Entrevista: Valle de Muñecas

por Leonardo Vinhas

Profissionalmente, Mariano Esain está envolvido com a música há mais de 20 anos – 23, para ser exato, já que entrou para a banda Martes Menta em 1991. Mas a música está em sua vida desde sempre. Seu pai era baterista de jazz e educou os filhos com discos de Jelly Roll Morton, Louis Armstrong e cantores dos anos 1920. Porém, o punk, o pop e o rockabilly “se infiltraram” na formação musical dos garotos, e Mariano e seu irmão Luciano, também baterista, fizeram seu próprio caminho, o qual os levou a montar a banda Valle de Muñecas em 2003, juntamente com o guitarrista Leandro de Cousandier e o baixista Fernando Astone (que já não estão mais na banda: seus postos agora são ocupados por Fernando Blanco e Mariano López Gringaus, respectivamente).

O Valle de Muñecas é um dos nomes mais celebrados do rock independente argentino, mas nunca transcendeu a fronteira do underground. Apesar de três LPs e cinco singles, nenhuma canção atingiu o êxito pop que se insinua na audição das melhores composições da banda. Também é verdade que parece existir uma distância entre o som que a banda deseja fazer e o que ela realmente entrega. Manza – como Mariano é conhecido – tem intenções ambiciosas quando compõe. Nas ocasiões em que consegue entrega pérolas como “La Soledad No Es Una Herida”, “Dejadez”, “Mil Formas de Estrellarme” e “Mapas”, entre outras. Em outros momentos, acaba soando um tanto quanto derivativo de suas fontes de inspiração – Wilco, Teenage Fanclub e Pavement, para citar algumas. Já como letrista, ele raramente decepciona, contando histórias breves e comovedoras e legando achados poéticos como “a autopista corre do oceano até o amanhecer”, ou “ela devolveu minhas cartas / meu orgulho, minha estupidez / ela se esqueceu das minhas promessas no dia seguinte / talvez por sorte, talvez”. Isso para ficar em dois exemplos.

Seja como for, não há como não perceber a evolução da banda, deixando o bom rock de guitarras mais urgente e inspirado nos anos 1990 que dominava o debute “Días de Suerte” (2005), para chegar a um som mais detalhista e climático, presente em “La Autopista Corre del Océano hasta el Amanecer” (2011) – com o excessivamente plácido e (auto)reverente “Folk” (2007) ficando como uma transição entre os dois lados. Ao observar esse aprendizado, fica a sensação de que o próximo disco trará, enfim, um resultado a altura de suas melhores pretensões. Por ora, mostram-se “apenas” como uma boa banda que, em algumas ocasiões, chega a ser ótima.

É também verdade que Mariano acaba sendo lembrado mais frequentemente por sua participação no projeto Flopa Manza Minimal, que formou com Ariel Minimal (Pez, Los Fabulosos Cadillacs e diversas outras bandas) e Florencia “Flopa” Lestano. O trio lançou um único disco, homônimo, em 2003 (no qual também tocou Luciano), que é considerado por críticos e muitos fãs como um dos melhores discos do rock argentino. E ainda há muitos fãs que se recordam do Martes Menta, banda na qual começou a carreira (também ao lado de Ariel Minimal) e que foi tida como uma das mais promissoras da chamada “movida sónica”, cena que englobava bandas influenciadas pelos shoegazers de Manchester e pelo grunge, que tinha nos Babasónicos seu maior destaque. Para não falar dos “órfãos” do Menos que Cero, formação que existiu entre o fim do Martes Menta e o começo do Valle de Muñecas, que também contava com Fernando Astone.

E ainda há as produções: Manza já assumiu discos de Coiffeur, Nikita Nipone e vários outros artistas, muitos dos quais foram recebidos com entusiasmo. Um artista em busca constante, cuja criação se divide entre reverenciar suas fontes de inspiração e buscar estabelecer seu próprio estilo. Certamente alguém com algo a falar. E como em 2013 sua banda esteve duas vezes nos palcos brasileiros – nos festivais Paraíso do Rock, em Maringá (PR), e El Mapa de Todos, em Porto Alegre (RS) – começamos nossa “charla” falando sobre… bem, sobre nós.

