Entre a biografia e o delírio, “Monica”, de Daniel Clowes, joga leitor em um mundo que atrai e repele na mesma medida

texto de Leonardo Tissot

Um novo trabalho de Daniel Clowes sempre é um grande evento no mundo dos quadrinhos, ainda mais depois de sete anos desde seu último lançamento, “Paciência”. O autor atingiu um patamar tão elevado de reconhecimento que “Monica” ganhou uma edição nacional poucas semanas após ter saído lá fora, em outubro — cortesia da editora Nemo.

Na imprensa especializada estadunidense, o livro vem sendo aclamado como obra-prima. Essencialmente, “Monica” é uma HQ composta por nove histórias entrelaçadas, embora isso nem sempre fique óbvio para o leitor. O autor homenageia estilos consagrados da nona arte — guerra, horror, eventos sobrenaturais… — em contos que avançam dos anos 60 até os dias de hoje.

Monica, a personagem, ainda nem é nascida quando o livro começa. Em “Trincheira”, história que abre o livro, o noivo de sua mãe, Johnny, conversa com um colega militar enquanto ambos se encontram na selva durante a guerra do Vietnã.

No conto seguinte, “Pretty Penny”, conhecemos a tal mãe — e, pode-se dizer, verdadeira personagem principal do livro, embora permaneça quase oculta ao longo das pouco mais de 100 páginas da obra. Logo na cena inicial, vem o contraponto à primeira história: nua sobre a cama, ela trai o soldado Johnny com outro homem. Vivia-se o auge da era do amor livre.

Grávida de Monica, Penny decide ter a criança como forma de mandar a família, a sociedade e “os Estados Unidos em geral” à merda. A partir daí, o leitor começa a entender um pouco mais os rumos da história proposta por Clowes, e a busca incessante de Monica por um reencontro com a mãe, que a deixou com os avós ainda na infância.

Clowes já assumiu em entrevistas que “Monica” tem um quê de autobiografia. Sua mãe — que morreu enquanto o quadrinista produzia a obra — realmente viveu a era hippie e largou seu pai quando Daniel era pequeno.

Além disso, o artista foi criado pelos avós durante a maior parte da infância. Diferentemente de Penny, porém, ela não o abandonou por completo. “Ela era presente. Costumávamos jantar juntos uma vez por semana. Foi um lance meio ‘não estou muito a fim de ser mãe agora’”, revelou em entrevista ao Alta Journal.

A partir daí, o livro começa a ficar… estranho. Em “O Fulgor Infernal”, conhecemos William, um jovem que retorna à cidade natal para encontrar a casa de sua família em um estado “lastimoso” e um grupo de ex-colegas de escola que cantam na floresta para uma plateia formada por pessoas azuis.

Em “Demônica”, mais um retorno: logo após a morte da avó, a personagem-título volta ao chalé onde passava os verões na infância. Ao chegar lá, seu falecido avô se comunica com ela por meio de um aparelho de rádio portátil.

Monica ainda será vista fundando sua própria empresa de velas, envolvendo-se com um culto bizarro enquanto procura por vestígios de Penny e envelhecendo ao lado de um personagem surpreendente (melhor poupar o leitor do spoiler).

Tá, mas e daí? Por que “Monica” está sendo tão aclamada? É a narrativa? Bem, já vimos algo similar — e muito mais impressionante — no filme “Boyhood”. São os desenhos retrô de Clowes? Alguns diriam que ele já fez melhores. São os diálogos? “Ghost World” ganha de goleada. É a forma como ele pega nossa mão e nos leva a um mundo peculiar, no qual não nos sentimos à vontade, mas do qual também não temos intenção de sair? ¯\_(ツ)_/¯

Não estou só. Em sua newsletter VIRAPÁGINA, o tradutor Érico Assis disse que não sabia se havia entendido “Monica”. “Isso aqui tá completo?”, ele chega a se perguntar na 8ª edição, ao comentar sobre sua reação na primeira leitura da HQ.

George Chen, que entrevistou Clowes para o Alta Journal, também tem lá suas dúvidas. “Ainda quero decifrar o que está acontecendo”, cutucou o jornalista. Clowes mandou na lata: “Está tudo no texto. Não há nada que apenas eu saiba e que mais ninguém possa descobrir”.

Por enquanto, o quadrinista se limita a dizer isso, mas pondera que “daqui a dois anos”, quando todo mundo já tiver lido a HQ, pode ser que ele revele “o que estava pensando” ao escrever “Monica”. Então há algo a “entender”, um subtexto a procurar na obra? Ao que tudo indica, sim. Mas pode ser que seja só isso mesmo. É só “o que está no texto”.

Seja como for, a viagem à qual Clowes nos convida a embarcar não se resume à jornada de Monica em busca de Penny. Nem de Clowes em busca de quem realmente foi Allison, sua mãe. É tudo isso e mais um pouco. Cabe a cada leitor fazer sua própria interpretação — ou esperar até que o autor resolva esclarecer suas intenções. Por outro lado, que graça teria isso?

“Monica” tem qualidades difíceis de explicar. Tem algo ali, ainda que o entendimento do que o autor quis transmitir não seja completo.

Terminar de ler “Monica” é como acordar depois de um sonho. É esquecer imediatamente os detalhes do que foi sonhado, mas ficar com aquela sensação martelando a cabeça o dia todo. É querer dormir de novo e tentar voltar a sonhar.

Não dá pra pedir muito mais de uma história em quadrinhos. Já pode ler de novo?

– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo. Leia outros textos de Leonardo!.

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