Entrevista: “Nick Cave me deu conselhos bem engraçados”, revela Reinhard Kleist, autor da HQ “Nick Cave: Piedade de mim”

entrevista por Leonardo Tissot

Lançada em 2017 lá fora, a HQ “Nick Cave: Piedade de mim” (“Nick Cave: Mercy on Me” no original) chegou ao Brasil em junho via editora hipotética (responsável ainda pelo lançamento de “Um Lugar do Caralho“, de Thiago Krening). Escrita e desenhada pelo quadrinista alemão Reinhard Kleist (autor de “Johnny Cash – Uma Biografia”, “Castro” e “O Boxeador”, entre outos), com tradução de Augusto Paim, a obra evita cair nas armadilhas de uma biografia tradicional.

Se você quer saber detalhes sobre a infância de Nick Cave ou como ele lidou com a perda dos filhos Arthur e Jethro, melhor procurar essas informações em outro lugar. “Piedade de mim” foca no início da carreira do músico australiano com a banda The Birthday Party, a formação dos Bad Seeds e as dificuldades de se estabelecer no cenário musical — incluindo as passagens por Londres e Berlim (aliás, cidade natal do autor).

Ainda tentando fugir das fórmulas prontas do gênero biográfico, Kleist usa e abusa das possibilidades oferecidas pelos quadrinhos para colocar Cave em situações muitas vezes absurdas, dentro de cenários descritos pelo próprio músico em suas canções. Personagens de Cave também aparecem para atormentá-lo — ou, pelo menos, para tirar satisfações a respeito de seus destinos nas letras das músicas —, e chega a lembrar o filme “Desconstruindo Harry“, de Woody Allen.

Scream & Yell conversou com o autor para saber mais sobre o processo de criação de “Piedade de mim”, a colaboração do próprio Nick Cave no trabalho, os desafios de escrever diálogos para o músico e como Kleist transportou a energia do som dos Bad Seeds para as páginas do livro – a HQ está disponível para compra na loja da editora hipotética: loja.hipotetica.com.br

Para começar, o que o atraiu na história de Nick Cave e o levou a desenvolver “Piedade de mim”?
Basicamente, eu sou um grande fã de seu trabalho. Conversei com amigos meus a respeito da abordagem que poderia trazer para a história, e aí alguém disse que conhecia alguém, que conhecia alguém… Acabei conseguindo contatar a responsável pelo marketing da gravadora dele na Alemanha, e ela se interessou bastante pelo projeto. Então, foi feito um contato com a assistente dele, e a resposta foi que “ele recebe ideias assim toda semana e na maior parte das vezes diz ‘não’”. Mas acabou que ele já conhecia meu livro sobre Johnny Cash e havia gostado. Daí recebi um e-mail dele dizendo que estava interessado, e ainda com algumas ideias a respeito de como abordar a história. Fiquei embasbacado, mas foi assim que tudo começou. Nos falamos algumas vezes por telefone e trocamos e-mails. Eu não queria fazer uma biografia tradicional, contando a vida dele de A a Z. Ele também se interessou por essa abordagem, queria algo mais mitológico. Daí eu apresentei a ideia de ter quatro narradores, que seriam personagens de seus livros ou de suas canções.

Então foi algo bem colaborativo, com várias ideias dele também.
Com certeza. E ele também me deu alguns conselhos bem engraçados. Por exemplo, ele não curtiu muito a minha primeira ideia para o livro. Ele me falou: “Reinhard, você está fazendo uma história em quadrinhos, você pode fazer o que quiser com ela. Você pode me mandar pra lua se quiser. Não precisa ficar preso à realidade”. E aí, acabou que eu fiz exatamente isso: mandei ele para o espaço em uma das páginas da HQ. Acho que foi isso que o atraiu ao projeto. No final, as coisas se complicaram porque eu estava passando por alguns problemas pessoais — e ele também, foi na época que ele perdeu seu filho Arthur. Mas acabamos nos reunindo novamente, quando ele estava ensaiando para o álbum “Skeleton Tree”. Mostrei o material e ele adorou, e também ficou agradecido por não ter mencionado nada a respeito do falecimento de Arthur.

Além do processo colaborativo com Cave, você fez muita pesquisa antes? Leu sobre ele, resgatou materiais antigos?
É engraçado, porque não há muito material biográfico a respeito dele. Tem um livro muito bom do jornalista Max Dax e outro não tão bom escrito por Ian Johnston. Max me ajudou muito nesse processo. Eu tinha muito material sobre ele, especialmente sobre a fase que ele viveu em Berlim, aquela cena musical maluca dos anos 80 e 90. A maior parte da pesquisa foi feita na internet e por meio de entrevistas e documentários. Mas como falei, a ideia nunca foi contar a vida dele em ordem cronológica, e sim detalhar algumas partes. E daí a ideia dos narradores e tal.

Fale um pouco mais sobre essa inclusão de personagens das canções de Nick Cave na história. É muito interessante a forma como eles o confrontam. E Cave acaba precisando lidar com o destino que ele mesmo criou para esses personagens — que, na maioria das vezes, não estão muito felizes com o que aconteceu a eles.
Tem uma palestra dele num curso de escritores que é muito interessante. Ele fala a respeito do poder das canções de amor, de como personagens fortes vivem na cabeça dos leitores. É isso que faz um grande trabalho artístico. E isso também te coloca em uma posição de “deus”, de criador de um novo universo — você pode decidir quem vive e quem morre, quem será feliz para sempre e quem não será. Daí pensei, “é exatamente isso que vou fazer na minha história”: criar uma conexão entre o trabalho e a vida de Nick Cave. A maioria das pessoas nas histórias dele morrem no final, então pra mim era algo muito óbvio que os personagens o confrontariam: “por que eu tive que morrer?”. E isso traz uma série de questões filosóficas sobre como os trabalhos artísticos são feitos, sobre o que acontece nesses mundos e qual o papel de Nick neles.