Que tal o público brasileiro?
É diferente do público argentino, pois parece um público mais entregue à curtição. Aqui na Argentina há um público de rock que se põe a curtir, mas a maioria é mais fria e racional.

Engraçado, muitos músicos brasileiros dizem exatamente o contrário ao comparar o público daqui com o daí.
(risos) A verdade é que você sempre destaca o que não conhece e aproveita mais quando vai a um lugar onde é menos conhecido. E isso se torna uma experiência que a banda guarda como um momento raro, uma vivência especial compartilhada por todos os integrantes. E me parece que isso acontece em um montão de lugares. Quando vamos tocar em algumas cidades do interior da Argentina, é quase o mesmo esquema. O público portenho já nos conhece e sabe o que esperar, mas quando vamos para outros lugares, o público nos surpreende.

E sendo você “de fora”, tem alguma banda daqui que te chame a atenção?
Não conheço muito da cena brasileira. O pouco que conhece foi pelo Pablo (Hierro) e pela Sylvie (Piccoloto), da Scatter Records. Conheci Superguidis quando eles ainda estavam por aí, e quando era garoto ouvia Legião Urbana, Ultraje A Rigor e esse tipo de coisa, mas não sei o que aconteceu com elas. Não escutei bandas brasileiras que fazem um som como nós fazemos agora, a não ser pelos Superguidis mesmo.

Eu tenho a impressão, na verdade, que a sua formação musical passa pouco pelo rock da América Latina. Me parece muito mais que passa pelo pop dos EUA e da Inglaterra dos anos 1960, pelo punk e coisas assim. Confere?
Na verdade, gosto do rock latino-americano. Não tanto de música com raízes folclóricas ou coisas mais ancestrais. Mas sempre me interessei pelas coisas do rock argentino que estão ligadas à herança da cultura roqueira. O que sei é que sempre quis fazer rock em espanhol, era uma parte muito importante da identidade de minha música e está em cada projeto de que participei, e parece que isso é uma influência do rock argentino, de certa maneira. Creio que se a influência de bandas inglesas ou norte-americanas fossem tão fortes, eu estaria cantando em inglês.

Realmente, existe algo, não sei se na lírica ou na estética, que parece ser inerentemente argentino ao que o Valle de Muñecas faz, apesar da questão musical sobre a qual acabei de perguntar. Algo difícil de definir, mas que aparece mais destacado em “La Autopista Corre del Océano Hasta el Amanecer”. Você se sente parte do rock argentino, sente essa identidade?
Não acho que seja algo buscado tão conscientemente. Aqui na Argentina se fala muito em “rock nacional”, que é uma etiqueta da qual não gosto muito, porque está ligado a certa tradição do nosso rock da qual não sou fã, mas certamente toda a história do rock argentino acabou me influenciando. Mas concordo contigo nisso de que o Valle de Muñecas soa não só como uma banda argentina, mas principalmente uma banda de Buenos Aires. E tenho orgulho disso, exatamente porque não é algo exatamente buscado! Escuto músicas de todos os lados do mundo, que é de onde vem minha maior influência, e mesmo assim a identidade e o lugar onde pertenço se infiltra em minha música, e eu não luto contra isso. Não é algo que me pareça ser ruim.

Já definiram a música de vocês também como “uma ponte entre os anos 1970 e os 1990”. Isso também vale?
Sim, acho que sim. Apesar de a minha formação ter a ver com o punk e o rock dos anos 1960 – um pouco dos 1970 também – acredito que as bandas que venho escutando nos últimos 15 ou 20 anos tem a ver quase todas com o indie rock norte-americano e inglês, em questões de produção, de áudio e principalmente de composição. Coisas como Smiths, Pavement, R.E.M. e Wilco, por aí. Obviamente escuto outros tipos de músicas e de outras épocas, mas me parece que quando falamos de uma busca sonora e de um padrão de produção (que é algo no qual estou muito envolvido), é esse o som que tenho em minha cabeça.

