Boteco: As três cervejas da Westvleteren

por Marcelo Costa

A abadia trapista de St. Sixtus nasceu em 1831 no município belga de Vleteren, não muito longe das plantações de lúpulo de Poperinge, no Flanders Ocidental. A Westvleteren Brewery, no entanto, só começou a fabricar cerveja em 1838, e a venda ao público só foi aberta em 1931. A grande procura fez com que os monges da St. Sixtus concedessem à cervejaria St. Bernardus, da cidade vizinha, Watou, autorização para produzir as cervejas da Westvleteren para venda, e este acordo durou até 1992 (muita gente compensa a dificuldade de encontrar uma Westvleteren bebendo as cervejas da St. Bernardus, que, teoricamente, usam a mesma receita – testes comparativos devem ser feitos com garrafas da mesma safra, importante lembrar), quando os monges da St. Sixtus retomaram a produção da Westvleteren, tornando-a mítica não só pela dificuldade de consegui-la (teoricamente só é possível compra-la na abadia: em pequenas quantidades na lojinha, em maiores com data, hora e placa do carro marcadas; na prática, vários empórios europeus a vendem), mas principalmente por sua qualidade, elogiável. Abaixo, as três únicas cervejas que eles produzem atualmente:

A Westvletern Blond é a cerveja que os monges consomem na Abadia de St. Sixtus, e foi lançada comercialmente em 1999, após a abadia deixar de produzir a Westvletern #6, uma Belgian Dark Ale (a Westvletern #4 também já havia saído de circulação). A receita une água, malte, levedura, açúcar e especiarias. De coloração amarelo palha, a Westvletern Blond exibe um creme branco de excelente formação e longa permanência. O aroma é especial: é possível perceber um toque frutado cítrico e meio azedo que pode ser tanto derivado do lúpulo quanto, principalmente, da levedura. Há deliciosa sugestão floral e herbal (erva-cidreira e capim limão), leve percepção de malte (pão e biscoito) e adocicado distante (caramelo e mel). Há, ainda, algo que remete a fazendas (feno, palha e pasto). Na boca, um leve azedume se destaca ao lado do amargor cítrico no primeiro toque, e o conjunto se desmancha em notas herbais (erva-cidreira e capim limão), cítricas (abacaxi mais maçã e uva verdes) e condimentadas (semente de cravo). O final é suavemente amargo, azedinho e cítrico (limão siciliano e abacaxi) enquanto o retrogosto traz notas herbais, cítricas e… fazendas. Foda.

A Westvleteren #8 (anteriormente conhecida por Extra) é uma Belgian Dark Strong Ale cuja receita, básica (para as três cervejas da casa), une água, malte, levedura, açúcar e especiarias. A diferença da #8 para a Blond é perceptível já na cor: enquanto a Blond é amarela, a #8 é âmbar escura, derivada da tosta do malte. O creme é levemente bege, e de ótima formação e permanência. As diferenças se ampliam no nariz: aroma sensacional, frutadíssimo, mas o que deriva de frutas amarelas na Blond aqui recaí sobre frutas escuras (ameixa principalmente), cristalizadas e com um toque extra de maçã bem próximo de champanhe e vinho do Porto. Há ainda sugestão de nozes, madeira, caramelo, açúcar mascavo e semente de cravo. Na boca, a #8 continua impressionando: a primeira impressão é adocicada e frutada (açúcar mascavo e ameixa), mas logo na sequencia surge uma picância amarga que parece mais derivada dos 8% de álcool do que do lúpulo em meio a um oceano de sabores cujos destaques são notas que remetem a frutas escuras, caramelo, baunilha, vinho do Porto, e ameixa. O final é frutado, alcoólico e levemente salgado enquanto o retrogosto traz caramelo e frutas escuras. Palmas.