E como foi colocar palavras na boca de Nick Cave? Quer dizer, como foi lidar com a responsabilidade de criar diálogos para uma pessoa real, mas que também é personagem de livro? Você estudou o jeito dele falar em entrevistas ou nas próprias conversas que teve com ele?
Fiz exatamente isso. Absorvi a forma como ele age, como fala e como a voz dele soa. Tentei encontrar minhas próprias palavras na forma como ele fala. Com os outros personagens, você precisa encontrar a voz deles, pensar como agiriam em determinadas situações e aí desenvolvê-los.

Agora uma pergunta inevitável para um jornalista brasileiro. Senti falta de vermos mais sobre a vida de Nick no período que ele passou no Brasil. Tenho certeza que você teve suas razões para não se aprofundar tanto nessa fase, mas mesmo assim queria perguntar qual a razão.
Peço desculpas por isso. Só coloquei um pouquinho do Rio de Janeiro no livro. Bem, na verdade, é mais ou menos nessa época que a minha história termina. Paro, basicamente, quando ele está vivendo em Berlim. Quis detalhar bem essa parte, porque vivo em Berlim e conheço melhor aqui. Coloquei vários amigos meus em cena, seja assistindo shows, nos bares… Pessoas que realmente viveram essa época, que estavam lá quando a história acontecia. Agora estou trabalhando na segunda parte da minha HQ sobre David Bowie, e também foco bastante na fase que ele viveu em Berlim. É sempre muito bom poder retratar sua cidade natal.

E você tem a intenção de voltar a desenvolver algum trabalho sobre Nick Cave no futuro, considerando que a vida dele é incrivelmente rica e tem ótimas histórias para serem contadas?
Na verdade, não. O que eu queria contar, já contei. No momento tenho pensado se vou voltar a fazer alguma biografia sobre músicos, pois sinto que estou me repetindo. Se eu fizer, será um projeto completamente diferente dos anteriores, não será tão biográfico. Tenho pensado em desenvolver minhas próprias histórias.

Há um desafio grande, que nem sempre o cinema e os quadrinhos conseguem superar, que é o de retratar o ritmo e a energia da música em outra mídia. Acho que você consegue fazer isso muito bem e queria saber como alcança esse resultado?
Comecei a fazer isso no meu livro sobre Johnny Cash. O grande problema é trabalhar com uma mídia que não tem som, mas com a necessidade de transportar o sentimento da música para as páginas. Então, pensei em ilustrar as canções como contos. Também fiz isso na HQ de Nick Cave, de forma mais expandida, tentando integrar as canções à história. Tem a cena em que ele é o capitão do navio e não sabe para onde ir, e os demais membros da banda também estão a bordo e se voltam contra ele [a canção ilustrada é “Cabin Fever!”]. Foi também uma forma de mostrar como ele estava insatisfeito com seu trabalho e com seu relacionamento com a namorada na época. No livro de Johnny Cash, a abordagem foi diferente. Mostrei o show na prisão de Folsom, que é uma parte enorme do livro, destacando o que rola ao redor do show, durante o show… Queria mostrar o que acontecia sobre o palco porque isso também revelava muito sobre o momento que ele estava passando na sua vida. Também queria mostrar o quanto seus shows eram punks, como ele se aventurava no palco e como a música pode ser fascinante. No momento, estou trabalhando em algumas páginas que ilustram o processo de gravação da música “Heroes”, de David Bowie. Quero mostrar como eles fizeram a gravação, mas também quero incluir outros elementos gráficos, como ondas sonoras… Mas não sei se está funcionando. Quero mostrar como eles gravaram aquele som especial de guitarra e a voz, e fazer com que o leitor vá ouvir a música. Quero criar as páginas pensando que um dia um leitor vai chegar pra mim e falar: “estava lendo seu livro e, ao mesmo tempo, ouvindo a música no meu fone de ouvido”. É isso que eu quero.

Você já disse que não pretende fazer outra biografia musical em quadrinhos. Mas se fosse fazer, quem gostaria de biografar?
Estou dizendo isso agora, mas vamos ver… Aprecio muito a música de Patti Smith, seria ótimo fazer algo sobre ela. Mas temo que fique muito parecido com o que já fiz nos livros de Nick Cave e David Bowie. Teria que ser algo bem diferente. Também tem a Billie Eilish. Gosto dela, mas sei pouco sobre sua vida. Estou aberto a sugestões.

Para finalizar, pode contar um pouco sobre o quadrinho que você quer fazer com sua história própria, ou ainda é muito cedo?
Não posso falar nada sobre o tema ainda. Mas posso dizer que é uma história a respeito do que tem rolado no mundo no momento. Meu medo é que, quando eu terminar o trabalho, o mundo já esteja completamente diferente de novo. As coisas estão mudando muito rapidamente. Preciso de um tempo para focar neste projeto, mas ainda vou levar um ano e meio para finalizar a HQ sobre Bowie.

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