um pouco essa história com aquela da outra amiga, que tinha ciúmes, e acaba parecendo mesmo isso que disse antes.

O ciúmes é um mau juízo que quem sente constrói a respeito do outro.
O mau juízo, na verdade, era do cara que via coisa onde não tinha, que colocou a mulher num lugar ruim, falando coisas muito pesadas pra ela, sobre ela… e muito violento, agressivo. Bom, mas a música é um pouco isso, vai puxando coisas e outras situações que não lembro, propriamente, mas estão de alguma forma.

No seu outro disco tem uma música, “Alta Madrugada”, que tem um pouco a ver com isso. Você diz lá que ele vai dormir e você vai estar acordada.
Tem o lance do desprezo lá também, né? E da praga de manter essa relação…

E essa figura do cara dormindo e a mina acordada se mostra interessante também. Pois a mulher está acordada e sacando o que está rolando, e o cara está lá, dormindo…
É, bem isso mesmo: “Você vai dormir e eu vou estar acordada!”.

Acho bacana que você traz certos retratos, certas imagens, que são coisas que podem ser vistas e são presentes por isso. Essa coisa de inventar desculpas e despedidas, por exemplo, são coisas recorrentes… tipo, “preciso mesmo ir embora…”, e entra a questão do tempo de novo, mas também uma certa manutenção das relações.
É, sim! E acho que o que posso mais dizer do disco em geral, e talvez essa seja a minha maior reflexão, de um tempo pra cá, é essa relação com o tempo mesmo. O tempo estabelecido, as vinte e quatro horas do dia, o ano, o mês. A gente está tão atrelado a isso. E como, ao mesmo tempo, ele é tão relativo. Eu gosto de problematizar o tempo todo essa questão do tempo (risos). O tempo todo pensamos em compromissos, em produção, precisamos produzir, e isso tem tudo a ver com o tempo: produzir mais em menos tempo. É tudo meio automatizado nesse sentido.

E isso está bem ligado ao modelo político do neoliberalismo, né? Eu sou vivo por que eu produzo. Se eu não produzo, nessa formalidade esperada, eu sou ignorado, ou sou menos do que o outro que produz. Eu sou pesquisador, por exemplo, e você faz música, e numa dada visão do mundo não temos trabalhos formais, de como se acredita isso, pois não temos rotinas, não tem muito mérito envolvido, e não tem essa produção para a sociedade, na percepção do neoliberal. E eu não sei o que você pode dizer sobre isso, mas eu sou violentado, sempre, nessa relação.
Ah sim, o tempo inteiro! Por exemplo, a moça que vem fazer faxina aqui em casa não deve entender nada. Eu, Curumim, o cara fica tocando bateria, a outra fica escrevendo, e ficamos em casa em dia inteiro. Ela deve pensar: “Caralho, como esses caras me pagam!” (risos). Mas isso ainda é engraçado, pois já tive situações mais absurdas… Antes de casar com o Curumim, eu vivia com a minha filha Rubi numa casa de vila, e tínhamos uma vizinha bem chata, uma senhora, e um dia ela bateu lá em casa e disse: “Sua filha riscou meu carro… não sei se foi brincando…”. Os carros ficavam todos meio apertados (na rua) e ela prosseguiu: “Você tem que falar com ela”. Perguntei: “A senhora viu (minha filha riscando o seu carro)?”. E ela: “Não, não vi, mas ela estava brincando aqui fora e a hora que fui sair o carro estava com esse risco. Vou fazer um orçamento, talvez um polimento já resolva… mas acho que a senhora vai ter que pagar, por que não posso ficar com esse prejuízo, entendeu?”. Daí ela finalizou o papo: “Desculpa, não sei como você ganha seu dinheiro, se você poderia pagar…”. Fiquei com uma raiva, com vontade de falar o que fazia, mas deixei pra lá. Mas ela pensou nisso mesmo, pois vivia entrando e saindo gente da minha casa, de noite, de manhã, homem pra caralho… bom, tudo bem, deixa ela pensar nisso. Outras pessoas perguntam: “E você faz o quê?”. E respondo que canto, componho, toco, etc, e vem: “Ah, que legal! Mas você trabalha?”. Essa eu já ouvi várias vezes… (risos).

E vejo muito isso na mulher, esse conflito. Acho que deu um pau, uma bugada, sabe? Ao mesmo tempo que tem essa liberdade, quer cuidar dos filhos, quer fazer um bolo de laranja, casar. Na minha geração vejo isso acontecendo o tempo todo. E, ao mesmo tempo, reconhece quando não deu certo, e cria uma operação para resolver esse conflito… E acho que muitas vezes isso aparece em momentos, como a traição, por exemplo. De tentar entender e, ótimo, é possível agir assim e assim… e põe em cheque isso que está estabelecido, se tem uma abertura para isso. Não só da relação entre homem e mulher, mas em tudo mesmo. De alguma forma, por fim, tudo isso está no meu disco, e na minha vida. Não digo mais nada (risos). Só agradeço.

– Thiago Venanzoni (@thiagovenanzoni) estuda Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais na ECA USP. A foto que abre a entrevista é de Renato Stokler

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