Falando especificamente dos discos: “Días de Suerte” era um disco alto, guitarreiro, mais explosivo. Em “La Autopista…” percebem-se muitos detalhes, mais alternâncias de climas, mais introspecção. Por onde irá o próximo disco?
Acredito que vai ter mais a ver com o último, “La Autopista…”. Por outro lado, estamos fazendo umas coisas mais ao vivo no estúdio, que é o que já fizemos nos singles que colocamos na nossa página do Bandcamp, e que acabam sendo mais próximas da sonoridade do “Días de Suerte”, então acho que algumas canções podem ser uma espécie de média entre as duas coisas. E tem umas canções mais acústicas que podem se aproximar do estilo de “Folk”. Não temos muito claro ainda, vamos gravar no verão. Ainda temos algumas canções que estão dando voltas, mas creio que em termos de produção e busca de texturas, vai estar mais próximo do último disco mesmo. Mas acredito que uma banda ao vivo tem uma personalidade, que no nosso caso é próxima da registrada em “Días de Suerte”, mas é muito difícil que um disco iguale-se à potência e a força que ocorrem ao vivo, por isso me parece justo que no disco existam coisas que não podem ser reproduzidas ao vivo, como a quantidade de detalhes e texturas, que ao vivo não existem e têm sua ausência compensada com potência.

Levando em consideração essa sua colocação, que sonoridade você buscaria como produtor para um registro do show de uma banda em um disco? Seja essa banda a sua ou outra que te convide para a tarefa.
Eu procuraria capturar o melhor possível do que acontece ao vivo. A maior parte dos discos ao vivo que escuto me parecem limpos demais, excessivamente trabalhados, como se fossem uma gravação de estúdio. Não escuto o rebote das paredes, não escuto a energia das pessoas. É difícil, eu sei: ao vivo, são 110 decibéis de volume, o som de trás e dos lados, uma coisa desbordante, e no disco não fica isso, só sobra o som, e com muito menos volume. Temos algo que gravamos há uns sete anos no La Trastienda (Buenos Aires) e provavelmente editemos isso como singles virtuais, porque é uma gravação que não gostamos muito, mas também é um lado da banda que não está documentado de maneira alguma.

Como produtor, você trabalha com artistas de diferentes linguagens, inclusive algumas com as quais você pode não se identificar tanto, e aí você tem que achar uma sonoridade que seja boa tanto para você como para o artista, além de ter que entrar num universo que não é o seu. Nesse sentido, qual foi o disco mais difícil que você produziu?
Na verdade, produzo um montão de discos que não têm a ver com o que faço com o Valle de Muñecas. A experiência de produzir outro artista é sempre um intercâmbio musical, aprendemos mutuamente maneiras de trabalhar e pensar a música, é sempre um aprendizado. Tenho muito orgulho dos discos que fiz com o Coiffeur (“No Es”, de 2006, e “El Tonel de las Danaides”, de 2007), acho que “No Es” é o mais bonito que fiz. Por outro lado, produzo há muitos anos uma banda chamada Blues Motel, que tem mais a ver com Stones, Faces, rock’n’roll, e gosto muito dos discos que fizemos [Mariano está nos oito discos da banda, seja na mixagem, produção ou até como instrumentista convidado]. Tem outro artista, Pablo Krantz, que faz discos muito relacionados com a chanson fraçaise e também foi bem interessante fazer um álbum (“Démonos cita en una autopista (para volvernos a estrelar)”, 2011) com ele.

E tem alguns dos seus discos favoritos que você gostaria de ter produzido? Algum que te faz pensar: “ah, se eu estivesse nessa mesa!”
(risos) Bom, os discos que me provocam isso são discos dos quais não gosto tanto, porque os meus favoritos, escuto e penso que estão fantásticos (risos).

E quais seriam esses discos perfeitos?
(longa pausa) Não sei… “Nevermind the Bollocks”, dos Sex Pistols; “Sgt. Pepper’s…”, obviamente. (outra pausa) “Your Arsenal”, do Morrissey; “Different Class”, do Pulp… Tem discos mais novos, como “Suck It and See”, dos Arctic Monkeys, ou “Brother”, dos Black Keys. “Yankee Hotel Foxtrot”, do Wilco.

