Faixa a faixa: Larissa Conforto fala de “Transes”, novo disco de seu projeto ÀIYÉ, e diz que REGGAETON É O NOVO PUNK ROCK

introdução por Marcelo Costa
Faixa a faixa por ÀIYÉ

Na semana seguinte em que a pandemia foi decretada em 2020, Larissa Conforto apresentava “Gratitrevas”, EP de estreia de seu projeto ÀIYÉ ao mundo, um disco que trazia impresso em seu âmago marcas de “todas as catástrofes [sociais, ecológicas, políticas]” que nos perpassavam naquele momento. Três anos depois ela ressurge mais feliz e colorida com “Transes” (Balaclava Records, 2023), um disco ensolarado e empolgante “entre a pista e o terreiro”, como adianta o texto do release, que ainda fala que “synths e santos ocupam um lugar de igual importância na narrativa contada pela artista”.

Mais do que isso, “Transes”, cuja capa criada num processo de colagem traz, ao centro, Larissa como uma Carmen Miranda moderna, é um disco pop genuíno com refrãos fortes para se cantar junto, o tradicional trabalho exímio de percussão que marca a trajetória de Larissa e, ainda, um avanço natural tanto no território das composições quanto de colocação da voz, que surge aqui mais à frente, cristalina, verbalizando amor, espiritualidade e futurismo enquanto funda o AXINDIE – “uma piada interna séria, dedicada à mamãe Yemanjá e à uma paixão de verão na Bahia”, ela se apressa em avisar em certo momento do delicioso faixa a faixa abaixo.

Transes” combina referências da deusa eterna Clara Nunes com a deusa moderna Rosalía (“’Motomami’, avisa Larissa, “anuncia algo que eu já sabia: O REGGAETON É O NOVO PUNK ROCK”) passando por nomes como o galego Rodrigo Cuevas, Flying Lotus, Alcione, Djavan e É O Tchan (aliás, seria viagem demais fazer uma conexão de “A Dança do Ventre” com Ventre, a banda que apresentou Larissa ao mundo?). É um disco de encruzilhada, de vivência umbandista, de despertar, de se reconhecer no movimento dos quadris, de celebrar as coisas boas: “INELEGIVEL PORRAAAA”, ela grita feliz no faixa a faixa abaixo, revelando muitas mais coisas. Vem com a gente.

Faixa a faixa de “Transes”, por ÀIYÉ

(intro) – Autoexplicativo, né? Pra quem não pegou a ref, é só botar no navegador: “Essa é a mistura do Brasil com o Egito, tem que ter charme pra dançar bonito!!” Essa intro pintou de última hora, pra apresentar o clima descontraído dessa encruzilhada (e eu digo isso de uma forma boa, vocês já sabem né!) que eu chamei de disco!

02) Onda – Fundação do AXINDIE, essa música é um xodó <3 – uma piada interna séria, dedicada à mamãe Yemanjá e à uma paixão de verão na Bahia, que embalou os pedidos do 2 de fevereiro na urgência profunda de amar mais leve, sem jogos de amor. É louco que essa faixa abra o disco porque ela começou como uma brincadeira sobre multi afetos, poli amorosidade e responsabilidade afetiva – afinal, desligar o projetor significa perceber quando estamos nos projetando na pessoa amada, e desejando que ela seja como nós. Projeções amorosas são aqueles castelinhos que a gente cria na cabeça, caraminholas que não necessariamente abraçam a causa do amor tranquilo – pauta nobre no ministério do namoro, inclusive. Como pessoa panssexual e não monogâmica, sinto que esse é um assunto que me atravessa o tempo todo, e não podia deixar de estar presente dentre os pedidos e oferendas à mamãe Yemanjá, nesse clima de verão delícia de Brasil democrático (e com alguém inelegívellll). Que seja leve! Odociaba!

03) Oxumaré (Que Meus Venenos Sejam Mel) – Oxumaré é Orixá, patrono da beleza na terra, rainhe dos ciclos, transformações e mudanças. Nem homem nem mulher, oxumaré é representade por uma serpente bela que conhece os segredos do céu e da terra. Nos ensina a renovar através dos ciclos, e ver beleza naquilo que parece doloroso. Essa música celebra o tempo em que estive me acercando dessa energia, desse axé, pra questionar meu lugar de desejo, meu corpo, minha sexualidade e formas perceber e desconstruir as ideias de gênero que moravam em mim. As vezes o vilão mora dentro da nossa cabeça, e pra mim essa música é um rezo pra que – através do axé de Oxumaré – eu aprenda a transformar veneno em mel, morte em vida, dor em amor. Foi (e é um processo intenso, mas sigo celebrando e honrando essa força!) o beat foi feito pensando nos movimentos dessa cobra, e eu queria que tivesse um teor ambíguo, sexual – embora sagrado, um espaço pra misturar sagrado e profano de forma leve. Em junho ela ganhou um remix feito pela Viridiana (RS), artista trans que sou fã, e as percussões foram gravadas por 4rt, ume grande amigue e mestre, pessoa não binárie e macumbeire que me ensina e acompanha nessa vida. Arroboboi!

