Faixa a faixa: “The Land Is Inhospitable And So Are We”, o novo disco de Mitski e a reinvenção ao aroma do petricor

texto por Fernando Yokota

Protagonista de um dos melhores shows do Primavera Sound São Paulo 2022, Mitski volta às prateleiras com seu novo álbum, “The Land Is Inhospitable And So Are We” (2023), um ano depois de seu aclamado Laurel Hell (2022). Tivemos a oportunidade de escutar o disquinho antes do lançamento mundial em audição antecipada no coração pulsante dos colecionadores de vinil da capital paulista, a Galeria Nova Barão, mais especificamente na loja colaborativa Casa da Mia / Made In Quebrada Discos.

Embrulhado numa etiqueta de “americana sinfônico”, “The Land Is Inhospitable And So Are We” é grandioso mas não pretensioso, épico, mas evitando o cafona, orgânico sem apelar para o “menos é mais”. Enquanto “Laurel Hell” — frenético, anos 80 e sintético — era como segurar a respiração e dançar por meia hora envolto pelas chamas, “The Land Is Inhospitable And So Are We” é o exercício solipsista de escuta da própria respiração.

Numa comparação direta, o cheiro do suor de pista de dança com o chão grudento de cerveja derramada de “Laurel Hell”  dá lugar ao aroma da chuva caindo no chão nas 11 faixas de “The Land Is Inhospitable And So Are We”, que trazem muita variação dinâmica, quase sempre conduzidas pelo som do violão, e um tom exausto de uma voz falando sobre as mazelas da condição humana. Acompanhe a nossa sensação de cada uma das faixas do novo disco de Mitski.

01 – Bug Like An Angel: O primeiro single e a faixa de abertura é o prenúncio da ruptura musical com seu antecessor. O coral, os violões e o tom contido distanciam-se da produção carregada na tinta dos anos 80 de “Laurel Hell”. “Hino” é uma palavra que pode ter duas traduções em inglês e “Bug Like An Angel” é menos um “anthem” e mais um “hymn”, com o coral dando contornos de louvor. Seus versos, entretanto, passam pela imagem de um inseto afogado no fundo de um copo, talvez o reflexo de quem se vê às voltas com a bebida como companheira.

02 – Buffalo Replaced: Coincidência ou não, a faixa seguinte, “Buffalo Replaced” começa falando sobre mosquitos e mariposas. Na primeira parte desenha-se uma bucólica noite que de verão que, na segunda estrofe, rapidamente se transforma num lamento de alguém que só desiste de desistir de tudo por conta do porto seguro de um amor. O instrumental não é muito elaborado, com teclados esparsos, mas com um violão pesado que dá a sisudez que os versos em princípio evitam.

03 – Heaven: Foi uma das faixas do segundo single da campanha promocional. O pedal steel, ator coadjuvante de destaque no decorrer do disco, faz sua primeira aparição, não escondendo o fato de ter sido em parte gravado em Nashville. Com seu arranjo de cordas formoso e um final em que a voz vai se escondendo entre os violinos, não seria exagero dizer que poderia estar num disco de Lucinda Williams ou Alison Krauss.

04 – I Don’t Like My Mind: Em ritmo de valsa, “I Don’t Like My Mind” é o exemplo escolar daquilo que convencionou-se chamar de “americana”: não é rock, não é folk, não é country e nem pop mas é um pouco de casa uma dessas coisas. O pedal steel, mais uma vez presente, entra em sintonia com os versos da “neosofrência millennial” infusionada na depressão oriunda da autoflagelação de quem se flagra remoendo coisas das quais gostaria de esquecer.

05 – The Deal: Sem um refrão, “The Deal” é um pequeno conto em quatro atos que fala sobre uma tentativa de vender a alma. Com um final caótico, que traz reminiscências de “A Day In The Life”, dos Beatles, ela soa como uma locomotiva desgovernada a caminho de um penhasco. Daria um ótimo clipe ao estilo de “Paranoid Android” ou “Three Little Pigs”.

06 – When Memories Snow: Assim como quase todas as outras, essa é mais faixa curta com um arranjo de cordas marcante. Tão curta quanto a nossa memória conforme os anos vão passando e as lembranças vão se misturando (ou se derretendo, como dizem os versos). A voz de Mitski, afundada na mix, retoma a temática de “I Don’t Like My Mind” recriando cenários fictícios que alimentam a fogueira da ansiedade numa noite de insônia.

07 – My Love Mine All Mine: Existe amor em “The Land Is Inhospitable And So Are We”. Num álbum cheio de momentos memoráveis, os três minutos menos interessantes do disco são justamente aqueles que falam sobre o amor de forma mais direta. Longe de ser ruim, “My Love Mine All Mine” carece do “nevoeiro alegórico” das as outras faixas, tanto lírica quanto musicalmente.

08 – The Frost: Talvez a funcao de “My Love Mine All Mine” seja a de antagonizar com “The Frost”. Em contraste com a faixa anterior, o tema da solidão e da ressaca moral pós fim de relacionamento. Como o pequeno príncipe de Saint-Exupéry, Mitski diz que a casa agora é só dela, dela sozinha. Sozinha como no dilema da árvore que cai sem ninguém por perto para escutar o barulho. Em menos de cinco minutos o júbilo da independência recém reconquistada se transmuta no silêncio da solidão.

09 – Star: Lançada em conjunto com “Heaven”, “Star” foi a terceira faixa do novo álbum liberada antes de seu lançamento. Esteticamente falando, é a que mais se aproxima de” Laurel Hell” (ainda que distantemente). Com uma cama de órgão e uma entrada de bateria ao estilo Nigel Olsson (o baterista de Elton John, que inspirou as quinhentas viradas de bateria idênticas em “November Rain”), “Star” tem a produção mais elaborada, preenchida de texturas. O grande momento é guardado para o final no qual a voz de Mistki vai sumindo por entre os instrumentos numa alegoria precisa de um corpo sendo engolido pela luz, no caso de uma estrela.

10 – I’m Your Man: A mais intrigante música do disco, “I’m Your Man” pinta a relação homem-cão com tons abusivos (“You believe me like a god, I betray you like a man). E não poderia ser a relação entre um casal, pais e filhos, médico e paciente, etc.? Mitski não autoriza nem desautoriza essa transposição. No trecho final, sons de grilos e cachorros acentuam o clima introspectivo e convidativo à reflexão.

11 – I Love Me After You: O som de um ventilador mecânico pulmonar serve de metrônomo e junto com a voz modulada cria um clima soturno para a faixa de encerramento do disco. Assim como em “The Frost”, Mitski aborda a solidão, palavra que não necessariamente tem conotação negativa. Em inglês, pode ser traduzida como “loneliness” ou “solitude” e se em “The Frost” o tema se aproxima da primeira, em “I Love Me After You” Mitski fala sobre a última, do cuidado de si, do isolamento como opção e terapia. Ao final a banda inteira — baixo, guitarras distorcidas, bateria agressiva — entra para o momento mais barulhento de um álbum memorável.

– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/

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