Vamos falar um pouco de “Flopa Manza Minimal”, seguramente um dos discos mais celebrados do rock argentino. Uma coisa que me surpreende é que muito comum vermos fãs, e até jornalistas, se referindo ao disco como um grande marco acústico, mas apenas duas faixas dele têm violões (“Sonajeros” e “La Dejadez”, registrada pelo trio antes de ter a versão do Valle de Muñecas). Parece-me que as pessoas não entenderam o disco…
É verdade. Acredito que seja porque aqui na Argentina muita gente tem a lembrança dos shows, que foram basicamente acústicos. De fato, fizemos só dois shows em formato band, os demais foram como trio acústico, e passamos à história dessa forma. Mas o disco é outra coisa. Foi um processo muito desfrutável fazer o disco: muito intuitivo, fazendo tudo sem muito planejamento, e isso parece ter contribuído para ter dado ao disco esse frescor que ele tem e que faz com que tantas pessoas os tenham entre seus discos favoritos.

E o que aconteceu que você não esteve presente em “Reducción de Daños”, o EP que foi gravado apenas por Ariel e Florencia em 2011?
Em 2010, nos três voltamos a tocar juntos, depois de uns seis anos sem fazer isso. Fizemos um monte de shows, uns 20 em meio ano, em vários países. Aí surgiu a ideia de fazer um disco novo, e justamente neste momento “La Autopista…” estava a ponto de sair, e pedi a eles (Ariel e Florencia) se me apoiariam, porque eu queria aproveitar o lançamento do álbum do Valle de Muñecas, e se eles quisessem, faríamos um álbum depois. E aconteceu que eles queriam fazer um disco naquele momento, e fizeram assim mesmo (risos). Estávamos (Valle de Muñecas) sem lançar nada há uns anos, e me parecia que lançar os dois discos ao mesmo tempo roubaria espaço de “La Autopista…”, não lhe faria justiça. Olhando agora em perspectiva, talvez eu teria gostado de lançar um disco com os dois, mas não me arrependo, me parece que o disco do Valle de Muñecas teve o lugar que merecia por causa dessa direção [que eu tomei].

Chega a ser um problema para os demais integrantes do Valle de Muñecas que, em tantas entrevistas (como essa, inclusive), lhe perguntem ainda sobre Flopa Manza Minimal?
Espero que não (risos). É incômodo se acontece como já aconteceu: a matéria supostamente ser sobre Valle de Muñecas, mas falar 60 ou 70 por cento de Flopa Manza Minimal. Mas não me incomoda, e creio que a eles também não. Meu irmão Luciano foi baterista de Flopa Manza Minimal.

Você já declarou várias vezes que, com o Valle de Muñecas, gostaria de falar para mais pessoas que vocês efetivamente falam. Que a posição de “artista de culto” não é confortável para você. Então cabe a pergunta: o que falta à banda para que isso aconteça, para que não seja apenas uma cult band?
(pausa) Não tenho ideia (risos). Não sei. (risos) Acho que nós não nos preocupamos muito com a maneira de difundir o que nós fazemos, por muitos anos. Nos preocupamos em fazer bons shows e bons discos. Faltou a nós gente que desse uma mão nesses aspectos (comerciais)… Pelo menos agora que estamos trabalhando com a Scatter (Records, selo da banda) sentimos que há mais pessoas que são parte de nossa equipe. Isso não acontecia antes. Na verdade, penso muito na música e nos discos, e pouco na maneira de mostra-los. Porque não é algo que me venha naturalmente. Se tivesse alguém ao meu lado que pensasse isso por mim, seria ótimo.

Mesmo não tendo esse sucesso comercial, é sua banda que mais durou. São dez anos já. Acredita que a “autopista” ainda tem muitos quilômetros a percorrer – ou, pelo menos, mais uns dez anos de viagem?
(risos) Não sei. Espero que sim. Estamos contentes agora. Estamos pensando em um disco novo, o que sempre é um momento de prazer para uma banda como entidade coletiva. Este vai ser um disco, como foi o “Días de Suerte”, no qual estamos chegando com as canções muito ensaiadas, tendo inclusive tocado-as ao vivo. Mas cada um de nós tem sua vida pessoal, e o rock não põe comida na mesa para os quatro, então às vezes os projetos da banda caminham paralelamente aos projetos pessoais de cada um. É preciso manter um equilíbrio em toda a coisa para que tudo continue funcionando. No momento, estamos pensando em fazer um disco novo, que é a coisa mais saudável que pode passar a uma banda. Esperamos que depois continuemos fazendo mais um monte de shows, e que a banda dure muito tempo.

Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yel

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