04) Diablo XV – Eu não sei se amo ou odeio essa música! HAHAHA Acho que ela fala por si própria, é uma fogueira pra queimar relacionamentos tóxicos, lugar de extravazar a raiva brincando, me permitindo ser vilã e mocinha de mim mesma, saindo dos padrões de bem e mal – tal qual o arcano XV (O Diabo do Tarot) nos propõe. É claro que ela é inspirada no “Motomami”, da Rosalia, que lançou bem na época em que eu estava em imersão com o Poloni lá em casa. É um disco impactante, que anuncia algo que eu já sabia: O REGGAETON É O NOVO PUNK ROCK – assim como o brega, o funk, a cúmbia, a bomba… e toda música de periferia latino-americana. O espírito punk se mudou, e agora mora nesses ritmos, só não vê quem não quer. E aí brincando um pouco com o fato da Rosalia ter posto um sample de tamborim de samba em uma de suas músicas, eu resolvi botar o reggaeton num bloco de carnaval, pra celebrar esse fim de relacionamento brabíssimo. Claro que a letra tinha que ser em espanhol, isso é algo que eu tinha vontade faz tempo, por conta da minha relação com a língua, de tantos anos que passei viajando e pesquisando nossos ritmos dentro da construção de identidade latina. É pra dançar, é pra queimar, é pra brincar, e é pra romper padrões e ressignificar símbolos, sim senhores!

05) Flui – Sobre abraçar as pedras no caminho e reconhecer o poder da queda. Sobre entender os medos como um sintoma dos desejos mais profundos. Durante um processo mega intenso de meditação na floresta (por 8 horas) em jejum de água, comida e palavra, eu me vi sentada em uma pedra, observando um pequeno riacho desaguar. Quanto mais a água corria, mais eu percebia seus movimentos por entre as pedras. Fui me dando conta de que, se não fossem essas pedras, os rios seriam água sobre terra, não haveria fluxo. Esse rio me disse: “FLUI, minha filha”, e me mostrou que sua grande força e beleza, está na queda. A natureza ensina nas suas entrelinhas, tudo, até mesmo o movimento mais simples <3 como diria a rainha Gal, tudo é divino e maravilhoso! Ora iê iê

06) Cores de Oxum – Mamãe Oxum rege o reino do amor, representa a cachoeira, a abundância, e o ouro. Está associada à cor amarelo ou dourado, mas pra mim o amor é da cor do arco íris, e é sobre isso que essa música fala. Oxum é a fundadora da vida, porque o amor é o axé maior, fundamento de tudo que existe. Nessa música eu evoco suas forças pra que todo o preconceito e a hostilidade se dissolvam, pra que a gente possa se reunir sob os termos da simplicidade do amor. “Omi tutu” é um ritual de jogar água nas calçadas quentes, pra apaziguar as situações difíceis. Então eu peço que essa mãe nos regue, e regue toda a terra seca, pra que toda situação de ódio e conflito encontre seu fim. Tudo que é fruto mãe inicia e logo findará (INELEGIVEL PORRAAAA). É um Ijexá solar, dançante e esperançoso, pra gente se abraçar e cantar junto :}

07) Saci – Originalmente essa track abriria o disco. Justamente por ter sido a música que abriu os caminhos pra essa nova fase, pra que eu pudesse receber o chamado e entender o que precisava ser feito. Durante a quarentena em São Paulo, um Saci começou a me visitar. Eu achei que tava ficando louca! Logo procurei o lider espiritual do espaço que eu frequentava, que me orientou a buscar um terreiro que trabalhasse com sacis, embora essa fosse uma prática rara. Depois de muito buscar, me encontrei no Quilombo da Vó Mironga, um espacinho em Cotia que me abrigou e guiou nessa jornada, pra entender que Saci é sim uma entidade sagrada e que pode ser evocada pra trabalhar dentro da linha de exu mirim. Fui amparada pela avó Uni, também conhecida como ayahuasca, e pela minha yalorixá na época, a cantar pro Saci. Desde que comecei, passei a receber muitos cantos pra outros santos, em sonho. Se abriu um canal de muita luz na minha estrada. Saravá seu saci! Salve suas forças! Viva os erês, os exus, os exús mirins! Saci é cria dos três mundos. É encantaria, é pajelança, é África, é Brasil, é originário, é popular, é tudo de bom. Saci é despertar!

