Ao vivo: Alcione leva seus sambas inesquecíveis para Fortaleza

 texto por Daniel Tavares

Atualmente em turnê comemorativa de cinco décadas de sucesso, Alcione tinha o show programado para o estacionamento do shopping Salinas ao lado do centro de Eventos do Ceará, em Fortaleza, com abertura dos portões prevista para as 17h. No entanto, o que deveria ser uma noite perfeita começou exatamente ao contrário do esperado com aquele irritante “atraso que não é atraso”. Porém, assim que a artista subiu ao palco, com seu jeito cativante e carismático, todas as preocupações desapareceram e o que se seguiu foi uma noite memorável de música e alegria. Mesmo cantando sentada praticamente o show inteiro, a Marrom mostrou muita emoção e interagiu com a plateia, fazendo brincadeiras e contando histórias divertidas sobre sua carreira e a música brasileira. Não deixou de pontuar que ‘pancada de amor dói sim’ (e que em briga de marido e mulher a gente mete a colher) e até tietar um político local. Isso criou uma atmosfera de proximidade e cumplicidade entre a artista e o público, transformando o show em um evento ainda mais especial.

O primeiro a subir no palco, no entanto, foi Renato Assunção, que com sua voz grave e acompanhado de David Simplício no violão de 7 cordas, homenageou, por cerca de uma hora, medalhões cearenses como Fagner, Belchior e Ednardo, mas também artistas como Martinho da Vila, Benito di Paula, Roberto Carlos e Alceu Valença. Em uma cadeira de rodas devido a complicações da diabetes (que causaram a amputação de suas duas pernas), o artista é um batalhador, tendo vencido a morte várias vezes, lutando sempre para manter seu lugar nos palcos cearenses e neste plano. Incomoda, porém, a quantidade de ‘merchan’ que o músico faz durante as canções. Nada contra mandar um alô para este ou aquele apoiador, alguém que o tenha ajudado a vencer as barreiras da música com tantas complicações na saúde, mas, que o faça entre uma canção e outra. Suas intervenções acabam sendo anticlimáticas maculando o poder de sua bonita voz, os dedilhados dele e de David, que é o que realmente interessa a quem está acompanhando sua performance.

Em seguida, subiu ao palco a banda cearense Coisa Linda de Pagode tocando clássicos do samba e pagode, principalmente dos anos 90. Apesar da competência dos músicos, a participação deles no evento não foi recebida com unanimidade. O que a maior parte dos presentes ansiava por ver era a Marrom. E a presença dos pagodeiros aparecia ali como uma mera distração para vender mais bebidas aumentando a espera pela atração principal. Algo que in não funcionou a contento no evento foi a divulgação da programação, pois a maioria das pessoas não tinha conhecimento de que haveria mais duas atrações na noite, e quando o público não sabe quantas bandas se apresentarão antes da atração principal não é facultado a els escolher a hora de chegar ao evento. Muitos chegaram ao estacionamento do Shopping Salinas no finalzinho da tarde, aguardando que o show da maior sambista do Brasil começasse uma hora depois. É preciso lembrar que havia entre o público muitas pessoas idosas, cidadãos que foram moços quando a diva era também moça e continuam moços como ela, mas, agora, demandam e merecem um pouco mais de carinho e cuidado.

E o que acontece quando se comete um erro de grande proporção? Exatamente o contrário do que se esperava atingir. Enquanto alguém da produção finalmente subia ao palco, pedindo desculpas pelo mal-entendido, os nomes de patrocinadores eram recebidos com vaias por boa parte do público. Ora, ninguém quer ter o nome do seu negócio vaiado. Não é, certamente, a forma como os proprietários gostariam que suas empresas fossem lembradas. Outro problema foi a área chamada Lounge. Sim, era bem perto do palco, mas, mais precisamente na lateral, dificultando a visão completa dos artistas, além de ter muito pouco do que se espera de um camarote (ou algo que se venda dessa forma). É certo que havia uma boa quantidade de caixas móveis e funcionários no bar, evitando que não se gastasse sequer dois segundos na espera para comprar qualquer bebida, mas, conforto e boa visibilidade…

Com a diva da música brasileira e sua competente banda finalmente no palco, o público se acalmou ao som de “Além da Cama”. Alcione, surpreendentemente muito mais magra, logo tratou de declarar o quanto estava feliz de estar “na terra do meu amigo Fagner”, dizendo também que “quase tinha nascido aqui” (nascera pertinho, no Maranhão), mas lembrou dos quatro parafusos que tem na lombar e que teria que cantar sentada; E assim foi a partir dali, com “Estranha Loucura”. “Vai sentir falta dessa pretinha aqui”, improvisa ela no meio da música. “Faz uma Loucura por Mim” dá prosseguimento ao show. Vem “Sufoco”, colada à “O Surdo”. E este talvez seja o único ponto não tão positivo no repertório. Ambas as canções mereciam ser cantadas integralmente. A falta foi compensada pela resposta de Alcione ao verso “pancada de amor não dói”: “Dói sim. Nesse negócio de briga de marido e mulher a gente tem que meter a mulher” – ao que foi muito aplaudida.

Ao iniciar a próxima, reclamou da cadeira – “já sou baixinha” – e só continuou até a produção conseguir uma cadeira mais alta (e um cafezinho). E, muito mais forte na “Queda de Braço”, a canção seguinte no repertório, confidenciou ao público: “Vocês que tem essa moral com eles, porque eu falo e eles ficam apavorados”. Muito bem instalada em uma poltrona branca e alta a diva pode começar a cantar, seguindo para “Juízo Final” e “Retalhos de Cetim”, de Nelson Cavaquinho e Benito di Paula, respectivamente. Nesta última, o público que cantou boa parte do refrão.