Fechando o trio, a mítica Westvleteren #12, que foi produzida pela primeira vez em 1940, e eleita por um site em 2005 como “a melhor cerveja do mundo”, fato que desagradou os monges da St. Sixtus: “Nós fazemos a cerveja para viver, não vivemos para a cerveja”, disse o chefe do claustro, que manteve a mesma produção anual de cerca de 160 mil garrafas, mesmo com tolos pagando até R$ 300 por um exemplar de 330 ml – na porta da abadia, uma caixa com 24 garrafas, incluindo depósito pelos cascos e pela caixa de madeira (que não precisam retornar), custa 52 euros, aproximadamente R$ 160 (24 garrafas!!!). Ok, o método de compra é complicado (apenas via telefone marcando horário e com retirada pela placa do carro: em junho de 2014 só há vagas para retiradas de caixas para novembro e dezembro de 2014), mas mesmo sendo aconselhado não revendê-la, é possível encontra-la tanto em Bruxelas quanto em Amsterdã entre 10 e 16 euros. Ou seja, o mito em torno da Westvleteren #12 faz com que alguns exageros sejam cometidos por bebedores mais afoitos (e aproveitadores de plantão), mas a grande questão é: ela é a melhor cerveja do mundo?

De coloração âmbar escura e creme bege de ótima formação e média permanência (incluindo algumas rendas belgas ao redor da taça), a Westvleteren #12 carrega 10.2% de graduação alcoólica e um aroma refinado de Belgian Quadrupel, com notas que remetem a frutas escuras (ameixa, nozes, amêndoa e uva passa), adocicado (caramelo, açúcar mascavo e baunilha), condimentado (um pouco de canela e pimenta do reino) e amadeirado (remetendo levemente tanto a vinho do Porto quanto Jerez). O álcool é perceptível, mas delicadamente (o que é louvável se considerarmos sua quantidade). Na boca, o álcool aparece já no primeiro toque, mas não incomoda. A doçura (puxando para açúcar mascavo) também é agradável, na medida, batendo ponto, mas não enjoando. O mesmo pode ser dito das notas frutadas, que marcam presença, sem exageros. O final é adocicado, frutado e alcoólico (principalmente com a cerveja na temperatura que deve ser tomada: de 10 a 12 graus) enquanto o retrogosto traz caramelo, madeira, vinho e ameixa.

Balanço
Eles só produzem três cervejas e, pelo jeito, tem o mesmo cuidado com todas. A Westvletern Blond, feita para consumo dos monges, e liberada para o público em 1999, é quase uma Farmhouse Ale (difícil não sentir aromas de fazenda nela) e é absolutamente magnifica. Muitas notas frutadas, cítricas, florais e herbais num conjunto refrescante e aconchegante. Encantadora, fica na dúvida se é a melhor que a La Dorée Gold, equivalente monástica da Chimay. Se pudesse, teria estoque vitalício das duas em casa. Quanto a Westvleteren #8, eu já havia bebido (e escrito sobre) ela uma vez, em 2011, antes do curso de sommelier, que ampliou a minha percepção. Se naquela época eu já havia caído de joelhos diante da #8, agora não deixa de ser diferente: é incrível com os monges belgas conseguem criar uma cerveja tão especial com uma receita tão básica. O equilíbrio é surpreendente e a paleta de aromas e sabores, complexa e cativante. Uma cerveja especialíssima. Já sobre a #12, dizer o que? Primeiro: não existe essa coisa de melhor cerveja do mundo, mesmo com ela liderando o meu ranking pessoal, simplesmente porque ela nunca seria a melhor cerveja do mundo debaixo de um sol de 30 graus na beira da praia. Cerveja tem momentos, tem acompanhamentos, não pode ser reduzida de forma tão simples. Dito isso, a Westvletern #12 é especialíssima. O grande mérito dela é ter uma graduação alcoólica alta e drinkability teoricamente alto (quatro dessa com 10.2% de álcool devem derrubar muito marmanjo garganta por ae) porque ela desce incrivelmente fácil: a doçura não é exagerada, nem o frutado e nem a presença do álcool. Isso a valoriza e a torna inesquecível.

Westvleteren Blond
Produto: Belgian Ale
Nacionalidade: Bélgica
Graduação alcoólica: 5,8%
Nota: 4,55/5

Westvleteren #8
Produto: Belgian Strong Ale
Nacionalidade: Bélgica
Graduação alcoólica: 8%
Nota: 5/5

Westvleteren #12
Produto: Belgian Quadrupel
Nacionalidade: Bélgica
Graduação alcoólica: 10,2%
Nota: 5/5

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