Capa de “Transes”, de ÀIYÉ

08) Xangô – Xangô é a justiça divina. É a lei sobre todas as leis, é como o divino se expressa na matéria. Pai xangô mora nas pedreiras, e é representado pela força dos raios e trovões, e também pelos vulcões -dá pra visualizar essa força? É o raio que anuncia a chuva (de mamãe Iansã). Essa melodia “Clariô clariô clariô, raio de xangô” veio num sonho, em que eu via toda a mata iluminada por esse raio, e assim achava o caminho de casa. Era uma visão muito forte, uma luz muito poderosa, majestosa! Por isso eu fui buscar esses metais apoteóticos, que se reuniram perfeitamente com o baixo acústico do Fabinho Sá, baixista incrível que tocou muitos anos com a Gal, e trouxe o peso e a leveza desse instrumento, nos arcos e no dedo. A gente brincou com o som de raios, e usou sons de atabaques distorcidos, com pitch alterado (gravados pela pessoa genial 4rt, do ATABLOCO). Também reciclei beats que havia feito pra Ju Strassacapa, no projeto Lazuli. Reutilizei as palmas que gravamos, e alguns outros timbres que já tinha criado naquela ocasião, pensando nessa força. Também gravei bateria acústica, uma alfaia e caxixis. Tudo isso pra trazer o peso e a leveza, o claro e escuro, os dois lados que se equilibram e são em si a própria lei divina.

09) Pomba Gira – Essa foi a última música que fiz, do disco. Ela veio quase psicografada, é uma homenagem à Dona 7 e a todas as moças, as marias que trabalham nos terreiros, encantarias e outras mirongas Brasil afora. Laroyê as pombogiras! Salve vossas forças! Apesar de ser uma melodia bem brasileira (de terreiro, quase que feita pra um congo ou congo de ouro), eu usei uma base de festejo peruano pro beat, e fui adicionando cédulas de congo no atabaque. Deixei-a bem simples, pra ter esse feeling do ritual, da voz e tambor, da evocação mesmo. Acho que é uma das minhas faixas favoritas.

10) Exu – Essa faixa foi a primeira de todas a ser lançada, porque tudo começa e termina em Exú. Exú é boca que tudo come e tudo devolve, é o nada que tudo conhece. Essa música foi inspirada num velho itã da criação, que descreve exú assim, uma boca insaciável que, de tanta fome, comeu o mundo – e depois de digerir e conhecer a essência de tudo, devolveu o mundo pro lugar. Assim, passou a governar os “entres”: tudo que vive e morre, as encruzilhadas, entradas e saídas. Pra além da simbologia e mitologia desse orixá tão fundamental, também sinto que essa boca que tem fome de tudo e nunca está satisfeita, aqui no mundo dos homens, também é uma alegoria do próprio sistema capital-patriarcalista em que vivemos. Então no fundo essa música tem um teor de crítica e de rezor, de alguma forma eu clamo pra que Ele, aquele que é dono do mistério do insaciável na esfera do divino, o único capaz de cortar/quebrar e reverter tudo que nos consome, possa reverter esse cenário. Laroyê Exú! Exú é força primordial, é o que havia antes do verbo, e que sempre haverá quando nada sobrar. Exú é mojubá!

11) Oração – É uma oração pro meu coração. Sobre as paixões, as dores, e as delícias. Ela original é um canto tambor e voz e se chama coração, mas pro disco ganhou um arranjo de autoria do meu parceiro Diego Poloni, genião dos beats, então virou outra música, “Oração”, e ganhou mais um verso, feito pela minha amiga querida SÚS, Susana Nunes, artista portuguesa, com quem eu tive uma troca super intensa e acabei criando bastante junto.

12) Bad Omen – É em inglês porque é sobre xenofobia. Foram muitos episódios de xenofobia quando eu estive vivendo em Lisboa, e quando eu pisei outra vez no Brasil a ficha caiu severamente. Essa música veio nesse momento, e a guitarra base que eu gravei na guia está na track, no fundinho, com o pitch bem alterado, umas 3 oitavas pra baixo… a base dela é toda com umas vozes no reverse, que pra mim são as vozes da minha cabeça, e aquelas vozes que a gente escuta nas entrelinhas do nosso entorno, em cada gesto, cada palavra. Também gravei bateria nessa, e sinto que ela tem algo da Ventre, que talvez tenha a ver com o compasso composto, que é um clássico do Gabriel :}

13) Ori – Eu recebi essas palavras em yorubá num transe, e depois ela veio com mais força em sonho. Ori é o orixá que vive na nossa cabeça. É a nossa conexão com o divino, nossa coroa! Devemos saudá-la diariamente e rezar pra que ela esteja sempre saudável. Que Ori nos proteja e esteja atenta, que ela esteja sempre conectada com o que há de melhor para mim. É difícil cantar em Yorubá, então eu fiquei um tempo pra entender a métrica e a melodia, por isso ela tem esse compasso doido. Por fim, fiz a tradução em inglês, depois que a base já tava pronta, só porque achei que valia à pena explicar o que tá sendo dito – depois de uma turnê europeia traduzindo todas as letras e explicando tudo em inglês, a tecla sap começou a se fazer presente no meu processo criativo.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. As fotos que ilustram o texto são de Hannah Carvalho / Divulgação



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