Alcione e Regina Marrom

O que faz com que uma diva seja uma diva? No caso da música, não se trata somente do enorme talento vocal, mas também do domínio de palco e público, mas, tudo isso, se possível, combinado com a humildade diante do fato que é influência para um sem-número de outras cantoras. E também alvo de homenagens e tributos. Alcione demonstrou todas essas qualidades de uma vez, após “O Mundo é de Nós Dois”, ao chamar ao palco a cantora Regina Marrom para dividir “A Loba”, um dos maiores sucessos da sambista. Não sem alguma impaciência (real ou não, brincadeira ou não) com a equipe. “Cadê o microfone da menina?”; “Ah bom. Já ia dar uma pedrada em alguém”. E não só as duas fizeram um belo dueto, como também o trompetista também brilha particularmente na canção.

Alcione ainda pediu pra Regina escolher mais uma para ambas dividirem. E temos “Não Deixe o Samba Morrer” pela primeira vez na noite (sabíamos que a canção encerraria o set, mas ainda é cedo para isso). É um grande privilégio ver no palco uma das maiores cantoras do Brasil, dividindo uma jam vocal praticamente jazzística com alguém tão diretamente influenciada por ela. “Essa menina tá me provocando”, ainda disse a Diva sobre Regina Marrom. Assim como Bethânia, Alcione também tem o toque de Midas, tendo transformado seu dueto com o insuportável Belo, “Não Tem Saída”, em um belo momento. Felizmente, ele não estava presente.

Uma ausência nos backing vocais é da irmã de Alcione, que estaria fazendo algum tratamento dentário, mas uma de suas sobrinhas, Sílvia Nazareth estava lá e foi chamada para o próximo dueto. “Coisa mais linda dessa tia”, diz a Marrom. E a moça com a voz grave escolheu “Mulher Ideal”, que foi seguida por “Separação”, uma das belas do Exaltasamba. “Melhor assim. Pra que fingir se você já não tem amor?”, ainda com Sílvia, que a diva diz ter carregado no colo. Alcione brinca com as próprias dores, fazendo trocadilho com o título da próxima canção. “Tô sentindo dor no ombro, tem uma entidade querendo me pegar aqui”. A canção, você já notou, é “Entidade”.

E a diva fica toda feliz quando alguém lhe dá ao pé do ouvido a notícia de que Ciro Gomes, o político, chegou. Paris a parte, o homem tem uma sorte enorme de ter como fã alguém de quem todos somos fãs. “Sou doida por dois cearenses, Fagner e Ciro. Ainda bem que a mulher dele não tem ciúme de mim”. E depois de “Nem Morta”, ela disse que iria cantar um forró para Giselle [Bezerra] e Ciro, “Xenhenhém”. E ainda xingou, de brincadeira, a banda. “Vocês toquem isso direito, porque o Ciro tá aí”. E, depois de “Você me Vira a Cabeça”, ainda falou para o político “no seu tempo, você pode vir nesse palco que eu quero te dar um cheiro”.

O show continuou com “Garoto Maroto” e “Meu Ébano” quando o ex-governador e eterno candidato ao planalto realmente subiu ao palco, entre palmas e vaias. “Eu aqui divido, ela é unânime”, reconheceu Ciro, para quem Alcione levantou-se da poltrona. “Quem gosta de mim gosta de você, quem não gosta de mim gosta de você”, arrematou ele. Ânimos acalmados e o show de volta à apenas a música, “Gostoso Veneno” cede lugar a “Brasil com ‘Z’ é pra cabra da peste, Brasil com ‘S’ é nação do Nordeste”, ou, simplesmente “Invasão do Nordeste”, o samba-enredo da Mangueira que foi campeão do Carnaval de 2002, uma homenagem tanto ao Ceará onde estamos, ao Maranhão que viu Alcione ser dada à luz e aos outros sete estados da gente forte. E o que torna à homenagem mais especial ainda é que a homenageante será homenageada. Em 2024, “Alcione, a negra voz do amanhã” será o tema da escola carioca.

Era hora de fechar a noite. E não havia uma alternativa a não ser repetir “Não deixe o Samba morrer”, quando a diva do samba ainda deu até uma sambadinha ao se levantar. Não, querida Marrom, o samba não vai morrer. Apesar do atraso no início do show, Alcione conseguiu compensar tudo com uma apresentação impecável, envolvendo todos em uma noite de muita música e alegria. O público saiu do evento contente e animado, satisfeito com a experiência única de ter visto uma das maiores artistas da música brasileira ao vivo.

Setlist:

1. Além da Cama
2. Estranha Loucura
3. Faz uma Loucura por Mim
4. Sufoco / O Surdo
5. Queda de Braço
6. Juízo Final
7. Retalhos de Cetim
8. O Mundo é de Nós Dois
9. A Loba
10. Não Deixe o Samba Morrer
11. Não Tem Saída
12. Mulher Ideal
13. Separação
14. Entidade
15. Nem Morta
16. Xenhenhém
17. Você me Vira a Cabeça
18. Garoto Maroto
19. Meu Ébano
20. Gostoso Veneno
21. Invasão do Nordeste
22. Não Deixe o Samba Morrer

– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. Colabora com o Scream & Yell desde 2014. As três fotos utilizadas no texto são reproduções do Facebook Oficial de Alcione

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